28 fevereiro 2009

SINFONIA DA ALMA




Não entendo a razão da música clássica ─, aquela que toca a nossa sensibilidade mais profunda e nos transmite tanta paz de espírito ─ ser considerada música triste e sem sentido pela maioria das pessoas. Comumente, só ouvimos a execução dessas melodias, pelas emissoras de rádio, como fundo musical no anúncio do falecimento de uma pessoa nobre da sociedade. É uma pena que na nossa cultura, essas sinfonias suaves e maravilhosas sejam apelidadas indevidamente de “música de enterro”.


Mas como são belos, e extraordinariamente tocantes os concertos de Brahms, Schubert, Beethoven, Bach e Chopin, entre outros notáveis autores. Ouvindo as músicas desses fenomenais compositores eu me sinto como uma ave pairando no ar e, nas poucas horas de silêncio que esse mundo agitado e hostil me oferece, sou transportado a um mundo calmo, distante do “corre-corre” tumultuado da luta cruel pela sobrevivência. Não posso deixar de dizer que, a harmonia dessa modalidade musical acalma a criança amedrontada que mora em mim. Ela põe os meus medos para dormir. E, enquanto o sono me embala, os medos e as tensões são afugentados para bem longe.


Essa categoria musical é poderosa, pela sua influência avassaladora e capacidade de despertar sentimentos mais profundos, como em nenhuma outra arte é possível. Lembro-me da minha infância quando os meus dedos mal ajeitados percorriam o teclado de um acordeom, e eu me entregava à improvisações apaixonadas. Bastavam alguns acordes dolentes tirados em “do menor” para me fazer sonhar e esquecer as agruras e dificuldades da vida real.


Será que os extraordinários maestros da música clássica, não foram tocados por uma centelha Divina, ao instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem? A escuridão da noite punha medo e agitava as crianças do meu tempo. As velhas letras das cantigas de ninar, que a minha mãe com tanta sensibilidade cantava, apaziguavam a minha alma, ajudando-me a entrar de forma tranqüila no mundo escuro e tremendo da noite. No balançar de uma rede, ouvindo as modinhas infantis, eu entrava tranquilo no mundo sobrenatural dos sonhos. Talvez, a música erudita que hoje me causa tanta sensação, seja uma evocação daquelas repetitivas canções que minha mãe entoava com tanto carinho e devoção, no verdor dos meus três anos de idade.


Hoje, num mundo explosivo e barulhento, é quase impossível se obter o necessário silêncio para conciliar o sono ao embalo de uma suave e bela sonata. Caímos no sono mais pelo cansaço do labutar diário, o qual como um tribunal severo, impõe uma aspereza dissimulada em nossos corações, nos impossibilitando de degustar os sentimentos transbordantes de uma sinfonia.


Na Bíblia, há um registro emblemático sobre o poder fascinante da música: quando o salmista Davi extraiu de sua harpa uma melodia expressiva, que tocou profundamente o Rei Saul, restaurando-lhe a tranqüilidade da alma que jazia perturbada. Não creio que a música tocada por Davi, tenha qualquer relação com a barulhenta e insuportável sonoridade da maioria das bandas gospels, que ludibriam os líderes de certas igrejas, deixando-os embasbacados diante de espetaculosos “shows” estimulantes dos instintos carnais, em detrimento do que é espiritual.


O êxtase banal, vulgar, pesado e barulhento provocado por essas bandas de ritmo esfuziante, e que muitos erradamente confundem com “avivamento espiritual”, jamais pode ser comparado ao sereno contentamento que as almas experimentam ao deixar a sinfonia erudita reverberar suavemente nas cordas de seus corações. O filósofo Schopenhauer deixou escrita uma frase que resume bem o propósito desse ensaio: “A música clássica é um exercício metafísico no qual a mente não se dá conta de que está filosofando com Deus”.


