28 fevereiro 2011

VIRTUALMENTE LIVRES



“E nos últimos dias, derramarei do meu ‘livre espírito’ sobre todos, através da INTERNET — parece ser essa, a versão dos tempos atuais para as palavras proféticas que estão escritas no Livro de Joel 2: 28”(Bíblia Sagrada).

Os avanços da tecnologia e da ciência estimulam o homem do mundo dito cristão, a fazer uma releitura ou reinterpretação dos fatos sagrados do livro que mais influenciou e vem influenciando o ocidente. Aqui e acolá, surgem vozes de convocação para uma tarefa árdua: a de reinscrever os traços da Escritura, à moda Talmúdica: uma leitura aberta ao infinito.

A divergência entre povos descendentes de um mesmo pai (Abraão) vem se tornando cada vez mais efervescente na configuração geo-política e religiosa lá no Oriente médio, com repercussão mundial.

Na raiz dessa encrenca milenar está o lema do homem paradoxal: “conseguir o que deseja, quando se deseja e como se deseja”. E isto vem ocorrendo em nome de uma “maldita/bendita” liberdade anunciada desde os tempos mais remotos, lá nas areias finas e quentes do deserto, berço das civilizações.

Pelas ondas invisíveis (como o próprio Deus) da internet, essa coisa diabólica e divina que fundou uma nova era de comunicação, faz transbordar de dentro de nossas cabeças, discursos virtuais que varrem o mundo em questão de poucos segundos.

Nossos encontros, via internet, fizeram renascer epigramas, versos, máximas, ensaios, estudos com uma velocidade descomunal, que mal temos tempos de discuti-los com profundidade.

No entanto, a despeito desses novos anseios cibernéticos, muito do que as pessoas fazem, ainda é governado por velhos modos de pensar.

Na verdade, lá no nosso mais íntimo recanto somos assombrados pelo desassossego de viver sem a proteção de alguém mais poderoso, sem uma mão mais forte a segurar a nossa. Ser dependente para nós é uma constatação terrível e insuportável, apesar de existir dentro de nós um tipo de liberdade: a de dar nomes às coisas.

Psicanaliticamente falando somos escravos dos instintos. Somos consumidos por um desejo de algo novo. Esse anseio primitivo, no entanto, se torna cansativo e doloroso, e terminamos por ceder a um “senhor mais forte”, que nos oferece o antigo fio em que nos quedamos escravos. Nossas autobiografias, caso retrocedessem a nossos ancestrais, poderiam nos fazer ver de que forma eles foram escravizados, e até que ponto nos libertamos dessa herança.Veríamos que não somos nós que falamos; dentro de nós há muitas vidas. Muito de nossa ancestralidade grita através de nossa garganta. Caminhamos em um círculo, onde tudo que vemos e que racionalizamos como novidade, já foi passado.

Usamos os pés de outras pessoas quando andamos para frente, usamos os olhos de outra pessoa para reconhecer as coisas, usamos a memória dos que se foram, para formatar as nossas ambições. Escreveu Plínio (o Velho) 77 d.C.: “as únicas coisas que guardamos para nós mesmos são os nossos prazeres”.

Será que somos realmente livres?

Como “ser livre”, se as memórias que guardamos do nosso passado, ainda regem e influenciam os nossos sentimentos no presente?

Dizemos que somos livres ao pensarmos que os conceitos que adotamos são puramente nossos, quando não passam de um somatório de influências que incorporamos no dia a dia de nossa existência. “O homem moderno vive na ilusão de saber o que quer, quando de fato ele quer o que se supõe que deva querer” (Erich From — O Medo à Liberdade)

Não podemos deixar de reconhecer que o mundo se tornou complexo demais, deixando-nos quase sem nenhuma saída para nossos dilemas, a vivenciar uma situação de carência em que os desejos não suprem o vazio da alma.

Escolhemos a INTERNET (ou ela nos escolheu?), como um bálsamo ou remédio para as nossas dores existenciais. É por ela, que enfim, encontramos a rachadura ou brecha para sonhar com a reforma do mundo, e assim, poder nos sentir VIRTUALMENTE LIVRES.


