07 janeiro 2011

A “SOMBRA” NOSSA DE CADA DIA



Há que se rever os fundamentos do “humanismo” maldito de nossa civilização que elaborou o maniqueísmo de que devemos ser luz e não trevas, de que devemos valorizar a claridade em detrimento das sombras.

Nosso desafio maior é compreender como essa “dualidade psíquica” foi deformada pela cultura. Luz”, “trevas” e “sombras” são metáforas que traduzidas revelam muito de nossas funções estruturantes. Estas três instâncias não são inconciliáveis ou inimigas, por isso mesmo, devem ser reintegradas, e não rejeitadas.

Detemo-nos, aqui, sobre a “sombra” — que na realidade nada mais é, que aquele nosso lado oculto não atingido pela “luz”. Um emblemático hino cristão tão ouvido em nossa infância, mas pouco analisado do ponto de vista psicológico, prenuncia um encaminhamento para a síntese entre luz e escuridão — trata- se do significante hino: Deus está nas Sombras”.

O mito das origens, no livro de Gênesis, desenvolve uma dinâmica permeada por um desejo latente de se jogar para fora, o lado escondido ou oposto da moeda que simboliza o humano. No entanto, é nos evangelhos que se pode observar um movimento contrário ao realizado no mito do gênesis, onde um Homem vai em busca do outro lado da moeda que foi perdida ou jogada fora no início de nossa formação bio-psíquica: “Eu vim buscar o que se havia perdido” — disse Jesus. O livro de Isaias fala, figuradamente, das duas faces dessa moeda que foram separadas, mas que devem ser reintegradas: “O Lobo habitará com o Cordeiro” ( Isaias 11:6)

Cristo, profundo conhecedor da alma humana, em suas parábolas sempre evidenciava que não se devia separar os dois pólos aparentemente opostos de nossa psique — vide história do “Joio e do Trigo” —, na qual o Mestre dos mestres deu mostras de que esses dois elementos deviam viver juntos. Há uma tendência inata do homem querer separar o que é “mal” (joio) do que é “bem” (trigo). Nunca poderemos expulsar de nós os afetos indesejados ou contraditórios, e, quando pensamos que o fazemos, estamos simplesmente a projetar aquilo que racionalizamos como “o mal” (o joio) no outro diferente de nós; e isso, está na raiz de todo o preconceito e de toda intolerância. Infelizmente, no meio evangélico, o que se vê pregar como santificação e salvação não passa de uma esdrúxula tentativa (anticristã) de ficar livre do lado profano (eu estou salvo e os outros condenados). Tentar separar o “joio” do “trigo”, antes de tudo, significa projetar no nosso semelhante, partes de nossa obscuridade rejeitada.

A história registra que alguns antigos ao reconhecerem a dualidade existencial, simbolizada pelo joio (metáfora do mal) e pelo trigo (metáfora do bem), imaginavam que o ser humano fosse possuidor de duas almas: uma boa e outra má. Assim, é que Xenofonte em sua obra: “A Vida de Ciro”, sobre certo nobre persa de nome Araspe, o qual teve conduta errônea para com Pantéia, uma bela escrava, assim declamou: “Ó Ciro, estou convencido que tenho duas almas; quando a alma boa domina passo a praticar ações nobres e virtuosas; mas quando a alma má predomina sou constrangido a praticar o mal. Tudo quanto posso dizer quanto ao momento é que minha alma boa é encorajada pela tua presença, tendo assim obtido o domínio sobre minha alma má”.

Ao temermos aceitar esses dois pólos, como partes intrínsecas e inseparáveis de nossa natureza paradoxal, estaremos, de certa maneira, evitando o que é primordial ou necessário: a SÍNTESE entre esses dois arquétipos estruturantes de nossa personalidade. E fazer a síntese dessas duas instâncias é tornar-se íntimo de sua “sombra”. O psicanalista, Jung, uma vez disse: “A Sombra é a pessoa que preferiríamos não ser”.