Lamento, mas nada posso fazer, senão respeitar àqueles que, seguindo a tradição dos nossos antepassados, fazem dessas melodias eruditas, uma peça complementar de um ritual fúnebre.


Também não posso olvidar de que entre as gentes, possa existir alguém que, cansado das lutas renhidas dessa vida, já sinta nas profundezas do seu ser a aproximação do momento de dormir o último grande sono. E nessa hora, deseje ouvir dos anjos uma sinfonia que lhe enleve a alma, a semelhança do acalanto que, ao tanger o fantasioso pavão para bem longe ─, afastava a inquietude da criançinha, deixando-a enfim, dormir o seu sono sossegado.


Ensaio por Levi B. Santos


Guarabira, 28 de fevereiro de 2009




24 fevereiro 2009

REMEMORANDO A ESCOLA BÍBLICA DE ALEXANDRIA

.................Biblioteca de Alexandria - século I DC



A cidade de Alexandria teve a honra de haver produzido o primeiro instituto cristão de ensino superior. Foi de lá que surgiu a primeira escola bíblica de que se tem notícia. No século II ─ os cristãos veementes partidários da fé ─, eram defensores ardorosos da Bíblia como livro de revelação, e por hipótese nenhuma admitiam que o Livro Sagrado fosse alvo de estudo ou de análise, até porque analisar é examinar à luz da razão. Este deve ter sido um dos motivos que levaram à lamentável destruição de um acervo de quase 700.000 livros da maior biblioteca de todos os tempos.


Tito Flávio Clemente, filho de pais gentios, nascido em Atenas em 150 DC, converteu-se ao cristianismo e associou-se a Panteno na qualidade de professor assistente. Sofreu grande perseguição por sua postura, ao preconizar que à filosofia antiga cabia o papel de pedagogicamente, ajudar a encaminhar os gentios para Cristo. Para o crente daquela época só existia uma doutrina necessária e útil: a sua fé. Clemente viu-se constrangido a combater esta atitude, mostrando sempre que a filosofia é a serva da sabedoria. Ele dizia: "os gregos foram educados para Cristo por intermédio da filosofia, como os Judeus foram por intermédio da Lei." Todos pensadores cristãos a começar por Clemente, descobriram elementos cristãos na filosofia grega. Sabe-se, para citar dois exemplos, que Santo Agostinho cristianizou Platão e Tomás de Aquino cristianizou Aristóteles.


O prólogo do evangelho de João traz para a história do pensamento cristão, o conceito do “LOGOS”. O primeiro a usar esse termo foi o filósofo Heráclito de Éfeso, cidade onde o evangelista João, escreveu a sua epístola. Filo, filósofo judeu, também via no “logos” a ideia divina do mundo e o meio pelo qual Deus opera nele. No primeiro versículo do capitulo primeiro de João, estabeleceu-se o ponto de contato muito natural entre a doutrina platônica das idéias e a Teodicéia Cristã: “No princípio era o logos(verbo), e o logos(verbo) estava com Deus, e o logos(verbo) era Deus”.


São João nos apresenta o Logos como a luz “que ilumina todo o homem”. Clemente via na Luz a “fonte do conhecimento”. Clemente trabalhou muito para que houvesse a possibilidade de colaboração entre a fé e a razão. Ele entendia que a filosofia cristã jamais ia de encontro às verdades da fé, claramente formuladas pela igreja. A noção de que a filosofia era um obstáculo à fé, provinha mais do medo do fiel ser considerado um apóstata ao fazer da escritura sagrada objeto de estudo, ou análise humana. A sombra temerária desse pensamento, nem que seja de uma forma sutil, ainda hoje exerce influência entre nós.

Atualmente, não se está lançando livros à fogueira como aconteceu em Alexandria, mas sem que se perceba, a marginalização contra aqueles que procuram se aprofundar no estudo da escritura sagrada, continua de forma dissimulada.

