27 setembro 2012

A Trindade Bem Humana de Feuerbach




Foi lendo a A Essência do Cristianismo ― maior obra, de Ludwig Feuerbach (1804 ― 1872) —, ainda hoje muito polêmica, que pude compreender o “por quê” de Freud (1856 ― 1939) ter dedicado tanta afeição e reverência a este discípulo de Hegel, a ponto de o considerar seu filósofo por excelência. Se Freud foi o pai da psicanálise, porque não dizer que Feuerbach foi o avô desse campo da investigação da psique humana?

A antológica obra de Feuerbach, publicada pela primeira vez em 1841, continua muito atual e, muitos dos seus conceitos são objetos de análises no campo das ciências humanas.

Nesse fenomenal livro há um capítulo emblemático que despertou a minha atenção de forma especial ― o de número VII ―, que consta de oito páginas, o qual versa sobre o “Mistério da Trindade e da Mãe de Deus”. Talvez, a minha militância no meio protestante, durante a minha meninice, tenha influído em maior grau no desejo de devorar com avidez o denso livro desse humanista, filósofo e antropólogo alemão, nascido em Heidelberg ― Alemanha.

Não resisti, e resolvi trazer à tona alguns trechos em que ele descreve com uma perspicácia incomum, como o religioso percebe dentro de sua essência psíquica o que se convencionou como o “Mistério da Trindade”.

Esse inteligente autor, tão combatido pela elite religiosa do seu tempo, revela verdades profundas da psique, tanto do católico, quanto do protestante; conteúdo que transcrevo aqui, retirado das páginas 96 e 97 da recente tiragem do livro pela Editora Vozes (2007) ― edição, ao que parece, já esgotada:

“O filho (refiro-me aqui ao filho natural, humano) é em si e por si um ser intermediário entre a essência masculina do pai e a feminina da mãe, é ainda meio homem, meio mulher, não tendo ainda a consciência autônoma total, rigorosa, que caracteriza o homem e que se sente mais inclinado para mãe do que para o pai. O amor do filho pela mãe é o primeiro amor da essência masculina pela feminina. O amor do homem pela mulher, do jovem pela moça recebe a sua consagração religiosa (a única verdadeiramente religiosa) no amor do filho pela mãe. O amor do filho pela mãe é o primeiro anseio, a primeira submissão do homem à mulher.

Por isso a idéia da Mãe de Deus está necessariamente unida à idéia do filho de Deus o mesmo coração, o de um filho de Deus necessita de uma mãe de Deus. Onde existe o filho não pode faltar a mãe, o filho é inato ao pai, mas não o pai para o filho. Por que Deus o filho só se tornou homem na mulher? Por que outro motivo a não ser pelo fato ser um anseio pela mãe, pelo fato do seu coração feminino, carinhoso só ter encontrado a sua expressão correspondente num corpo feminino? Na verdade o filho permanece, enquanto homem natural somente durante nove meses sob a proteção do coração feminino, mas indeléveis são as impressões que ele aqui recebe; a mãe nunca sai da mente e do coração do filho. Por isso, se a adoração do filho de Deus não é uma idolatria, também não é a adoração da mãe de Deus uma idolatria. Se devemos reconhecer o amor de Deus por nós pelo fato dele ter sacrificado para a nossa salvação o seu filho unigênito, o que ele mais amava, podemos reconhecer ainda mais esse amor se um coração materno palpita por nós em Deus[...].

[...] O protestantismo deixou de lado a mãe de Deus; mas a mulher preterida vingou-se seriamente dele [...]. [...] O antropomorfismo é certamente disfarçado ao ser excluída a essência feminina, mas só disfarçado, mas não anulado. Certamente não tinha também o protestantismo nenhuma necessidade de uma mulher celestial, porque acolheu de braços abertos a mulher terrena. Mas exatamente por isso, deveria ser suficientemente coerente e corajoso para, junto com a mãe, abandonar também Pai e Filho”.

Foi com sua Trindade bem humana que Feueurbach demonstrou que os afetos (essência) entre “filho-mãe-pai” estavam divinizados no homem. Para ele a Trindade reunia as qualidades ou capacidades psíquicas do UNO, consideradas separadamente. Freud, na formulação do “Complexo de Édipo”, se valeu da mesma “essência” Feuerbachiana para mostrar o quanto o ser humano ocidental em seus primeiros momentos de vida encontra-se alienado a mãe para, em uma etapa posterior, se tornar ambivalente com fases ora de submissão ora de hostilidade, ora de amor e ódio ao pai.

Quem já foi criança guarda lembranças, nem que sejam tênues, do reino dessa Trindade “Pai-Mãe-Filho”, onde as fantasias e  mentiras bem pregadas suplantavam as dores dos castigos e das proibições.

Por Levi B. Santos
Guarabira, 27 de setembro de 2012

Site da imagem: amagolit.blogspot.com

16 setembro 2012

A FÚRIA DE SEMPRE




A fúria resultante da intolerância religiosa vem tomando corpo ultimamente em todo o mundo. Protestos varreram a imprensa mundial ante ontem, tudo provocado por um filme dos EUA que denigre o profeta Maomé.