Ensaio por Levi B. Santos

Guarabira, 28 de fevereiro de 2011

Imagem: umaliberdadevirtual.blogspot.com

22 fevereiro 2011

“INVASORES – LIBERTADORES” e Seus Discursos Democráticos

Obama e Mubarak em pacto sacro-político



Democracia! Ah, democracia tão cantada em versos e prosas, tão citada em épocas de crises. Mas será que existe democracia mesmo? Será ela, um desejo irrealizável, como os sonhos megalomaníacos que temos e nunca se cumprem na íntegra? Ou ela vai sempre continuar sendo somente um termo usado pelas elites carniceiras que usam o povão como massa de manobra a fim de ter seus caprichos e interesses sociais eternizados. Lembro-me, agora, da resposta que José Saramago (prêmio Nobel de Literatura em 1998) deu a um repórter quando foi inquirido sobre a existência da tal democracia. Ele, assim, prontamente respondeu: "A democracia na realidade não existe. Na minha opinião quem verdadeiramente manda são instituições que não têm nada de democráticas, como o Fundo Monetário Internacional, as fábricas de armas, as multinacionais farmacêuticas, entre outras"

Uma breve revisão histórica se faz necessária nesse momento, porque ela pode nos ensinar muita coisa, sobre esses “ventos de liberdade” (rotulada de "vontade popular") que varreram e ainda varrem os mundos.

Pergunta-se:

Foi realmente a vontade do povo que Barrabás fosse libertado e Jesus crucificado? Cristo representava ameaça a quem? A morte de Cristo foi um consenso democrático? Mas a “história” diz que foi o povo quem decidiu. Ou foi um conselho de fariseus e chefes de sacerdotes que planejou tudo nos mínimos detalhes, dizendo: se o deixarmos vivo todos crerão Nele, e os romanos virão e tomarão nossos cargos.” (Evangelho de João 11 : 48)

Será que Sócrates foi condenado à morte num julgamento popular, para não corromper os jovens?

Os EUA se constituem, hoje, no grande império vanguardista das “liberdades e igualdades” entre os homens, mas teve o seu BUSH. E o de amanhã só Deus sabe quem será.

O império Romano, talvez tenha se constituído no maior império da história. Organizaram, é certo, um processo de reforma agrária, mas é bom não esquecer que tiveram o seu NERO.

Eça de Queiroz aconselhava que os políticos fossem trocados com a mesma freqüência com que eram trocadas as fraldas dos bebês. Disse isso, talvez, por entender que sujar as fraldas é algo que não se pode evitar. Se as fraldas - os libertários democratas - estão a todo tempo se sujando, troquem-nos, sabendo de antemão que os que virão só permanecerão limpos por pouco tempo. (rsrs)

Tomando o mundo árabe, que está hoje em evidência, como exemplo, é bom rever alguns clichês de discursos dos invasores-reformadores, que desde Napoleão Bonaparte juraram lutar pelo bem estar dos povos oprimidos (tema de uma reportagem da revista VEJA dessa semana). Uma amostra do outro lado dessa história de “ventos da liberdade” está na reportagem de Duda Teixeira: O Grito dos Jovens — os que saíram às ruas do Egito pedindo liberdade e o fim da corrupção.

Vejam, agora, trechos de discursos de grandes invasores-libertários (Veja N° 2205) que lutaram bravamente para “acabar com as tiranias locais do mundo árabe” com ações em nome da “democracia”. (rsrs):

“O povo do Egito, dirão a vocês que eu vim para destruir sua religião. Não acreditem nisso! Respondam que eu vim para restaurar seus direitos, punir os usurpadores, e que eu respeito Deus, seu profeta e o Corão” [discurso de Napoleão ao invadir o Egito em 1798]

“Nossos exércitos não entraram nas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores. Desde os dias de Hulagu (líder Mongo), seus cidadãos foram submetidos à tirania de estrangeiros... e os seus pais e vocês mesmos berraram no cativeiro” [General Sir Stanley Maude, inglês, ao entrar em Bagdad, em 1917]