Entre o apóstolo Paulo e Tiago, vislumbramos um embate emblemático entre a fé e a razão. Paulo pregava que somos justificados pela fé e não pelas obras. Tiago em seus escritos fez uma aparente oposição, quando disse: “vedes então que o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé...". Nenhum dos dois estava errado. O que acontece, é que em nossa dialética, às vezes, somos mal entendidos, pois o que vemos e sentimos, quando passamos para a linguagem, nem sempre é compreendido pelo interlocutor, como esperávamos que fosse.


Não podemos desprezar a filosofia. Foi ela que fez do livro dos provérbios de Salomão, um corolário de pensamentos altamente edificantes para o nosso caminhar. Muito embora, o sábio Salomão nos instantes finais de sua vida, tenha se entregado à idolatria, sabemos que esse fato não invalida de maneira nenhuma o que ele deixou escrito. Ora, se tomarmos a própria palavra "filosofia"(= amigo da sabedoria), e a sua significação, iremos constatar que Davi, Salomão, Jeremias, o próprio Jesus, Paulo, entre tantos outros, extrairam das circunstâncias da vida memoráveis lições, que ainda hoje, repercutem como pilares básicos e indevassáveis do saber.


Não resta dúvida de que a fé nos faz alçar vôos altíssimos, porém é a razão que nos puxa para baixo, a fim de que possamos manter os nossos pés no chão. “Vigiai e orai[...]” ─ diz a Palavra ─ uma não pode prescindir da outra. Através da oração exercitamos a fé, ao passo que é no vigiar que colocamos a razão em ação.


Faço votos a Deus, para que este campo que Ele tem nos oferecido aqui na internet, continue como canal de diálogo sadio e frutífero, a fim de que possamos cada vez mais, como diz a Bíblia, nos trasformar pela renovação do entendimento. Nesta grande Escola da Vida, não importa a cor, ou tonalidade (denominação religiosa) que escolhemos como vestimenta de nossa fé. O que importa é que caminhemos juntos, como fazem as cores do arco-íris: todas unidas, mas cada uma conservando a sua individualidade própria.



Saudações fraternas aos irmãos e amigos da UBE

Fonte bibliográfica: História da Filosofia Cristã de Etienne Gilson e Philotheus Boehner


Guarabira, 24 de fevereiro de 2008
Levi B. Santos - http://www.levibronze.blogspot.com


18 fevereiro 2009

QUANDO SOU JOIO E QUANDO SOU TRIGO




Graças a Deus, por Ele ter me permitido mesmo tardiamente, conhecer o “porquê” do preconceito que tinha contra os que não professavam a minha fé. Preconceito este, que durante muito tempo em minha vida encharcou-me a alma com a lama e o ranço da intolerância. Agora, aos meus sessenta e dois anos de idade, fazendo um retrospecto, cheguei à conclusão de que o meu coração foi preparado e adubado desde a mais tenra infância com um único propósito: o de conceber só as sementes do trigo. No resguardado campo do minha plantação, eu só podia admitir o trigo. Quanto ao joio eu aprendera a enxergá-lo só nos outros, concepção essa reforçada diuturnamente através dos alertas de minha mãe, que em tom ríspido falava: “Olhe, meu filho! Você é um crente ouviu? Não se misture em hipótese alguma com esses moleques de rua”.


