13 fevereiro 2010

A FORÇA DA ‘IMAGO’ PATERNA

............................................"MOISÉS" - de Michelangelo


Pela quarta vez ele sentia-se dominado por um desejo premente de rever o seu herói. Nas três vezes anteriores que o visitara, conseguira retirar alguns fragmentos que estavam escondidos no porão de sua infância.

Assim que chegava à velha Roma, ele se dirigia apressadamente a Vincoli, onde fica situada a igreja da San Pietro. Lá passava horas e horas contemplando e analisando a monumental estátua de Michelangelo ─ Moisés com as tábuas da Lei.

Após subir os degraus íngremes da solitária Piazza, se dirigia logo a um canto reservado e silencioso da igreja, e ali ficava a mercê dos seus sentimentos inescrutáveis e maravilhosos; sentia como que sair da obscuridade interior, algo que fazia dele próprio mais um, no meio da turba estática diante do seu grande líder, ao pé do Monte Sinai.

Dessa vez, já aos setenta e três anos de idade, provou de um êxtase mais intenso, ao olhar minuciosamente a estátua do seu carismático líder hebreu, Moisés. Tão perfeita era a escultura, que ele parecia estar sentindo a explosão de cólera irradiada de sua face. Em meio ao deslumbramento sentia passar por sua cabeça, toda a epopéia do fundador da nação hebraica de que tanto ouvira falar quando criança na sinagoga, por ocasião das preleções emotivas dos Rabinos, seus mestres.

Diante da fenomenal estátua via desenrolar no seu ser, todo o romance familiar de uma criança que cultivou uma relação emocional com seus genitores, especialmente o pai. Revisitavam-no naquele momento, os contos de fadas que lhe imprimiram a necessidade de se ter sempre como consolo, um guerreiro vencedor e salvador da pátria, ante as adversidades. De frente para seu Moisés petrificado, ele resgatava fatos de sua infância congelada, em que fantasiado de herói recebia o cetro das mãos de seu pai. Ao mesmo tempo se via introjetado naquela imagem, que de uma forma inconsciente lhe trazia o gozo de se sentir revestido da autoridade paterna a comandar seus discípulos analistas nos mistérios da alma humana.

Absorto na contemplação demorada da estátua de Moisés, como nunca tinha acontecido nas outras vezes, parecia ouvir o clamor do povo Hebreu. Ali, junto a imagem de seu grande líder, sentia o tumulto e o alarido do povo que transgredira o seu Deus e a sua lei, ao erigir um “Bezerro de Ouro” para adoração. Nesse clima, o velhinho cientista em sua imaginação, via o seu comandante se preparando para jogar fora as tábuas da lei, as quais estavam apoiadas em sua mão direita e pressionadas contra o tronco. De repente, com o olhar fixo na estátua, tem a impressão de que o líder hebreu petrificado domina a sua ira e pára sua ação violenta, que se iniciara segundos antes.

Terminado o seu solene culto interior, desceu as escadarias da Igreja de San Pietro pela última vez, pois, sofrendo as dores de um câncer na mandíbula, sucumbiria seis anos depois.

Naquela que foi a última incursão pela sua apaixonada Roma, ele fizera uma revisão, ou seja, uma auto-análise de tudo que experimentara na sua marcante viagem. Alguns questionamentos que assomaram dentro de si ficaram sem respostas, como esses:

Como poderia ser considerado “ateu”, se estava vivenciando algo sublime, vivendo o paradoxo de não entender a atração e o fascínio irresistível que aquela imagem perfeita de Moisés exercia sobre si mesmo?

Como poderia dizer que era “ateu”, se no seu peito ardia um sentimento atordoante e magnífico de admiração por aquela obra de arte, imagem do representante de Deus e símbolo maior da nação Judaica?

Como poderia ser ateu, o velho que no fim de sua vida ainda se comovia com uma réplica da estátua de Moisés de Michelangelo em sua banca de cabeceira?

Mais verdadeiros teriam sido os seus compatriotas, se o tivessem apelidado de “a-religioso” ao invés de “ateu”.



P. S.:

Aos setenta e três anos de idade, Freud em uma de suas inúmeras correspondências endereçadas ao amigo e confidente, Pastor protestante Pfister, assim escreveu:

[...] por mais bondosamente que o analista se comporte, ele obviamente não pode encarregar-se de substituir a Deus e à Providência diante do seu cliente.”

É também dele essa frase:

“Aqueles que brigam com Deus podem estar reencenando na esfera religiosa a luta 'edipiana'que não conseguiram vencer em casa”.




Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de fevereiro de 2009



FONTES:

................1. Moisés e o Monoteísmo – Obras de Freud - volume XXIII (Editora Imago)
................2. Moisés de Michelangelo – Obras de Freud – Volume XXIII (Editora Imago)
................3. Cartas ente Freud e Pfister – Editora Ultimato




10 comentários:

Edson Moura disse...