“Lutamos e sentimos que vamos triunfar sempre para consolidar os princípios de dignidade, liberdade e de grandeza, para o estabelecimento de um estado independente tanto política quanto economicamente. A voz do Egito ficou mais forte no cenário nacional e o valor dos árabes ficou maior.” [ Gamal Abdel Nasser, egípcio em 1956 ]

“O mundo assistiu ao nascimento de um Iraque livre e soberano” [ Dick Cheney, vice-presidente dos EUA, em 2004, na deposição de Saddam Hussein]

“A palavra Tahrir significa libertação. É uma palavra que fala para aquele algo em nossa alma que grita por liberdade.” (Que bonito, hein?) [Barack Obama – presidente americano, há duas semanas, saudando as manifestações no Cairo]

Transporto-me, agora, lá do Egito para as Terras que foram exploradas por Dom João VI, a fim de transcrever trecho de um emblemático pronunciamento feito pelo senador Rui Barbosa, no tempo em que os “ventos de liberdade (ops! – libertinagem)” varriam a nossa jovem democracia, em 1914:

"...de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."


Por Levi B. Santos

Guarabira, 22 de fevereiro de 2011

19 fevereiro 2011

Nossas Escritas e Seus Ecos



Em Março de 2008, postei um texto no “Ensaios & Prosas” — "Vivo, Por Isso Escrevo"
—, no qual cheguei a divagar sobre o que estaria por trás do desejo premente que sentimos de passar algo de nós, ou de nossa imaginação para a escrita.

Indagava eu no ensaio: “O que será que nos induz a escrever sobre nossas experiências, sobre nossos sonhos, sobre nossas dores, sobre os nossos ideais às vezes “loucos”?. Será que a razão talvez esteja no fascínio que o poder da palavra escrita exerce, ao resistir às intempéries do tempo, ao permanecer intacta, perdurando além da nossa efêmera existência?”

Cheguei até concluir que, “quando escrevemos, nos tornamos espelhos onde os outros captam a nossa compreensão do mundo, e os significados que atribuímos aos fatos do cotidiano. As nossas emoções mobilizadas, nossos símbolos, nossas marcas estão lá registradas sob a forma de palavras. O papel é o nosso pombo-correio dos recados que inconscientemente desejamos transmitir ao nosso próximo. Se não há destinatário, perde-se a razão de nossa escrita”.

Os trechos acima, do ensaio por mim postado em 2008, veio à minha lembrança, após a leitura de um instigante artigo de Jorge Forbes — Psicanalista e Médico Psiquiatra. Presidente do IPLA (Instituto de Psicanálise Lacaniana). Diretor do Centro de Genoma Humano da USP. O seu ensaio explica com critérios científicos, o que eu deixei de dissecar, ao fazer as minhas incursões amadorísticas por esse terreno surpreendente e enigmático — o da escrita.

Achei interessante republicar o texto desse renomado psicanalista para que nós, que escrevemos na blogosfera, pudéssemos fazer uma reflexão apurada sobre a dinâmica psicológica de nossa interação transpessoal, quando passamos para o papel ou para a telinha de computador, as nossas histórias e nossas racionalizações e de como nos sentimos ao receber os seus ecos em forma de criticas, de aprovações ou de reprovações.

O texto de Jorges Forbes, que abaixo reproduzo, foi destaque na Revista Psique N° 58, encimado por este título:

O Chato e o Poeta

Freud identificava a linguagem do neurótico que, facilmente, pode ser traduzida por um texto enfadonho. Em contrapartida, o pai da Psicanálise dá pistas de uma comunicação atrativa

Freud sempre se preocupou com coisas simples, característica dos gênios: achar o novo no que todo mundo vê, mas que não enxerga. Entre suas simplicidades, ele escreveu dois artigos em 1908 que sempre me chamaram a atenção pelo tema que abordam e que assim eu resumiria: por que tem tanta gente chata no mundo, aquela que começa a contar um caso e já vai dando sono, e tem gente interessante, que contando a mesma história nos desperta e interessa?

Os dois textos são complementares, chamam-se: A Novela Familiar do Neurótico (Romances Familiares) e O Poeta e o Fantasiar (Escritores Criativos).