Foi por esse tempo de minha formação juvenil, que de forma inconsciente, foi semeada no campo fértil do meu coração, uma sementezinha de joio, que fazia me ver como uma pessoa privilegiada, de primeira classe. Aprendi por essa época, como olhar as pessoas de classe inferior (os incrédulos) de soslaio, como quem enxerga um animal irracional. Enfim, era considerado pela minha comunidade religiosa como o trigo da parábola. No entanto, era junto aos moleques de ruas (tidos como joio) que eu fazia às escondidas, mil estripulias. A meu ver, secretamente, eu podia fazer de tudo junto à molecada. Contanto que os meus pais de nada soubessem, em minha imaginação, estava seguro do meu lugar no panteão das moradas celestes. A semente do joio representada pelo egoísmo, pela prepotência, pela estupidez, e pela mentira já tinha germinado em minha mente de criança, sem que eu e meus pais tivéssemos consciência. A santidade que diz: “separados do mundo”, vendara os meus olhos para não enxergar o óbvio. Assim como o apóstolo Pedro queria que os gentios se comportassem como judeus, quando ele mesmo às escondidas se servia de práticas pagãs, assim eu também me comportava. Na rua era um diabinho, e em casa um santinho da mamãe e do papai.


Lembro-me bem que entre meus “amiguinhos incrédulos” havia um “moleque” desbocado e de compleição física avantajada que acusávamos sempre de ser o culpado, quando nossas ações más eram descobertas pelos adultos. Ele era o nosso “bode expiatório”. Tudo que saia errado, dizíamos: é culpa daquele ali. E mandávamos o mesmo desaparecer desabaladamente, para não ter que dar satisfações ─, numa reedição daquilo que faziam os filhos de Israel na época de Moisés, quando transferiam os seus pecados para um bode que depois era solto para desaparecer sozinho pelo deserto inóspito.


Imaginem o que seria de muita gente graúda que hoje vive tirando onda de santinho, se não fosse o tal “bode expiatório?”. Só que essa gente se ilude ao pensar que o nosso semelhante escolhido para “bode expiatório”, tem o poder de retirar o joio de seus fingidos corações, deixando o trigo intacto.


Distante mais de meio século dos tempos de minha meninice, por incrível que pareça, ainda vejo pais e mestres (que no dizer de Paulo já deveriam se alimentar de sólidos) cantando a mesma ladainha: “Nós somos trigos, os outros são o joio”. Esse pressuposto foi explorado brilhantemente por Sartre ao cunhar a célebre frase: “O inferno são os outros”.


Eu perguntaria ao nobre leitor:


Por acaso, o nosso roçado de trigo cercado com muros aparentemente indevassáveis, são realmente só de trigo?


Deus parece estar dizendo: “Oh! Que triste engano homem! O trigo é muito parecido com o joio, e ao teu débil olhar, parecem ser a mesma coisa”.


Seríamos tão mais convincentes e sinceros se admitíssemos que em nossas atitudes e racionalizações, ora somos trigos, ora somos joios. Mas algum leitor poderá contra-argumentar:


─ Sendo assim, estou diante de uma contradição, pois a Bíblia revela que de uma mesma fonte não pode jorrar água doce e água amargosa.


Se em cada pessoa só existisse um tipo de fonte ─ o leitor estaria com a razão.


Só que essa assertiva não resiste a uma boa análise, pois na realidade existem duas fontes: uma é a fonte de vida e outra a de morte ─, cada uma com seu tipo de líquido.


A história registra que alguns antigos ao reconhecerem a dualidade existencial, simbolizada pelo joio(metáfora do mal) e pelo trigo (metáfora do bem), imaginavam que o ser humano fosse possuidor de duas almas: uma boa e outra má. Assim é que Xenofonte em sua obra: “A Vida de Ciro”, sobre certo nobre persa de nome Araspe, o qual teve conduta errônea para com Pantéia, uma bela escrava, assim declamou: “Ó Ciro, estou convencido que tenho duas almas; quando a alma boa domina passo a praticar ações nobres e virtuosas; mas quando a alma má predomina sou constrangido a praticar o mal. Tudo quanto posso dizer quanto ao momento é que minha alma boa é encorajada pela tua presença, tendo assim obtido o domínio sobre minha alma má”.


Uma versão cristã análoga a de Xenofonte, foi a que Paulo proferiu diante dos Romanos (7; 21): “Acho então esta lei em mim, que mesmo querendo eu fazer o bem, o mal está comigo”.


