30 outubro 2007

DE VOLTA À TORRE DE BABEL




O fascínio de uma utópica cultura hegemônica, ronda a humanidade desde os tempos mais remotos. Os descendentes de Noé, num primeiro momento, se entendiam através de uma linguagem única, que na tradição judaico-cristã constituiu a primeira forma de pensamento globalizado.

Tomando a construção de uma torre que atingiria os céus, como METÁFORA, iremos entender sobremaneira, as sutilezas que envolvem o dilema do pensamento ocidental frente às outras culturas. Hoje, mais do que nunca, o ocidentalismo tenta ditar regras “universais”, no sentido de impor uma mesma forma de linguagem na convivência entre os povos que tem identidades diversificadas.

Uma pequena reflexão sobre a “Babel” bíblica irá abrir a nossa mente para o óbvio, que é a impossibilidade de sucesso da empreitada daqueles que se arvoram de autores do supostamente “correto e único” em matéria de política e religião.

Para compreendermos melhor o cerne do pensamento global reinante no ocidente, torna-se imperativo reler partes do que está escrito no livro de Gênesis:

“Ora, a terra toda tinha uma só língua, e uma só maneira de falar” ( Gênesis 11:1)

“Disse o Senhor: o povo é um, e todos tem uma só língua. Isto é, o que começam a fazer; agora não haverá restrição para tudo que eles intentarem fazer”. (Gênesis 11:06)

“Por isso chamou o seu nome BABEL, porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra”. (Gênesis 11:09)

A onipotência de uma só forma de pensar entre as nações seria ousar contra o próprio Deus. O castigo que sobreveio através da “confusão” das línguas, na verdade dera lugar a uma dádiva, que seria a abertura de cada ser humano para o diálogo com o outro ser agora estranho, dono de uma identidade lingüística diferente.

A emblemática frase dos construtores da “Torre que tocaria os céus”: FAÇAMOS UM NOME (Gênesis 11;04), é a mesma que hoje embasa o pensamento hegemônico ocidental. A história está sendo repetida e fadada ao insucesso. O ocidente quer fazer um “Nome” sobre todos os outros, sem se ater para o que há de mais importante na diversidade da linguagem, que é o respeito aos valores dos povos estrangeiros. O mundo ocidental no seu egocentrismo recusa o intercâmbio de idéias e conhecimentos com as outras culturas que lhes são estranhas, esquecendo o que está escrito em Êxodo 22:21: “O estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás, pois estrangeiros fostes na terra do Egito”. E o pior: lança como entrave ao diálogo com o diferente, um cristianismo fajuto, que nem de longe lembra o pensamento central da mensagem de Cristo.

Ora, o Cristianismo primitivo, através de suas "boas novas" de que fala o Novo Testamento, imprimiu com marca indelével, o compromisso com a não destruição das identidades dos povos de línguas deferenciadas. Tanto é assim, que no emblemático dia de Pentencoste, os discípulos de Cristo ao serem tomados pelo poder do alto, disseram palavras, cujo teor, os povos de diferentes linguagens, ali ao redor, chegaram a comprender. Aquele acontecimento tornou-se um símbolo de que Deus, doravante, se faria entender no contexto de cada povo, de cada cultura, de cada língua, como bem realça o livro de Atos (2, 9 à 11): "Partos, Medos, Elamitas, os da Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frígia, Panfília, Egito, Libia, Cretenses e Àrabes - todos temos ouvidos em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus".

O que Deus outrora queria mostrar com a diversidade das formas de linguagem, e a pluralidade de pensamentos, no episódio da interrupção da construção da Torre de Babel?

Deus, simplesmente queria que nascesse no coração do homem, o despertar de uma nova forma de convivência, baseada na “singularidade” de cada ser, que é única, e que, como uma impressão digital, não se repete em outro ser. Até dentro de uma mesma comunidade ou grupo familiar, onde se tenta falar uma mesma língua, a singularidade de cada indivíduo na sua transcendência com o divino, é particular, e não pode ser exprimida em palavras. Na maioria das vezes, na tentativa de explicar a nossa interioridade para o outro, somos mal entendidos. Esta é uma das nossas grandes aflições de cada dia: fazer-se entender. Quando não reconhecemos a individualidade particular do outro, expressada em sua peculiar linguagem que nos é estranha, podemos até partir para o acirramento de ânimos.