Bastam os títulos para termos uma ideia da anteposição entre o neurótico e o poeta, para o vienense. Freud se pergunta o que diferenciaria o poeta — no sentido geral daquele que cria e não só o que compõe versos — do homem comum, genericamente, o neurótico.

Seriam os temas que escolheriam para tratar que marcariam a diferença entre atrativos e desinteressantes? Um só falaria de coisas importantes e universais e o outro de sua vidinha?

Neurótico ou criativo?

A resposta é não, mesmo porque estamos sempre contando a mesma história, ou melhor, tentando completar uma história esburacada, a nossa. O que os diferencia é o tratamento dado ao texto. Um, o neurótico, é orgulhoso de sua história, ela é só sua: o interlocutor tem que entendê-la tal qual, nos mínimos detalhes, arriscando inclusive ter que responder a uma sabatina para provar a boa atenção. O que ele teme é que vejamos suas fantasias pessoais naquilo que nos diz. “Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias”, escreve o psicanalista. O escritor criativo, por sua vez, “quando nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes.” Freud conclui da seguinte maneira sua reflexão sobre o efeito que um texto interessante nos causa: “A satisfação... talvez seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha.” Sabido o que diferencia um relato do outro, fica a pergunta de como conseguir o texto atraente.

Partindo da questão da auto-acusação, analisemos: A primeira ideia, a mais banal – e equivocada – seria dizer que o poeta, sempre no amplo sentido, é um desaforado, um sem-vergonha. Nada disso. Melhor será notar que o poeta está mais livre do peso da expectativa do outro sobre ele, que um homem comum. Ele não fica tentando controlar como o outro vai entender o que ele diz; seria até engraçado imaginar a cena de um escritor que tentasse ao mesmo tempo escrever e impor como deveria ser interpretado.

Soluções Singulares

O poeta não teme o mal-entendido porque aprendeu que ele não é um erro, é estrutural da espécie humana, como demonstrou Lacan. E se a segurança não vem do “o que o outro vai pensar de mim”, de onde ela vem? Exatamente da certeza constitutiva do mal-entendido que o faz trocar o julgamento do outro, frente ao qual somos invariavelmente culpados, por uma responsabilidade singular, que o leva a criar histórias que recobrem frouxamente o espaço do sem palavra.

´Poeta´ vem do termo ‘poiesis’, justamente: criar, inventar, fazer. Por uma história de um neurótico, ninguém passa, só assistem a ela; por uma história de poeta, muitas outras histórias passam. Com sua posição de responsabilidade ética, e por sua estética aberta, generosa, o poeta faz com que nós também nos livremos das auto-acusações acachapantes e nos arrisquemos a inventar soluções mais singulares a nossos desejos. Deixo para comentar futuramente um terceiro tipo de texto, o psicótico. Seria, falando brevemente, aquele escrito sem pé nem cabeça, do qual só se depreende ruído de palavras e nenhum efeito de sentido. Adianto que não se deve confundir texto psicótico, com o quadro psicopatológico.

Quem diria que, além de nos explicar, Freud deu dicas para um mundo menos chato?! [Jorge Forbes]

De tudo que li sobre o olhar psicanalítico do autor de o “Chato e O Poeta”, uma coisa aprendi, e ficará guardada comigo: a de que no exercício da comunicação é de suma importância aprender a ver e a ouvir com os olhos e os ouvidos do outro, entendendo que, a essência dessa arte nunca é resultado de pretensões exclusivas. Ela, sim, sempre será mediada dentro do espaço coletivo de nossas interações.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 18 de fevereiro de 2011

13 fevereiro 2011

SOBRE O NOSSO CARÁTER EGOÍSTA



Grande parte de nossa insatisfação reside na busca da felicidade pela via egoística. Freud disse em “Mal-Estar na Civilização” – Editora Imago (pág. 85): “Há uma tendência humana de isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de desprazer”.