A respeito do “trigo” ─ como metáfora do bem, e do que é verdadeiro; e do “joio” ─ como metáfora do mal e do que é falso, podemos assegurar que: quanto mais profunda for a espiritualidade do crente, maior será a sua percepção para entender esse conflito humano que fez o apóstolo Paulo num momento de arrebatadora intuição, assim se definir: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?”(Rom 7: 24).



Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 18 de fevereiro de 2008

14 fevereiro 2009

A HORA DO APELO




Os católicos têm a sua hora sublime: a hora do Ângelus ─ também conhecida como a hora da “Ave Maria”. Lembro-me, era bem criança, quando entre o cair da tarde e o começo da noite, precisamente às 18 horas, a sinfonia de Gounoud cantada por um tenor invadia os lares, deixando em mim um sentimento nostálgico. Ali, eu compenetrado participava da despedida solene do dia para entrar melancolicamente no mundo das trevas noturnas. Esse ritual dolente era executado todo o final do dia. Ainda hoje, essa penetrante sinfonia, que minha mãe considera diabólica, me comove pela sua tranqüilizadora e suave melodia.


Por essa mesma época, freqüentando as Assembléias de Deus, eu tomava parte de um outro ritual, desta feita nos finais de cultos de pregação do evangelho ─ cultos de cunho proselitista. Meus pais me diziam que a “hora do apelo” era o momento mais sublime e importante do culto, na qual deveríamos ficar de olhos fechados numa reverência silenciosa e especial.


Como sempre, de forma inquieta, eu conversava e ria com outros amiguinhos durante o desenrolar do culto. Porém, ao chegar a “hora do apelo”, me via como se estivesse vestindo a camisa de meu time: torcendo por números. Festa boa era aquela em que o Diabo perdia de goleada: 6 ou 8 X 0. Saía decepcionado quando um grande culto terminava com apenas uma alma salva. Esse placar apertado me deixava furioso. Nesses cultos, quanto mais restrito se desenhava o placar, mais corinhos eram cantados pelos irmãos, em tom solene e baixinho, para sensibilizar os pecadores visitantes, e eu ficava olhando para a porta de entrada do templo numa expectativa ansiosa de ver uma pessoa levantar a sua mão. Torcia desesperadamente, e no final, após ser cantando muitos corinhos, me via triste por aquele minguado resultado, para um culto tão propalado pela cidade. Nas noites em que isso ocorria, eu saia acabrunhado da igreja.


Lembro-me de um pregador, já cansado de tanto pedir “venha aqui a frente, venha!”, ficou tão furioso que disparou: “Tu que rejeitastes aceitar Jesus como o único e suficiente Salvador, tu mesmo que estás me vendo, quem sabe se um carro ou um bonde não te tragará a vida antes de chegares ao teu lar!”. Mesmo assim, com tamanha ameaça, a partida terminava em: 1X0.


Depois do culto, agora já no calçadão defronte a igreja, eu ficava atento aos comentários dos membros: “Ó povo de coração duro!!” ─ um afirmava. Outro disparava sem nenhuma cerimônia: “a culpa é do pregador!..., disse muita lorota, e não se ateve a Bíblia”. Ao que outro respondia: “Se eu soubesse que ia sair daqui de cara mexendo, não tinha nem vindo”.


Passaram-se 55 anos (mais de meio século), e cá estou eu assistindo a reprise dessa “hora do apelo”, que para não soar tão feio, agora é chamada de “hora do convite”. Vejo suavidade só na mudança do termo, pois a forma violenta e mal educada como é tratada a alma que se recusa a ir lá para frente, lá para o púlpito, é de uma indecência impar. Já vi gente sendo conduzida ao altar, presa pelos braços, tentando de todos os modos se libertar dos algozes.


Sem o recurso da hora do apelo ou do convite, o evangelho de resultados está morto. Sem o recurso da força, não há outro meio desse vergonhoso proselitismo ser disseminado.