Muitas vezes, para que o outro não tenha acesso às nossas vulnerabilidades, inconscientemente, erguemos muros imaginariamente indevassáveis, numa tentativa vã de negar ou sufocar a nossa “sombra” de cada dia.


Ensaio por Levi B. Santos

Guarabira, 07 de janeiro de 2010

18 comentários:

Hélio Pariz disse...

Olá, Levi!

Gostei muito do teu texto e gostaria de ter a tua autorização para republicá-lo, com o devido crédito, no meu blog "O Contorno da Sombra", que, com outras palavras e menos talento, tenta seguir (até no título) o caminho que você apontou:

http://ocontornodasombra.blogspot.com/p/sobre-o-blog.html

Graça e paz!

Antônio Ayres disse...

Amigo Levi:

Penso que, exatamente nesta questão abordada por você, os líderes cristão erraram, ao interpretar a letra e não o espírito da Palavra.

Jesus sempre falou do Reino de Deus de maneira simbólica, mas, assim como os fariseus de sua época, tais líderes só enxergam o Reino de Deus literal, sob a égide da Lei (que Jesus veio substituir)e sob o dinamismo do patriarcado.

Jesus veio imbuído do Grande Self, representado pelo Pai, para trazer-nos o dinamismo da alteridade, o único que consegue enxergar a sombra e o Outro.

Jesus confrontou Nicodemos, o moço rico,o doutor da lei (que queria saber o que deveria fazer para herdar a vida eterna) e muitos outros.

Aliás, o seu maior embate foi sempre confrontar o farisaísmo e toda a cúpula farisaica.

E por que a preocupação de Jesus em realizar esses confrontos?

Do ponto de vista da psicologia profunda, Jesus queria que esses indivíduos todos entrassem em contato com as suas sombras, e saíssem daquele dinamismo infantil legalista-patriarcal.

Eles precisavam enxergar a própria sombra. Mas muitos não conseguiam. E a sombra, quando não enxergada, quando não vivida, quando não experimentada é sempre projetada no outro e o indivíduo fica psicologicamente infantilizado.

É por isso que os líderes e membros das igrejas só enxergam o pecado por todo canto.

Não enxergam a própria sombra e não sabem que os "pecados" dos outros são projeções grosseiras de seu próprios pecados.

Enquanto grassar a ignorância da verdadeira mensagem do Evangelho, o dinamismo patrircal legalista que cega o indivíduo para que não veja a sua própria sombra continuará vigindo.

E o dinamismo da alteridade, que coloca o homem em contato com a sua sombra e o humaniza, tornando-o misericordioso, como bem ensinou Jesus, ficará relegado ao obscurantismo, perpetuando a igreja como uma fábrica neuroses de todo naipe.

É tempo de fazermos,no que respeita à igreja e ao "cristianismo" vigente, a oração de Elias, em relação a Geazi: "Ó Deus, abre os olhos do moço para que veja".

Abraço do amigo:

Tony Ayres

Noreda Somu Tossan disse...

Mestre Levi, quando é que chegarei a este nível de sensatez?!

Em dois lados diferentes da mesma moeda, habitam um único ser...

Que duvida de que possa pertencer ao mesmo corpo...

Ambivalência mal compreendida, leva-o a perecer...

Pois ambos insistem em dizer que..."o inferno é o outro" (Edson Moura)

Parabéns meu mestre Bronzeado!

Levi B. Santos disse...

Prezado Hélio

Sou grato por sua visita a esse recanto.
Fique a vontade para republicar o texto em questão, e outros que você quiser pescar, aqui, nas águas turbulentas do “Ensaios & Prosas”. (rsrs)

O título do seu blog (que estive dando uma olhada) tem tudo a ver com o título desta postagem.

Um abraço e volte sempre,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Prezado professor e amigo,Tony


Senti-me exultante em tê-lo de volta aqui nesse simples recanto. O seu comentário por si só, foi uma magna aula.

Aproveito a oportunidade, para abrir as comportas do coração, e dizer que foi você quem me estimulou a rever os conceitos junguianos, principalmente,no que diz respeito aos fundamentos do cristianismo.