Diz Erich From, em seu livro “TER e SER” – Editora Zahar (página 192): “A ambição e cobiça são tão fortes, não porque sejam inerentes à natureza humana, mas devido à dificuldade em resistir à pressão pública de ser lobos entre lobos”. Há nesse livro uma referência muito emblemática, que faço questão de destacar aqui, sobre como funciona o nosso caráter egoísta:

“Eu quero tudo para mim mesmo; que ao possuir não compartilhando tenho prazer; que me devo tornar cobiçoso porque, se meu objetivo é ter, sou mais na medida em que tenho mais; que devo me sentir em antagonismo com todas as demais pessoas: meus clientes a quem devo enganar, meus competidores a quem devo destruir, meus trabalhos a quem devo explorar. Nunca posso estar satisfeito, porque não há fim para os meus desejos; devo ter inveja daqueles que têm mais e temer aqueles que têm menos. Mas devo reprimir todos esses sentimentos a fim de me apresentar (aos outros como a mim mesmo) como o tipo de ser humano que todos aparentam ser: sorridente, sensato e sincero.”

Admiramos os cavalos e as torres que se movem no tabuleiro do jogo de xadrez, e pensamos: “Ah, como seria maravilhoso se eu pudesse me movimentar como as torres, os bispos e os cavalos!” — e esquecemos o nosso potencial de “peão”, que no seu movimento gradual e constante representa a estratégia da alma no jogo da vida. Ele (o peão) aparentemente não é nada, mas dentro dele está o potencial de ser “rainha”.

O rabino, Nilton Bonder, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil, conta-nos uma história emblemática, na qual se pode perceber a raiz da insatisfação humana latente em nossa alma, alimentada pelo ideal de EGO:

Um professor procurou seu rabino para lhe pedir ajuda e mudar de carreira. Ele estava cansado de ensinar e muito invejoso daqueles que sempre tinham tempo para relaxar, podendo se dedicar a sua família e ter uma atividade mais criativa e intelectual.

“Ensinar é muito cansativo” — ele reclamou. “São tantas horas de preparação, sem contar o tempo das aulas e as intermináveis dúvidas dos alunos! Não é por acaso que não tenho nem tempo nem energia para usufruir daquilo que os outros aproveitam”.

Chegando a casa do Rabino, este, o recebeu com a seguinte frase:

Estes são os descendentes de Noé (em hebraico Noé quer dizer conveniente ou relaxado). Em outro trecho está escrito: ‘Estes são os teus deuses’

O professor então respondeu:

“O que o senhor diz é verdade, mas está escrito também que Noé ‘andava com Deus’. O que isso significa?”

O rabino respondeu:

“Cada um de nós tem o seu caminho particular com Deus. Alguns o fazem através de sua arte, outros de seu trabalho e outros de sua criação intelectual. Sempre vemos os caminhos dos outros como sendo mais fáceis e agradáveis que o nosso, já que não sabemos das dificuldades inerentes a cada caminho. Porém se você abandonar o seu caminho por outro, você vai se descobrir perdido, porque está adorando o caminho e não o objetivo. Continue lecionando e ensinando, meu filho. Trabalhe com intensidade naquilo que você se instruiu. Este é o seu caminho através do qual você anda com Deus.”

O professor então sinalizou com a cabeça demonstrando que entendera as palavras do rabino. (O Sagrado – de Nilton Bonder – página 62 e 63)

É isso mesmo, o anseio pela satisfação irrestrita dos instintos, às vezes, nos tira do lugar onde deveríamos estar, levando-nos a abandonar o caminho verdadeiro em troca dos prazeres e recompensas de um falso e idolatrado objeto. Se sou um peão no tabuleiro de xadrez da vida, o meu jogo se trava na condição de peão. O peão, apesar de ter em si o potencial de ser uma rainha, jamais conseguirá a realização idealizada de um dia, ser o cavalo, o bispo ou a torre.

O nosso caráter egoísta que visa apenas o êxito pessoal, e que tem como pilar básico o canibalismo social, só poderia dar como resultado o sistema atual em que estamos inseridos, sistema esse, que sempre será movido pelo perigoso combustível do hedonismo, da idolatria e do egocentrismo.


Ensaio por Levi B. Santos

Guarabira, 13 de fevereiro de 2011

08 fevereiro 2011

O Carnaval 2011 Faz Renascer Abraão



José Ramos Tinhorão, historiador da cultura brasileira, em seu livro — “As Festas no Brasil Colonial” — narra como a igreja católica mobilizava massas humanas para eventos de rua, e como eram as concorridas procissões de “Corpus Christi”. Segundo ele, essas solenidades tradicionais do calendário da igreja, com o tempo, foram associadas ao gosto das camadas burguesas, se misturando com o espírito das festas carnavalescas.