É, mas hoje, na modernidade, já existe gente treinada para fazer valer a máxima do “apelo” como parte mais importante do culto. Já existem cursos e recursos para levar a emoção aos píncaros, a fim de trazer as almas chorosas aos pés da cruz.


Para se ter idéia do que o marketing da hora do apelo pode fazer, vejam o absurdo de que fui testemunha, alguns anos atrás:


Perguntando a um irmão se ele sabia onde estava residindo certo pregador, que era perito na função “Hora do Convite”, e que fazia tempo eu não o via, ele respondeu:


─ Ah! O irmão Fulano de Tal está trabalhando agora nos cemitérios.


─ Como meu irmão! Se explique melhor ─ pedi -lhe de modo afável.


─ É que ele está ganhando mais almas nas cerimônias fúnebres, do que na própria igreja. Lá, as almas já estão fragilizadas, sendo desta maneira, muito mais fáceis de ser ganhas para Cristo.


─ E como é o seu estilo de pregação nesses momentos em que a família do morto encontra-se naquele clima de choro e grande tristeza ─ indaguei, já pensando na sua trivial resposta.


─ Meu irmão, ele senta o sarrafo. Mostra o inferno de uma forma tão atroz e convincente, que as almas se rendem aos montes, com medo do fogo eterno.


Saí dali aturdido, pensando com os meus botões: “Não há arma mais mortal e mais temida pelo homem que a ameaça em nome de Deus, principalmente quando ela é dita na hora solene e tradicional do APELO”.


A hora do Ângelus assim como a hora do “Apelo” têm tudo a ver com trevas. A hora da Ave Maria, é uma hora triste por anunciar o inicio das trevas da noite. A “hora do apelo”, essa sim, é medonha e cruel, porque revestida de um falso caráter solene, anuncia as trevas da ignorância num lugar que deveria ser reservado ao que é Divino e Sagrado.



Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de fevereiro de 2009






11 fevereiro 2009

DE VOLTA AO PARAÍSO UTERINO



Tudo que enfrentamos em nosso cotidiano, sob a forma de sentimentos de dor, desamparo, alegrias, angustia e nostalgia, não passa de uma ação repetitiva daquilo que experimentamos pela primeira vez, de uma forma inconsciente nos nossos primeiros momentos de vida. O Sábio Salomão deixou escrito em seu Livro de Sabedoria: “nada há de novo debaixo do sol”. Em analogia podemos dizer: nada há de novo na existência humana.


O choro deve ter sido a primeira expressão, a primeira linguagem, nos primeiros minutos de nossa vida. Este seria o primeiro e impressionante retrato do nosso ser: músculos da face e da boca contraindo-se e se relaxando ante um forte sopro vindo dos pulmões a extrair das cordas vocais um estranho e fundo gemido. A nossa velha expressão de dor e desamparo nascera ali no mesmo leito daquela que nos abrigara por longos nove meses. Desamparo, pela expulsão violenta e bisonha, do “paraíso uterino”, onde tão felizes e bem acomodados estávamos.


Ficou registrada desta forma, a primeira memória no disco virgem do nosso cérebro. A saudade daquele paraíso, a dor, o choro, continuam a nos marcar pela vida afora. Ativamos esta memória, renovando a sensação daqueles sintomas, toda vez que nos sentimos rejeitados, incompreendidos, enfim, quando sofremos a perda daquilo que nos causava tanto prazer. A vida é assim mesmo. Vivemos a repetir aquele primeiro ato, toda vez que somos jogados de uma maneira brusca e selvagem, em um mundo frio, cruel e desumano.


A outra conseqüência da perda do “ninho” em que estávamos aconchegados, nos vem sob a forma de “solidão”, que é uma repetição do primeiro desamparo sentido pelo bebê, ao ser cortado o laço que o unia a mãe. Esta sorrateira solidão aparece depois da dor, da angustia e do choro. O consolo, não muito tarde virá, sob a forma de uma instrumentalizada esperança, a lutar contra a angústia e a nostalgia daquilo que se perdeu.