O aprendizado entre os diferentes é assim mesmo. O nosso interlocutor almeja sempre que correspondamos aos seus desejos. Ele fica feliz ao pensar que somos sua cópia fiel. Ao nos tornarmos cópias, perdemos a nossa identidade, e passamos a viver num estado de alienação, que nos sujeita a depender da consciência do outro, como bem demonstra o Judeu hassídico Martin Buber, nesta construção fraseológica muito interessante: “Se eu sou eu porque eu sou eu, e tu és tu porque tu és tu, então eu sou eu e tu és tu. Mas, se eu sou eu porque tu és tu, e tu és tu porque eu sou eu, então nem eu sou eu, nem tu és tu”. Em outras palavras: se eu não posso ser eu, serei apenas um objeto, uma coisa, de que tu tomas posse. Se realmente tu não podes ser tu, serás sempre um objeto, de que tomo posse para depósito dos meus anseios.

O mundo ocidental na sua inglória batalha, ao tentar escravizar a consciência dos outros povos sob uma ótica deformada pelos seus conceitos hedonistas do prazer a qualquer custo, mal tem tempo de olhar para dentro de si mesmo. A reflexão e a meditação, características dos povos orientais, são para os ocidentais, coisas ultrapassadas. Estes últimos, em sua grande maioria, preferem viver à custa de espetáculos efêmeros que exaltam as emoções e levam ao êxtase. Não é à toa, que os povos latino-americanos e europeus são responsáveis pela quase totalidade do consumo de drogas, como cocaína, crack, etc. Na sua visão de mundo, amar o inimigo, amar aquele que não fala a sua maneira, é simplesmente ganhá-lo para o seu rebanho, para o seu curral ideológico, através de uma “científica” lavagem cerebral.

A aparente superioridade cultural de um povo, é o maior entrave no aprendizado com as culturas minoritárias. Para o religioso ocidental, torna-se muito mais cômodo transformar o diferente em um seu igual, do que tentar aprender com as diferenças do outro que lhe é estranho. E desta forma vão formando homens-robôs, num proselitismo desenfreado e sem sentido, talvez sonhando em um futuro próximo soerguer uma nova e ilusória TORRE em que todos falem uma mesma língua. Sabemos que a palavra “torre” tem por significado simbólico ─ o “PODER” ─, por isso mesmo, as autoridades das grandes metrópoles procuram mostrar o seu poderio, através de construções de arranha-céus cada vez mais altos. Na verdade esses fenomenais e altíssimos edifícios não passam de uma exteriorização do desejo de “todo poder” que está arraigado no mais remoto recanto da alma humana, vindo à tona, numa espécie de repetição do que ocorreu lá no Gênesis Bíblico.

Por falar em “torres”, o E.U.A. como centro exportador do pensamento globalizado tiveram um dos seus maiores símbolos (as torres gêmeas) destruídos. Ao invés de partir para uma reflexão aprofundada através de uma releitura do Gênesis, reconhecendo à luz das Escrituras, o infrutífero esforço da reedição Babélica, eles açodaram ainda mais os povos de culturas e religiões diferentes. Em meio à tragédia do World Trade Center, ficou famosa a afirmação catastrófica do Presidente Bush: “Quem for contra nós está do lado do mal”. De forma impensada, ele fez ali, no calor da emoção, uma contundente analogia ao que escreveu o existencialista Jean Paul Sartre: “o inferno são os outros”.

O interessante é, que para aplacar a sede de vingança da maior nação cristã do globo, um personagem descendente de Nabucodonozor, chamado Saddam Hussein, foi inapelavelmente caçado para pagar o “pato” ─, logo ele, que nascera ali, bem pertinho da terra onde os herdeiros de Noé atentaram contra o próprio Deus, projetando uma equivocada “Torre” sob uma só língua.

06 outubro 2007

ÉTICA EM POLÍTICA? - FOI UM SONHO, ACABOU



Discorrer sobre ética nos tempos atuais é um exercício extremamente difícil. É como entrar em um terreno movediço, que apesar do esforço empreendido e por mais que se queira, não se consegue sair do arriscado atoleiro.

Como falar em código moral, quando vivemos em um país, cujos dois maiores centros populacionais se tornaram palco de uma verdadeira “guerra civil”, caso do Rio de Janeiro e São Paulo, em que os marginalizados pela sociedade foram obrigados a se organizar como um Estado dentro de outro Estado. Para se ter idéia da gravidade do momento, nessas duas cidades, a violência mata mais do que na atual guerra entre xiitas e sunitas no Iraque. Como falar de ética num país em que o mínimo de direito a uma vida condigna é desrespeitado vergonhosamente e, quando os direitos básicos do cidadão, como saúde, segurança e educação, são espezinhados.

