17 agosto 2010

QUE BOM O ESPELHO TER SE QUEBRADO!


Ele adorava se por à frente do espelho. Passava horas e horas, embevecido, fitando a sua imagem naquela lâmina refletora presa na parede do seu quarto, logo acima de sua velha escrivaninha. Interessava-se bastante pela a imagem no espelho, por achar que era só sua e de mais ninguém. Ali, ele passava horas e horas em êxtase, absorto, olhando os mínimos detalhes impressos pelo tempo, no seu rosto.

Certo dia, um vento forte arrancou o seu espelho da parede e o despedaçou no chão do seu quarto, privando-o do gozo do auto-enlevo, que o fazia, não sentir a falta de ninguém. Apavorava-lhe, depois desse incidente, a idéia de que ficaria impedido de apreciar a sua bela fisionomia pelo resto da vida. A falta do espelho trouxe-lhe muito desespero e ansiedade. “Como poderei, agora, ver a minha face? Como poderei saber como estou? Como estão as janelas da minha alma que são os meus olhos?” — perguntava de si para si. Deixara-o mais tranqüilo, a notícia de que um primo viria morar com ele e compartilhar do seu quarto.

“Por que andas tão triste?” —, foi a primeira pergunta que o primo lhe fez. A frase que acabara de ouvir, realmente, coincidira com os sentimentos mais profundos de tristeza que estava a experimentar naquele instante. Esse fato constituiu-se na senha milagrosa, a fim de que ele pudesse substituir o espelho quebrado pela opinião do seu primo, a respeito de si. O espelho que falaria sobre si, passaria a ser o outro. Doravante, seu primo, seria o “espelho” a quem ele recorreria para saber como estava o seu ser. A imagem sua refletida no espelho seria, agora, traduzida pelo que o outro iria relatar, observando as janelas da alma, em suas ondulações sentimentais diárias. Ele, que pensava que sua vida após a quebra do espelho não tinha mais razão de ser, agora, sentia a pulsão de vida fluir, pois ser visto pelo outro, passou a ser o motor de sua existência. As esperanças se reacenderam em seu peito, quando ele disse de si para si: “Se o outro me vê, logo existo”.

Com o tempo, pode perceber que o “primo-espelho” estava lhe oferecendo mais atrativos que o velho espelho quebrado, pois, passara a lhe interessar o engrandecimento de sua própria imagem, ao se servir da linguagem do outro para “gozo” próprio.

Depois, foi que veio compreender que ao fazer do outro seu espelho, estava corroborando que o “seu desejo era o desejo do outro”. Na aceitação da linguagem do outro, como se fosse sua, ele estava compensando o narcisismo perdido com a quebra do espelho original.

Agora, ele já mais amadurecido, anotava tudo que vinha a sua cabeça. E não é que já se enfronhava pelo mundo da filosofia! Entre as suas primeiras anotações, estavam essas: “O meu mundo resulta da minha percepção de mundo, e da percepção de mim no mundo pelo outro, e da percepção que tenho do outro” — “Do espelho estilhaçado na infância dos afetos, nasceu a ALTERIDADE” — “Que bom, o espelho ter se quebrado! Se assim não fosse eu nunca elegeria o outro como espelho de mim”.

Na experiência construída no diálogo entre os dois primos, formou-se um campo comum de reciprocidade, em que as abjeções de um, quase sempre arrancavam do outro, pensamentos que eles não sabiam que já existiam dentro de si de forma latente, antes de viverem juntos sob o mesmo teto.

A última frase anotada em seu caderninho de filosofia foi essa: “Cada um deve emprestar seus pensamentos para ampliar a compreensão do outro”.


P.S.: A quebra do espelho primitivo narcisista fez surgir os relacionamentos mútuos entre dois seres humanos. O fato de cada um ser o espelho do outro, constituiu-se no fator “sine qua non” para o aparecimento da INTERSUBJETIVIDADE. A síntese entre “Eu e TU” funda a intersubjetividade, que diz: “sou nomeado por ti quando falas sobre mim, ao mesmo tempo, que sentes ser nomeado por mim quando eu falo de ti”.