A cada dia, o homem em seu desenvolvimento, imagina retirar do mundo algo de novo que o maravilhe e forneça a energia necessária para continuar vivendo, sem, no entanto, pensar que a VIDA É UM ETERNO RETORNO. A fé passa a ser o único veículo que o levará de volta àquele simbólico jardim de delícias chamado EDEN, lugar onde nunca deveria ter sido expulso.


Ter fé é sonhar acordado e ver o invisível com os olhos do coração.


O homem agora ri, pois no além desejado não haverá choro. No entanto, este riso é a repetição do seu primeiro prazer, quando realizou a primeira mamada, bem junto ao coração daquela que por longos nove meses lhe deu guarida ─ onde, depois de refeito ─, fechou os olhos, dormiu, e fez a sua primeira e fantástica viagem através do mundo sobrenatural dos SONHOS.



Ensaio por: Levi B. Santos.
Guarabira, 11 de fevereiro de 2009

05 fevereiro 2009

UM CÉU DEMASIADAMENTE HUMANO




No filme “Amor Além da Vida”, o personagem de Robin Williams, um racional neurologista, depois da morte da esposa sofre um acidente de automóvel vindo a falecer. Para a surpresa do espectador, o médico acorda dentro da paisagem de um quadro que ele admirava muito em vida, pintado por sua querida esposa. A bela cabana, o límpido e tranqüilo lago, e a floresta exuberante pintados na tela transformaram-se em seu sonhado céu. E ele passou a viver prazerosamente dentro da imagem do quadro que tanto imaginou durante a sua vida.


Assim como o médico do filme, não podemos fugir dos meandros de nossa fértil imaginação, e ao menos alguma vez na vida pensamos na morte e no porvir. Imaginamos sem dar por isso, um céu particular, como um refúgio recôndito de nossos medos, angústias e tristezas. Nesse paraíso individual que imaginamos, na verdade, está imbuído o desejo de não perder o que se tem: o medo de perder nosso corpo, nosso eu, nossas posses e nossa identidade. Daí pensarmos em um céu cujos valores mentais são representados por elementos terrenos ao alcance da visão, como o ouro, diamantes entre outras preciosidades.


Pensamos, exercitamos a imaginação, sonhamos ou descrevemos um céu demasiadamente humano. Não atentamos para o que diz o Livro Sagrado, quando relata o céu como algo inimaginável, como está bastante claro nas palavras do apóstolo Paulo em I Timóteo 6,16: “Aquele que tem, Ele só, a imortalidade, e habita na luz INACESSÍVEL; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder sempiterno”.


Enquanto estivermos vivendo aqui na terra sob o império dos desejos, não poderemos como pobres mortais, ter a capacidade de aquilatar o que é ter tudo e não sentir falta de nada. Por mais que nos esforcemos, não conseguiremos entender como é viver num lugar onde não há mais necessidade de esperança, nem de anseios. Da completude que iremos vivenciar em Deus, por sermos reles humanos, hoje nada sabemos. Então, sem dúvida, podemos afirmar que por hora, esse céu é inexprimível, indefinível ou inimaginável. Não quero dizer com isso, que é pecado ou proibido pensar o porvir. Só que esse pensamento nosso é utópico, pois não podemos entrar na mente de Deus, para saber o que está reservado para nós. Desse modo, toda imagem que fizermos do céu será pura especulação.


Alguém poderia dizer que o “Céu” é uma tentativa do homem, de fugir de seu destino carnal mais certo, que é retornar ao pó, ou então uma desesperada busca por se perpetuar em outro mundo, numa outra existência, para continuar vivendo eternamente, dando vazão ao desejo de potência mais íntimo de não findar nunca, procrastinando seu ser, suas vontades e desejos; perpetuando-se por séculos sem fim, continuando num mundo sensitivo de prazeres e delícias, negando a própria natureza de todas as coisas, e a sua própria, onde tudo nasce, cresce e morre.