O vice-rei Vasco Fernandes Cesar de Menezes sobre uma procissão em Salvador, fez o seguinte relato:

Deparamo-nos com uma impressionante multidão em procissão que dançava ao som de suas violas e zabumbas, fazendo vibrar a nave da igreja. Tivemos nós mesmos que entrar na dança por bem ou por mal, e não deixou de ser interessante ver num cortejo religioso, padres, mulheres, frades, cavalheiros e escravos a dançar misturados, e a gritar: ‘Viva São Goncalo do Amarante!’

O surpreendente é constatar que essa relação lúdica e espiritual, agora, passa a sair dos armários secretos dos tabernáculos sagrados do protestantismo. A procissão católica que no século XIX se desintegrava em folia, está sendo instituída e exaltada, por nada mais e nada menos que igrejas protestantes que, nos primórdios, viam tudo isso como coisa diabólica.

Eis que os tempos mudaram. Pasmem meus senhores! Uma igreja evangélica, entre as quatro maiores em número de fiéis, acaba de exaltar um samba enredo que uma escola de samba paulista ( Pérola Negra) fez para o carnaval de 2011, o qual tem por título: Abraão – O Patriarca da Fé (rima com samba no pé – rsrs).

Com certeza, os rescaldos culturais das procissões-carnavalescas do Brasil colônia, estavam reprimidos nos porões secretos da mente de certos eclesiásticos, cujos seus predecessores as combatiam com muita ênfase, quando denominavam esses espetáculos de coisa vil e pagã.

O casamento do profano com o sagrado, enfim, pode ter sido reatado para o bem ou para o mal (não sei), como acontecia no tempo das procissões católicas que o Tinhorão pesquisou exaustivamente. Ao que me parece, a direção da igreja RENASCER ficou satisfeitíssima com o emblemático enredo, segundo divulgação do site evangélico independente — “FOLHA RENASCER BRASIL” — que, por sinal traz, o vídeo e a letra do samba Abraâmico.

Um fato bíblico, narrado no livro de Êxodo, veio agora a minha lembrança e pode, quem sabe, justificar muito bem a festa carnavalesca em homenagem a Abraão no sambódromo de São Paulo: Miriam, irmã de Arão (assessor de Moisés) comemorou com pulos e danças sob a batucada de tamborins, o sensacional feito de Javé, que permitiu o seu povo atravessar o mar vermelho a pé enxuto.

Agora pergunto eu: “Será que essa ‘imago festeira’ que ficou no imaginário coletivo ou popular, amadureceu ao ponto de ser, pela primeira vez, revivida na avenida de forma esplendorosa?” A Bíblia, por ser o livro mais rico em epopéias e histórias espetaculares, pode se tornar, daqui pra frente, um grande filão onde muitos carnavalescos ou eclesiásticos irão buscar os futuros enredos para suas escolas de sambas. Quem viver verá!

P.S.:

Para entender melhor a evolução das alas dos passistas da epopéia abraâmica, no desfile da Escola de Samba Pérola Negra, é bom que os torcedores levem suas Bíblias para verificar se o samba está mesmo condizente com a palavra de Deus. Constatando que o enredo segue na íntegra a história do Patriarca da Fé, é só cair na gandaia com muito samba no pé. (olha aí a rima)

Segue abaixo, o vídeo com a letra e melodia do samba enredo, para os fiéis começarem a ensaiá-lo, a fim de na arquibancada do sambódromo de São Paulo, não fazer feio, ao sambar e cantar sem desafinar junto com as vozes das alas das baianas, e das celebridades ondulantes em seus carros alegóricos.


04 fevereiro 2011

A Última Hora



Terminava assim as minhas noites domingueiras: de olhos cerrados, torcendo pela Vida contra a Morte, ao som do tradicional hino cristão que, ainda hoje, é usado para arrebanhar as almas em conflito entre suas poderosíssimas forças internas.