Ensaio por Levi B. Santos, baseado na peça “Entre Quatro Paredes” de Jean-Paul Sartre, e no “Estágio do Espelho” de Jacques Lacan.


Guarabira, 17 de agosto de 2010

13 comentários:

Oseias B. Ferreira disse...

Levi,

O seu "espelho" me chamou a atenção pelo fato de eu estar lendo, agora, o livro "Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo" de Carl Jung, no qual li sobre o espelho, porém, sob um ângulo um pouco diferente. Diz Jung: “Quem caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com Ά persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira”.

Obviamente o "espelho" esboçado em seu texto está em um contexto diferente, mas achei interessante colar esta citação, pois existe alguma relação, ainda que estreita.

Levi, o "Deus" construído pelo labor teológico não poderia ser este ser descrito por ti, no qual se faz "consciente" de si mesmo ao se "relacionar" com sua "criatura" cuja “adoração contemplativa” o torna “existente”, por assim dizer?

Levi B. Santos disse...

OSEIAS


Não sei se dá para fazer uma aproximação entre o espelho de Lacan e o de Jung. Desde que se faça uma ginástica pode-se conseguir alguma coisa.

O espelho de Lacan funcionaria assim: eu não chamo a mim de Levi, o outro sim, é quem me nomeia de Levi. Sobre o que ele imagina ao meu respeito quando me chama de Levi, só ele o sabe.

O drama dos dois primos do ensaio postado está bem de acordo como o “Carnaval”, que é a nossa vida de relação.
Na falta do espelho original para rir de mim mesmo, eu, agora, me divirto com a cara mascarada do outro, enquanto ele se diverte, olhando a minha máscara. Se nessa dança, o equilíbrio entre mim e o outro se rompe, eu corro o risco de ficar obcecado com o que o outro pensa de mim.

Vamos dialogar mais sobre as nossas máscaras, máscaras essas que segundo Jung “operam como mediadora entre o nosso ego e o mundo externo”.

Abraços,

Levi B.Santos

Esdras Gregório disse...

Sabe gosto de sair, ver gente ser visto por gente, avaliar notar perceber, ser avaliado notado e percebido. Me re-ver e me re-perceber no olho do outro.

O que em mim vejo no meu espelho vejo o suficiente, mas quero voltar para verme de novo nos olhos do outro. Ver-me é alto vaidade repetida de mim e para mim e a partir de mim até e nos olhares dos outros.

Olhar me só com meus olhos não é suficiente uso os dos outros para verme melhor, de outros ângulos de outros níveis.

Assim como também no campo do conhecimento não vejo o mundo somente com meus olhos, uso também os dos filósofos materialistas poetas místicos.

Levi B. Santos disse...

GRESDER

Lançaste a senha para a convivência entre os diferentes, ao escreveres esta pérola:

“...uso os olhos dos outros para ver-me melhor, de outros ângulos de outros níveis.”

Em analogia vou citar uma pérola de SARTRE:


Minha imagem
No espelho aprisionada,
Eu a conhecia tão bem...
Na falta do espelho,
Eu vou sorrir... Mas meu sorriso
Vai pro fundo dos olhos do outro,
E sabe Deus o que ele vai virar.

Elídia :) disse...

o senhor discorreu lindamente a questão do "espelho"...q provocação interessante, texto sutil e agradável! Me sentiria muito honrada se permitisse a publicação de seu texto em meu blog...não tão ilustre quanto o seu, mas onde "despejo" um pouco de mim...Abraçs.

Levi B. Santos disse...

Prezada Elídia


Fique a vontade para republicar qualquer dos artigos postados neste blog.

Pediria só que colocasse o link do blog abaixo do texto reproduzido.

Sou grato, mais uma vez, pela sua ilustre presença nesta sala.


Abçs,

Levi B. Santos

Anônimo disse...

Levi,

Lembro-me da personagem (rainha) do conto de fadas (Branca de Neve) que depende do espelho "mágico" para manter seu ego quanto à própria beleza.

Certo dia sua beleza fora superada na visão de tal espelho, sendo assim, neste momento, "o espelho quebrou", rsrs, quebrou o encanto.