Lembro-me bem do artigo antológico que li no seu blog, postado em 06 de julho de 2009: “Por Que O Legalismo é Perigoso?”. Foi lendo o seu emblemático artigo que fiquei seduzido pelo tema “SOMBRA”

Faço questão de reproduzir abaixo um marcante trecho desse seu maravilhoso ensaio, que guardei em meus arquivos:

“Infelizmente, não, uma vez que, segundo Jung, o homem deve aprender a conviver e a aceitar o seu lado mais negro (que ele, em sua psicologia, chama de sombra).
Mesmo os cristãos mais sinceramente convertidos, continuam sendo pecadores e possuem, portanto, a sua sombra, com a qual devem aprender a conviver pacificamente".

"O que não acontece com os cristãos legalistas extremados. Estes, ao invés de integrarem o velho Adão – o seu lado sombra – preferem renegá-lo, recalcando-o para o inconsciente”.

Read more: http://psicoterapeutacristao.blogspot.com/2009/07/os-perigos-do-legalismo-exagerado.html

Um grande abraço de seu amigo e aluno:

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Caro Noreda

Somos todos aprendizes um dos outros. Tens a alma de poeta, amigo, e isso basta. E como poeta sei bem que me compreendes.

É nessa gostosa dialética cibernética que vamos renovando os nossos conceitos, desconstruindo-nos e reconstruindo-nos na batida cadenciada desse relógio duplo chamado "coração-tempo".

Abraços

Hélio Pariz disse...

Muito obrigado, Levi!

Já reproduzi seu texto no meu blog:

http://ocontornodasombra.blogspot.com/2011/01/sombra-nossa-de-cada-dia.html

Abraço!

Mariani Lima disse...

Oi, Levi.
Gosto muito dos seus comentários, que encontro sempre no blog do Edu. Decidi fazê-lo uma visita e evidentemente gostei de suas postagens e por esta razão o estou seguindo.
Fique com Deus!

Esdras Gregório disse...

Levi

Há muito tempo eu não tenho mais esta neurose religiosa de identificar em mim duas naturezas, uma má e uma boa. Não tenho mais lutas internas, não combato mais o lado sombrio de minha alma. Não busco desenvolver minha luz interior em detrimento de minhas trevas profundas. Sou um ser único, homogêneo, e me recondicionei a ver-me como uma síntese e não mais como um paradoxo. Tudo em mim tornou se produção espontânea do ser naturalmente voltado ao seu estado puro de Amoralidade animal.

Anônimo disse...

Caríssimo poeta, ao visitar seu "recanto" das letras, o refúgio último da derradeira flor do lácio e o abrigo mais pujante da inteligencia escassa e fugidia dos tempos hodiernos, não pude deixar de lembrar os versos magnos de meu velho tio Carlos Drummond de Andrade:
"Meu corpo, não meu agente
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança,
que eu tinha de minha mente.
Inoculá-me seu patos,
me ataca, fere, condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-me doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a todo instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna...

Anônimo disse...

...integrante do meu Id,
ofuscadora da luz,
que aí tentava espalhar-se

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil...

Se tento afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo peso
da sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto..."
Um forte abraço...
Ferreira Pessoa Roterdã Drummond de Andrade.

Anônimo disse...

Olá Papai, seu texto traz uma reflexão genial. É como se nós tentássemos decifrar pictogramas de há dez mil anos ou a nossa própria escrita interior. O que ocorre é que a verdade essencial sobre nós mesmos é o desconhecido que nos habita a cada amanhecer, a cada anoitecer... O professor Michael Kahn tem mesmo razão, ao fazer uma releitura de Freud, afirmando que somos muito mais "sombra" ou inconsciente, muito mais frutos dos processos primários, que náo conhece futuro nem passado, seres inconscientemente atemporais, guiados pelo princípio do prazer.
Parabéns pelo texto. Esta foi uma das minhas leituras no que tange ao texto, pois como você costuma filosofar, o texto é metade de quem diz (autor), e metade de quem lê.