O estribilho do emblemático hino -A Última Hora- que é cantado, repetidas vezes, de modo solene ao final do culto evangélico, diz assim:


“Meu amigo hoje tu tens a escolha

Vida ou morte qual vais aceitar?

Amanhã pode ser muito tarde

Hoje Cristo te quer libertar”.


A casa de minha infância, de que me lembro com saudade não é mais a mesma que dava guarida a essa ilusão de me ver partido em duas metades: “uma má e outra boa”, de me ver como um campo de trigo em que não há joio por perto para me atrapalhar.

Agora, outros sonhos povoam o espaço sentimental dessa casa, a ponto de me deixar mudo diante da escolha fatídica do apelativo hino “cristão”.

No meu imaginário de menino não via como metáforas os termos: “Vida” e “Morte”, por isso mesmo não entendia a grande tirada filosófica de Cristo que no evangelho de São João deixou claro que, “Vida eterna é conhecer a Deus” e “condenação eterna é a ignorância a Seu respeito”.

Assim como o dia (a luz) e a noite (as trevas) se revezam ininterruptamente, assim somos nós que vivemos e morremos a cada dia. Somos condenados aos desencontros e encontros entre as pulsões de vida e pulsões de morte. O poeta Olavo Bilac chegou certa vez a dizer em um de seus versos: “Em meu peito há um Demônio que ruge e um Deus que chora”. Separar de nós essas instâncias psíquicas seria inumano, seria a própria morte.

Mas a civilização dita cristã opta secretamente por essa separação, jogando-nos diante de uma escolha impossível de se realizar. Ela quer excluir o resíduo dos sentimentos “maus”, negando a lógica dos nossos paradoxais afetos internos.

Na última hora, — personagem mítico Judaico —, foi libertado da cegueira psíquica que o impedia de enxergar a sua ambivalência interna, simbolizada por Deus e o diabo em conflito, imagens que representam os nossos dois lados obscuros que não podem ser separados e sim reintegrados para que possamos viver em equilíbrio. A Paz conseguida por foi decorrente da aceitação de seu outro lado, como parte integrante de sua natureza. Aquilo que ele mais temia — a síntese dos dois lados aparentemente opostos de sua natureza — aconteceu.

Espinosa, treze séculos depois de Santo Agostinho dizia: As afecções de ódio, de cólera e de inveja, resultam da natureza e não de um vício desta.”

Respeito o fundamentalista (ainda tenho suas crises) quando entende de forma literal o mito da revolta dos anjos, movidos pela inveja contra o Criador, sem se deter na sua grandeza simbólica que revela nada mais que a nossa ambivalência. Os mitos bíblicos são amostras das pulsões de morte e de vida latejando em nossa psique.

O meu imaginário de crente forjado na minha efervescência instintiva mexeu em meus sentimentos e desejos contraditórios, produzindo uma estranha composição de visão de mundo: então eu via que a vergonha dos incrédulos era uma vergonha escancarada, enquanto que em mim, secretamente, reinava uma inveja envergonhada e reprimida.

Diz o convertido: “Não sou mais escravo dos desejos”. Mas para onde quer que ele corra, lá está o desejo, como diz o rabino, Nilton Bonder, da Congregação Judaica no Brasil: “O Governo do desejo é sempre marcado pela maldição da carência e pela dependência total do querer".

Talvez, a ambivalência representada pelos eternos extremos denominados vida e morte, na última hora, seja substituída pela univalência ou um único desejo: “o de partir”. Só aí, com o nosso corpo de desejos já desfalecido é que poderíamos ouvir os acordes finais do nosso lado transcendental, a se esvair do nosso órgão-comandante – o cérebro -, como a última função nossa a desaparecer.

Mas aí, esse desejo de partir já não seria mais a univalência, e sim uma ambivalência, pois, o anseio de partir da última hora seria o mesmo desejo ambíguo de morrer para viver.

Por enquanto, como seres da dúvida e da ambigüidade, é melhor que vivamos e morramos um pouco a cada dia, do que ficar o tempo todo digladiando-se em querer egolatricamente só ganhar a vida.


Ensaio por Levi B. Santos

Guarabira, 03 de fevereiro de 2011