Como médico aposentado, aos sessenta e um anos de idade e trinta e sete de profissão, posso dizer com conhecimento de causa, que vivemos em um país “do faz de conta”. Que nação é essa, em que doenças como a Hanseníase e a Tuberculose grassam por todos os recantos, como nunca se viu, de uma forma que não existia, trinta anos atrás. A “Dengue” que no meu tempo de estudante de medicina, em 1968, nem sequer a estudávamos nos compêndios de medicina, pois não havia necessidade, uma vez que a mesma tinha sido erradicada há décadas, hoje é uma pandemia sem o mínimo controle. Não há recursos para acabar com um simples mosquito, mas há recursos para obras, todas elas superfaturadas, afora dinheiro ilegítimo distribuído aos montes, proveniente de “caixa dois”, que as nossas honradas autoridades políticas, com raras exceções, acham ser uma coisa perfeitamente normal. Esta prática ilegal se tornou uma realidade num país em que a banalização do mal feriu de morte o senso moral e ético que devia nortear todas as consciências, principalmente a consciência dos que legislam para o povo e pelo povo.

Virou uma piada de mau gosto o lema: “Código de Ética e Decoro Parlamentar”. Ultimamente, nobres senadores fizeram das iniciais C.E.D.P: o Código de Espetáculo Deprimente do Parlamento. Em nossas casas, pela “TV Senado”, assistimos nestes últimos dias a um espetáculo espúrio de desrespeito ao cidadão, que trabalha honestamente e ganha com o suor do seu rosto.

Ontem mesmo assistia a uma fria “sessão” de homenagem póstuma a Ulisses Guimarães, numa hora em que se o bom senso prevalecesse ela não teria sido realizada em um recinto, por hora tão ultrajado. O velho Ulisses não merecia tanta falta de consideração. Ainda bem, que na noite seguinte, o “povo de quem Ulisses era escravo” lotou o Maracanã no jogo entre S. Paulo e Flamengo, para num espetáculo respeitoso, belo e emocionante, resgatar de forma inequívoca a memória do velho Timoneiro.

Na TV Senado, ainda tive o desprazer de ouvir dois discursos, que pasmem, foi uma verdadeira sessão de autoflagelação, pois as palavras que saíam da boca daqueles senhores, batiam como se fossem chicotes em suas próprias costas. Se pudesse voltar, o que diria Rui Barbosa ao ver a que ficou reduzida a casa que deveria ser a guardiã dos anseios do povo?

Metaforicamente falando, nada mais resta da cúpula côncava do senado, projetada por Oscar Niemeyer, que pensou, quando da construção de Brasília, “que aquele símbolo retrataria um local propício à reflexão, serenidade, ponderação, equilíbrio, onde pudessem ser valorizados o peso da experiência e o ônus da maturidade”.

Mas foi tudo um sonho. ACABOU.


Ensaio por: Levi B. Santos

Guarabira, 06 de Outubro de 2007

04 outubro 2007

MISTÉRIOS NA NOITE




Eram duas horas e vinte e cinco minutos, quando rompendo o silêncio daquela abafada noite, toca o celular em cima do criado-mudo, onde antes de deitar, ele também punha os óculos e um remédio em gotas para desobstrução nasal.

Despertando do sono, numa súbita reação levantou-se do leito, agarrou o aparelho digital, olhou detidamente o visor: a ligação tinha vindo de sua própria casa, de um telefone fixo que ficava no final do corredor que tinha como início a porta de seu aposento. Notando a ausência da esposa, ao seu lado, ele imediatamente racionalizou: “só pode ter sido ela que discou para o meu aparelho celular”.

Em poucos segundos, já sem um pingo de sono, ele abriu a porta do seu quarto e se surpreendeu ao acender a lâmpada do corredor: lá estava o telefone fixo em seu devido lugar, ninguém o estava usando. Conferiu novamente a chamada no seu aparelho digital, lá estava bem claro: ligação recebida de “casa” às 2:25 de uma sexta-feira que se iniciava. Não demorara nem vinte segundos para realizar todo o movimento de identificação.

Ao invés de atribuir o chamado telefônico ao terreno do sobrenatural, no seu ceticismo, preferiu atribuir tudo a interferências eletromagnéticas de um outro mundo, o mundo digital, e saiu à procura de sua mulher. O silêncio, só cortado de vez em quando pelo cantar dos galos, e latidos dos cães ao longe, era propício ao exercício racional, que faria, na tentativa de arrumar convenientemente as pedras deste quebra-cabeça. Foi neste momento que veio a sua lembrança uma passagem da mitologia grega ─, o famoso “Enigma da Esfinge”, em que o Rei Édipo recebe um ultimato: “Decifra-me ou te devoro!”.