Leví meu mestre Bronzeado, este teu texto sobretudo esta imagem que usou para decorá-lo, me deixaram, assim como à Freud....estáticos diante fenomenal escultura.

É claro!No caso de Freud, o encanto estava na "figura de Moisés", já no meu, a magia está na escultura de Michelângelo...ou Miguel Angelo, também chamada de "Moisés de chifres". (chifres esses que só recebeu dos artistas por um equívoco na tradução da vulgata)

Sou apaixonado por obras de arte...e tudo que é belo.

Falando em belo: Seu texto é uma beleza!

Abraços mestre!

Marcio Alves disse...

Mestre Levi

Este seu ensaio Freudiano se reveste de imortalidade pela indescritível cena de Freud diante da estatua de Moisés feita por Michelangelo, relembrando e retirando do tesouro escondido no porão de sua alma os sentimentos e pensamentos de sua doce infância na fé da crença judaica.

Ainda mais pela beleza magnífica desta obra de arte, pois a beleza é um dos grandes símbolos de Deus!!!

Abraços

Danilo disse...

Belo ensaio Levi!

Eduardo Medeiros disse...

Que cena!!! já pensou, estar alí ao lado de freud enquanto o "culto a-religioso" acontecia no mais íntimo dos seus pensamentos e emoções?

Parafraseando Carlos Drumond de Andrade, "lutar com deus é a luta mais vã..."

Eduardo Medeiros disse...

Ah, Edson, bem lembrado o caso dos "chifres de moisés", o maior mico da história da arte rssssss

Unknown disse...

Incrivel coincidência Mestre Levi.

Minha mais nova postagem também aborda uma luta com Deus.

Em forma de cordel, trago a tona a luta de Jacó com Deus e o mais interessante é que Jacó prevalece...rsrsrsrs

Maravilhoso texto Mestre Levi; até quem duvida de Deus, só duvida porque teme que ele exista.

Anônimo disse...

Sim, como negar a influência do divino e do místico na vida e na obra de Freud? Mais uma bela reflexão.

Abraço.

F. Nietzsche disse...

Caro mestre Levi, é assim que te chamam por aqui?

Me responda, não seria a admiração da obra de Michelangelo por Freud uma reminicencia de sua alma por tão nobres homens, tanto o artista quanto o modelo.

Não sentiu em sua alma o que o proprio autor sentiu ao esculpir a estátua de um um homem poderoso, não estaria Michelangelo reproduzindo na perfeição do monumento a sua propia ligação com tão nobre ser humano, pois toda vez que um grande homem para diante de outro, mesmo que este já tenha morrido, ele fica estupefacto, pois sabe que assim como ele, aquela alma não era um simples cidadão, mas um super homem que aprendeu a superar a si mesmo.

Assim sentia Freud quando diante da estátua percebia na propia alma, a do artista em se entusiasmar com a sua obra que representava não somente a perfeição da arte mas a ligação de duas almas gigantes da humanidade, assim ele ao perceber esse em lance também participa desta comunhão formando ali no tempo uma trindade de homens divinos que seriam indispensáveis para a humanidade, somente uma grade alma poderia captar tão enlace de gerações que sem encontrão rompendo o tempo, para viver num só estante a apoteose de almas divinas no tempo e nos espaço em que se admira uma obra de arte.

Levi B. Santos disse...

Prezados amigos da C.F.G (Edson, Márcio, Eduardo e Isaias)


Nunca li sobre um "ateu" tão apaixonado pelos personagens bíblicos(especialmente Moisés), como foi Freud.

Sem sombra de dúvida, a educação que ele recebeu do Judaísmo e também do protestantismo o marcou por toda sua vida.

A sua descoberta do "inconsciente", ao invés de afastar o mundo ocidental de Deus, aproximou-o ainda mais da esfera Divina.

Freud sempre encarou sua missão a serviço da humanidade, como uma religião.

A luta básica básica de Freud nunca foi contra a religião em si, mas contra o dogma religioso.

Abçs a todos


Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Caro Homônimo de Nietzsche


Quanto à tremenda admiração de Freud por Moisés, penso que era movida por um profundo desejo de exaltação, latente em sua alma , antevendo o dia em que seria reconhecido como o cientista que desvendou os segredos da alma.

Não era assim que ele via o seu líder Moisés  o homem que transmitiu os mesmos sentimentos de exaltação a um povo eleito pelo seu Deus?

Desse modo, ao contemplar a magnífica estátua do Moisés de Michelangelo, Freud, se fundia com a escultura, em seus sentimentos de grandeza.


Apareça sempre, meu caro filósofo


Levi B. Santos