E agora? Encarar a verdade? Pois é, neste conto a rainha caminha para fazer o mal.

E nós, quando nosso espelho "quebra"? Encaramos a realidade ou desejamos fugir matando aquilo que nos tomaram?

Isso apenas pode ser respondido de nós para nós mesmos, rsrs.

Belo texto.

Abraços,

Evaldo Wolkers.

Anônimo disse...

Esqueci de dizer: "Que bom que o espelho quebrou", rsrs.

Evaldo Wolkers.

Marco Alcantara disse...

Gostei muito Levi ótimo texto.

COmpetente como sempre.

Abraço!

Marcio Alves disse...

LEVI

Texto altamente esplendoroso e reflexivo, trazendo a luz, a compreensão da vital e suma importância do outro em nossa vida.

Neste sentido, ninguém é uma ilha, pois o que seriamos de nós sem o reflexo do espelho do outro?

Ao mesmo tempo em que o outro é revelador de nós mesmos, é também formador e modelador de nós.

Portanto, o velho e desgastado, porém verdadeiro chavão “me diga com quem tu andas, eu lhe direi que és”, permanece como atual até os dias de hoje.

Abraços

Levi B. Santos disse...

Prezado Evaldo


Agora, com nosso espelho original quebrou-se, temos de nos contentar com o outro e aceitar de bom grado o que ele acha de nós. E haja paciência! (rsrsss).



Marco Alcântara

Sou grato pelas palavras de ânimo.

Faça desse recanto a sua casa, comentando bem a vontade (rsrs)


MARCIO

Reforçando o que Gresder com muita propriedade, falou em seu comentário:

"Devo usar os olhos do outro para ver-me melhor"

Abçs,


Levi B. Santos

Eduardo Medeiros disse...

E quando acontece muitas vezes do outro nos vê de uma forma que nós temos certeza de que não é verdadeiro? Ficamos espantados e vamos logo retrucando, “não, eu não sou assim”...mas o outro que nos vê, nos vê também nos interpretando a partir de si mesmo. O outro também nos constrói ou desconstrói. E não é isso que tem acontecido no meio dos amigos confraternos?

“Se o outro me vê, eu existo”. Mas como eu existo? Se não há mais espelhos, qual referência de imagem eu tenho de mim mesmo? Estamos “condenados” a nos construir nessa intersubjetividade, mas não há a possibilidade do nosso “eu construído” se diluir tanto, que passaríamos a existir somente na dependência do que o outro vê em mim? OU é realmente impossível nomearmos? E a imagem que havia antes do espelho ser quebrado? Era totalmente falsa?

Levi, eu to aqui viajando e falando comigo mesmo...rsssssss mas por favor, não leve em conta a minha ignorância psicológica.

Levi B. Santos disse...

EDUARDO

Seu primeiro questionamento:

“...mas não há a possibilidade do nosso “eu construído” se diluir tanto, que passaríamos a existir somente na dependência do que o outro vê em mim?"

Se o meu EU se diluiu tanto, é porque não houve reciprocidade no relacionamento.
Sobre essa relação “EU – TU”, gosto muito da explicação ontológica de Martin Buber, que diz o seguinte:

“O EU se torna EU em virtude do TU. Isto não significa que devo a ele o meu lugar. Eu lhe devo a minha relação a ele. Ele é o meu TU somente na relação, pois, fora dela, ele não existe, assim como o “eu” não existe, a não ser na relação”.

Segundo questionamento:

"E a imagem que havia antes do espelho ser quebrado? Era totalmente falsa?"

Recorro a Lacan para te explicar:

“Na experiência do espelho (primitivo) o sujeito se identifica com algo que não é; ele acredita ser o que o espelho lhe reflete, mas acaba se identificando com um fantasma”.
O “mito de Narciso”, fala desse primeiro espelho, onde mostra o indivíduo extasiado imaginando que está diante de um ser (espírito) extremamente belo, pousado na lâmina de água. A autocontemplação o fez se afogar no seu próprio fantasma.

Apesar de o espelho primitivo ter se quebrado, a ilusão egótica não nos abandonará por completo. Ela, com certeza, aparecerá em certos momentos de nossa vida (rsrs)