Na caminhada à procura de sua esposa, o que o teria levado, entre outras portas, a abrir justamente àquela do quarto que era reservado aos filhos? “Os meninos", como ele chamava os seus três rapazes, estavam ausentes, residindo na Capital do Estado, distante cerca de cento e quarenta quilômetros. Freud estivesse vivo, daria uma explicação mais ou menos assim para este fenômeno: “o que o levara a girar a maçaneta daquele aposento, teria sido a pulsão instintiva do inconsciente, induzindo-o à realização de um desejo reprimido, que era justamente o anseio de encontrar todos os filhos bem protegidos e dormindo naquele quarto, como em tempos idos acontecia”.

No entanto, em sua mente um pensamento assomava: qualquer pessoa inculta, na sua linguagem simples, diria o mesmo que Freud deduzira cientificamente. Diria mais ou menos assim, com o seu modesto linguajar: “foi o apego aos bichinhos, que fez com que você abrisse a porta do quarto deles”.

Ele agora estava juntando as peças para poder entender o “porquê” de um outro mistério. Ao abrir lentamente a porta do quarto, que era agora dos filhos só nos fins de semana, encontrara sua esposa coberta da cabeça aos pés, ajoelhada junto à cama que era do primogênito. Parecia uma daquelas mulheres árabes, que se vestem com panos longos da cabeça ao chão. Respirando a atmosfera daquele quarto, ele perguntava para si mesmo: estaria ela em genuflexão, a reviver pedaços ou restos da infância perdida dos filhos que saíram de si?

Entendia que era em momentos de transcendência como aqueles, que todos os entes queridos, mesmo os que moram distante, parecem ficar muito próximos em pensamentos. Sendo assim, deduzia que a sua esposa ali naquele quarto, numa devoção solene, poderia estar se sentindo bem pertinho dos filhos, que por muitas noites dormiram e sonharam embalados nos seus cânticos e histórias.

Não sabia porquanto tempo tinha ficado ali, estático, ante a porta entreaberta, observando a sua silhueta na penumbra do quarto vazio, mas ao mesmo tempo cheio de um significante silêncio. Talvez, pensou, ela estivesse sentindo o mesmo que ele. É que tinha vindo naquele instante à memória, os momentos que por tantas vezes partilharam juntos noutras noites insones, em que ora curtiam a algazarra e risos dos filhos, ora preocupavam-se com os choros e gemidos deles, quando estavam enfermos.

Com pés de lã, fechou a porta do quarto e se retirou com o máximo cuidado para não fazer barulho, e não interromper a ligação íntima, que por certo, ela estava experimentando naquele ambiente, exteriormente deserto de sons e de pessoas, porém interiormente rico de sentimentos. Ele não demorou muito para chegar a seguinte conclusão: ali, ajoelhada, estava uma mãe intercedendo pelos filhos, que sabe Deus, estariam nestas horas necessitando de um providencial consolo seu.

Ele já tinha ouvido em várias ocasiões ela falar em “oração de intercessão”. Já tinha presenciado em outras ocasiões, ela levantar do leito nas caladas da noite para fazer este tipo de prece. Ele, às vezes, estranhava aquele ritual, mas ela respondia: “você não sabe o valor que tem a oração de intercessão, ela é poderosa para interferir e evitar que coisas ruins venham acontecer aos nossos”. Falava isso com um tom de voz seguro, que pela janela da alma, que são os olhos, não deixava transparecer sinais de dúvidas.

O sono não chegava. Ele viu em meio à penumbra, ela aparecer sorrateira, e se recolher ao seu cantinho no leito. Depois, observou ao seu lado, ela respirar aliviada, com um ar de satisfação, de quem tinha conseguido algo inefável, e, sem dizer nenhuma palavra, em pouco tempo, estava a dormir profundamente. Numa coisa ela estava em uníssono com ele: era no respeito à grandiosidade significante de um silêncio, que naquele instante não deveria ser quebrado por palavras.

Ele e ela, com certeza pressentiram que em momentos sublimes como aqueles, não havia o que se perguntar, como, também, nada se tinha a responder, até porque a experiência transcendental de cada um, é por si, inexprimível ou indescritível. O silêncio falou mais alto naquela noite, para que a singularidade que varia de ser para ser, fosse preservada.

Depois de algum tempo ele conseguiu por fim apaziguar o sono, certo de que os mistérios da noite são para se curtir no silêncio.

O misterioso toque do seu celular, altas horas da noite, servira de inspiração para uma crônica que escreveria no dia seguinte.

Conto por: Levi B. Santos

Guarabira, 02 de Outubro de 2007