Pensando bem, será que a satisfação irrestrita de todos os nossos desejos é a via para a felicidade futura? Será que os nossos anseios na outra vida estarão unicamente limitados à área do “TER?”. A ótica mundana identifica o indivíduo pela fórmula: “eu sou = o que tenho e o que consumo”. A ótica divina ou transcendente, me parece, aponta para um caminho inverso, o caminho do SER, que não é movido pelos desejos possessivos e carnais.


Na linguagem judaico-cristã, a figura do herói é a do “mártir”, isto é, daquele que se despoja de tudo que TEM, e dá a sua vida por uma causa nobre. Esta causa, sim, pode estar vinculada ao âmbito do SER. O mártir é justamente o contrário do herói pagão vitorioso, cuja demonstração de satisfação é medida pelo que conseguiu destruir, pelo que arrebatou de bens, pelo orgulho, pela fama e poder, enfim pelo paradigma do TER.


Se a imagem que eu faço do céu ou da imortalidade é baseada literalmente no TER riquezas preciosas para desfrutar, valorizadas como o ouro, cristais, pedras preciosas e moradas suntuosas que encantam os olhos e enlevam os sentidos, é porque, lá no fundo escondido do meu eu reside a semente da “teoria da prosperidade”. Teoria essa, já abertamente incorporada por aqueles que fazem da quantidade de riquezas e bens, parâmetro para medir se o sujeito está ou não sendo abençoado por Deus. Os magnatas e marajás da “prosperidade” não gostam de falar na vida após a morte, justamente por já se considerarem de posse das delícias consideradas por eles de “celestiais”, como jatinhos, carrões, piscinas térmicas com ondas artificiais, banheiras revestidas de ouro, mansões com portas e janelas de cristais resplandecentes, enfim, tendo tudo o que deseja ao simples estalar de dedos.


No hinário “Harpa Cristã” ─ um dos mais conhecidos no meio evangélico ─ existem letras que nos inundam de emoção, e podem até nos levar a pensar num céu pelo módulo TER, como é o caso do hino de número 26. O autor desse hino fala de uma cidade cujos muros são de puro jaspe, as ruas são de ouro e cristal, rios com margens juncadas de lírios. É fácil pensar assim: “aquilo que eu não tive o direito nessa vida, terei com fartura lá no céu”. Entretanto, o que hoje me parece extremamente difícil, é imaginar o céu pelo módulo SER, no qual, a concupiscência dos olhos, a inveja, a dissensão, a competição, a ganância, o ressentimento, o ciúme, a vingança, a idolatria, e o amor ao dinheiro, não tenham mais lugar em nosso “Ser”.


Alguém poderia perguntar: É falso o que ansiamos como céu?


A rigor, se refletíssemos melhor, compreenderíamos que, na maioria das vezes, o que sentimos ou pensamos para depois da morte, está ligado ao desejo de continuar vivendo esta vida, esta nossa vida mortal, sem seus males, sem o tédio e o sofrimento.


Como desejar o céu de uma paz verdadeira, quando somos forjados desde a mais tenra idade a ser um competidor selvagem, que nunca deve perder, buscando incessantemente ser o melhor, ou o maior. Fomos forjados para ser jogadores no grande tabuleiro desse mundo, forçados a viver numa guerra sem fim de egos exaltados. Somos movidos pela sutileza desses instintos, que não deixam de se imiscuir na base das ações mais pias que praticamos. É com esses elementos terrenos que pintamos o quadro do nosso céu imaginário para depois nos introduzimos nele, como o neurologista do filme de ficção, que tomou o quadro para si e armou o seu céu com aquilo que tinha de mais prazeroso em seu lar.





Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 05 de fevereiro de 2008