14 julho 2008

NO REINO DO FAZ DE CONTA

.........................Gabrielle no cavalo de balanço



Às vésperas de meus 62 anos, tenho intensificado um hábito que começou na adolescência. Não resisto a uma boa leitura na velha rede do terraço de minha casa. Ali, nos meus minutos de folga após o almoço, ou à tardinha, tenho me deliciado com iguarias inigualáveis: são livros que me fazem ver o que antes ignorava. Livros que me ensinam a olhar mais para dentro de mim, mostrando-me a frágil condição humana contraditória da qual sou portador. Livros que me fazem sonhar acordado. Livros que demolem os castelos de areia da alma, que eu antes pensava serem indevassáveis. Assim, diariamente vou desconstruindo-me e reconstruindo-me, de maneira que as certezas de ontem, vão dando lugar a outras evidências do amanhã, e nessa forma de vivência o hoje se transmuda em “passagem”. Lendo, a minha vida se transforma numa eterna travessia. E, neste caminhar, vou conhecendo novas paragens, novas visões de mundo. Estou aqui e não estou, pois, a mente não obedece a esse limitado tempo-espaço em que o corpo está inserido. A minha mente já cansada pelo peso dos anos, viaja por lugares estranhos, longínquos, e me faz entender que o aprendizado do dia-a-dia é construído com o mesmo material dos nossos verdes anos.

O Mestre dos mestres disse certa vez para os seus discípulos: “[...] quem não se fizer como criança não poderá entrar no Reino dos Céus”. Esse Reino, nessa nossa vida terrena muito agitada, só se pode experimentar através da imaginação. Mas, eu quero falar de um outro reino: “o reino do faz de conta”.

Era geralmente nos fins de semana, que eu deixava os meus livros um pouco de lado, para me fazer criança de novo. Quem me obrigou a tomar essa postura foi minha neta Gabrielle de três anos de idade. Num desses dias em que recebi a sua visita, enquanto me aconchegava na velha rede, para minhas habituais leituras, ela se aproximou como um raio, dizendo:

─ Vovô! Vamos brincar de faz de conta?

Agora eram dois, o avô e a neta viajando pelo mundo da fantasia. Enquanto ela escolhia os tipos de brincadeiras, eu, no convés do meu navio, em vão tentava navegar pelas águas turbulentas dos meus primeiros anos. O barco encalhava, pois não conseguia me lembrar de nada do que se passou comigo quando tinha a sua idade. Fiquei por um tempinho pensando: meus pais eram tão jovens, tinham em torno de dezenove ou vinte anos de idade quando nasci. Será que eles fizeram comigo essas aventuras idílicas que estou hoje a vivenciar com a minha neta? Não sei. Desse tempo, só me recordo de um velocípede de madeira na cor azul, no qual eu pedalava ao cair da tarde, pelas calçadas.

O livro que estava lendo tranquilamente, foi atirado violentamente a dois metros de distância, ao mesmo tempo em que fui sacudido pelo impacto do corpo de Gabrielle mergulhando dentro de minha rede. Ela rapidamente se acomodou na surrada rede e iniciou um diálogo inusitado pelo mundo do “faz de conta”:

─ Vovô! Faz de conta que a rede é um barco, viu? ─ falou toda faceira.

─ E o mar, Gabi, onde é que fica?

─ O mar é o chão, vovô! Tire os pés do chão, senão a baleia pega!

Fui obrigado a estirar-me na rede e balançá-la lentamente para imitar um barco ao sabor das ondas, fazendo com os lábios o barulho do motor.

De repente, como se estivesse vivenciando os absurdos dos sonhos, ela mudou repentinamente de imaginação e, ao mesmo tempo em que subia nos meus lombos, foi falando:

Vovô! Agora tu é meu cavalo. Vai corre!

Para fazer de conta que era o cavalo, eu a colocava sobre os meus joelhos, e com movimentos para cima e para baixo, imitava o trote do animal, de inicio vagaroso, depois apressado.

Vai canta! Canta! Canta a música do cavalo! ─ insistia ela.

É que eu tinha inventado meses atrás, uma cançãozinha meio atrapalhada, que dizia assim:

.........................“Pela estrada afora lá vai o cavalo,

..........................Na sua floresta não tem lobo mau”.


À medida que cantarolava, parodiando a melodia de “chapeuzinho vermelho”, eu apressava ainda mais o trote, jogando-a no ar várias vezes, para dar a impressão que o cavalo estava sendo perseguido pelo lobo. Assim terminava a letra da estrofe inventada na hora:

..........................─ “Ouvi um barulho no meio da floresta,

...........................É o lobo mau que vem nos apanhar.”


Nas minhas idas a Camboinha, onde residem seus pais, a primeira coisa que faço é me dirigir à sacada do apartamento no terceiro andar, e lá, transporto-me em questão de segundos ao “reino do faz de conta”. E, enquanto me ajeito na cadeira de balanço, vou ouvindo o seu grito de guerra: “Vai cavalo! Vai cavalo! Corre! Lá vem o lobo mau!”.

Já cansado de tanto imitar o galope do animal, eu tento persuadi-la a desenhar ou fazer pinturas, no intuito de por fim a fatigante brincadeira de “cavalo da floresta”. Quando enfim ela se retira, na solidão do terraço, eu fico meditando sobre a fantástica capacidade criadora da criança e sobre o seu maravilhoso mundo imaginário. E nesses minutos de enlevo, sinto que a ficção, como um bálsamo, suaviza a realidade de minha vida agitada na luta pela sobrevivência.

A pequena Gabrielle, com a sua fantástica imaginação, tem me proporcionado momentos de encantos, levando-me a um mundo parecido demais com àquele das minhas utópicas leituras que, à maneira das histórias do “reino do faz de conta”, fazem-me voar alto na imaginação. O simbolismo de nossa comunicação, realçado pelo calor dos gestos, pela atenção do olhar e a magia do devaneio, demonstram o quanto é de crucial importância, a interação imaginária entre um adulto e uma criança de apenas três anos de idade. É a fantasia desse mundo encantado, do qual eu tenho uma tênue lembrança, que vai impulsionar o desenvolvimento afetivo da criança. Os prazeres criativos e comunicativos vão imprimir as características que irão definir a sua personalidade futura.

Para quebrar o silêncio da casa vazia no meio da semana, de vez em quando eu falo com Gabrielle pelo telefone. E, ao ouvir o seu “alô” característico, de imediato respondo: “aqui é o cavalo da floresta!”. Ela ri escancaradamente e pergunta com jeito de adulta: “e o lobo mau?”.




Crônica por Levi B. Santos

Guarabira, 12 deJulho de 2008

Um comentário:

Unknown disse...

Que momentos maravilhosos estes no reino do faz de conta,heim?! Penso que sejam os mais especiais. Gabi jamais esquecerá este "cavalo" tão veloz e de um trotar tão melodioso...nem o vovô, uma "amazona" tão animada e graciosa.