Anônimo disse...

Vovô, eu quero um porquinho da Índia para
a ser o meu bichinho de estimação. Eu quero que você me dê um no dia do meu aniversário, e eu prometo que vou cuidar bem, e deixar você usar o "trono"(computador) só um pouquinho.
Papai leu um pouco do seu texto para mim, mas eu não entendi nada. Mas ele disse que estava muito bom.
Assinado, Gabi.
Com amor. Tchau.

Levi B. Santos disse...

Marianni

Que bom que você tenha gostado dos textos e comentários aqui postados, sinal de que teremos mais uma pessoa a interagir conosco.

Sinta-se em casa, cara amiga. Passei lá no seu blog, gostei, e vou ficar acompanhando-o

Abraços,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Gresder

É por aí, caro amigo!. Só não podemos amadurecer demais (rsrs). O que acontece quando a fruta está bem madura no galho? (rsrs)

E nos últimos dias o lobo(mal) habitará em paz com o cordeiro(bem).
Será que já estamos a desfrutar esse tempo?

Levi B. Santos disse...

Ah, esse anônimo, do longo comentário que foi dividido em duas partes é o meu filho mais velho, que labuta nas hostes do Direito e nas horas vagas vira filósofo, poeta, pastor, ensaísta.
Já ultrapassou o velho aqui, pois já tem dois livros publicados (sinto uma inveja boa – rsss).

Uma coisa ele não pode negar: é que a sua “sombra” é assim um pouco parecida com a minha; afinal nas veias de ambos correm o mesmo DNA. (rsrs)

Temos gostos parecidos, inclusive nos campos da filosofia e da psicanálise.

Tenho aprendido muito com ele. E haja paciência para ouvir as suas longas leituras e argumentações, tendo às mãos volumosos compêndios de direitos humanos (rsrss).

Vai em frente rapaz, a rapadura é doce, mas não é mole não (rsrsss)


A anônima que me mandou o recado (é minha primeira neta, de 5 anos de idade), quando me vê digitando a frente da telinha do computador, diz: “Vovô o senhor já demorou demais no ‘trono’, a vez agora é minha, ‘minimize, minimize...’”. É dessa maneira que o velho aqui é expulso do seu Éden, para assistir a neta fazer suas peripécias no “Click Jogos” e pinturas no programa “Paint”.

Eduardo Medeiros disse...

levi, sua neta é uma graça e seu filho herdou com certeza, a inteligência do pai.

você conseguiu demonstrar de modo tão lúcido e claro o tema proposto que eu vou ter que postar lá no meu botequim para que as pessoas que vão lá mas ainda não conhecem este recanto aqui também possam lê-lo.

Anônimo disse...

Amigo LEVI,

Acabei de ler este texto no Blog do amigo EDU,

Vou deixar o comentário que escrevi lá.

..........
Que coisa mais bela este texto não?!

Eu já nem vou elogiar muito para não cair numa redundância sem fim!

Sabe que ainda hoje, eu terminei de ler mais um livro, que fala sobre o Evangelho de São João, e em um dos capítulos citava a questão da "luz" e da "sombra"..

Depois passei a refletir alguns pontos: que a LUZ é tão mais clara e transparente que a SOMBRA, que a mesma passa a nos incomodar de vez em quando.

Ás vezes preferir caminhar pela sombra é mais cômodo. É como se dormíssemos em um quarto escuro, e ao abrir a janela ...aquele clarão da luz radiante do dia "cortasse" os nossos olhos. O que nos faz preferir o "escuro"..a "sombra"...mesmo que a sombra pareça ser o lado obscuro de todas as coisas.

Resumindo, nem a luz é tão forte, nem a sombra é tão cômoda...nem a luz é bem, nem a sombra é mal...pois convivemos com estes dois lados, inseridos num só corpo.

Beijo!

Que lindo o que a sua netinha escreveu...Para o "vovô"..rss

Quantos anos ela tem?!