 No ocidente, baluarte do iluminismo quem diria? É nesse ocidente onde se estabeleceu o histórico direito de respeitar o outro em sua subjetividade, que uma perigosa combinação de fobia e ignorância se vem preconizando contra o Islã. Não há dúvidas de que somos os maiores hipócritas, pois, como supostos herdeiros da razão não estamos preparados para aceitar aqueles que percebem de modo diferente aquilo que tem como sagrado.

Ignoramos ou fingimos ignorar que somos portadores de um impulso de tendências autodestrutivas. Com que facilidade repetimos para nós mesmos essa tão velha mentira: “isto, só está assim por causa do outro!”. Freud acreditava em um princípio que o cristianismo tomou emprestado da filosofia: o de que o nosso maior inimigo é interno e, de forma definitiva, nos pertencia. Grande verdade!

É pura balela dizer-se que se preocupa com o destino da humanidade. O que queremos realmente é a homogeneização ou massificação em que os limites individuais da subjetividade cultural desapareçam. Lá no fundo, o que queremos é continuar a ver com bons olhos normas sociais e culturais se atritarem em suas fronteiras. Dizemos que é heróico morrer pela pátria e pela religião, sem saber que o motivo desse instinto de destruição é conseqüência da falta de síntese entre nossos afetos paradoxais.

Ali Kamel, redator-chefe da revista Veja, filho de um muçulmano e uma baiana, casado com uma Judia, diz algo que devemos nos debruçar para mastigar melhor: “O ‘inimigo’ hoje acredita que fala com Deus. Para eles o apocalipse não é o fim do mundo, mas apenas uma verdade revelada, inescapável, anunciadora do Reino dos Céus na Terra. O mundo não se dá conta de que, para o neurótico em busca do Paraíso, não há diferença entre morrer para matar dezenas ou morrer para matar milhares”.

A guerra entre os "exércitos de Jesus" e os "exércitos de Maomé" — é mantida pelo mesmo e inflamável gás. Esse é o combustível que, desde os tempos bíblicos imemoriais, através dos livros ditos sagrados, continua a fazer estragos. O mito de Abel e Caim é a nossa marca humana, e como ela está tão presente em momentos como esses, em que a máxima de destruir o outro numa tentativa de apaziguar os nossos conflitos internos se torna mais presente.

O filósofo “herege” Nietzsche, foi um dos que exploraram a dúbia natureza humana.  REATIVO, como todo homem, assumiu a gravidade de seus impulsos inconscientes. Ele percebeu que por trás da doutrina religiosa existia a má consciência ou ressentimento que esgotava a força dos “seus piedosos exércitos mentais” na pretensão de um inalcançável aprimoramento moral.

Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de setembro de 2012


Site da imagem: oglobo.com

07 setembro 2012

São Ridículos? - Acerte Neles!

Foto do Club Recreativo 31 ― Alagoa Grande ― Construído em 1920



Sempre que acontecia baile no clube recreativo 31 de minha cidade natal ― Alagoa Grande (brejo paraibano), sem ser convidados, lá estávamos nós no parapeito de uma das janelas brincando de arremessar bolinhas de papeis, apostando quem acertava mais as cabeças dos casais que dançavam no majestoso salão da famosa agremiação. Sentíamos excluídos daquele ambiente em que uma classe rica dançava sem perceber ao menos que existíamos. Até ríamos de nós mesmos, por nos vermos imaginariamente dentro do recinto pedindo a mão daquelas ricas meninas para dançar e sendo por elas humilhados, rindo de nossas caras. 


Não sabíamos que estávamos, ali, exercendo a nossa gozação: era como se lá das profundezas do inconsciente, uma voz estivesse a nos dizer: “são seus alvos, acertem neles!”. Quem sabe se nesse atirar de bolotas de papel não estaríamos à procura dos nossos próprios corpos nos corpos alheios que dançavam ao som de belíssimos boleros executados pela grande orquestra paraibana, Tabajara, do inesquecível maestro Severino Araújo.

A minha patota, pela incapacidade de enturmar-se com os rapazes e as moças dançarinas, se via excluída de gozar as “delícias” daquela festa. Jogar peteca nas cabeças dos dançarinos era uma maneira de compensar a nossa baixa auto-estima. Ao mesmo tempo, ali, nas pontas dos pés, agarrados ao gradil da janela, sem nem perceber a frieza da madrugada, o nosso grupo conquistava um lugar no mundo — o de reagir sem ser visto.  

Está certo a psicanálise, quando diz: “contestar ou criticar, não deixa de ser uma maneira de conquistar um lugar ao sol”. Quando também afirma: “O homem necessita das excitações exteriores para agir. Em outras palavras sua ação é no fundo uma reação.”

E não é que comecei a perceber àquela massa esfuziante da sociedade como ridícula?! Naquele tempo nada sabia de Freud, para, pelo menos entender que me tornara um crítico destrutivo. Eles (os de dentro do clube) eram, naquela ocasião, a minha instância crítica. Comecei a achar àquela empolgação dançante regada a uísque, uma farsa. Ali, senti desprezo pela facilidade com que muitos se entregavam a frivolidade.

Guimarães Rosa narra de maneira impar o “jogo dos dois espelhos”, representativos do querer e do não querer, contidos em nosso ser ambivalente, se não vejamos:

 “Os dois espelhos — um de parede e outro de porta lateral, em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por um instante, foi uma figura, perfil humano desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento e espavor. E era — logo descobri... era eu, mesmo!. ― O senhor acha que algum dia eu ia esquecer essa revelação?.”

Mas a revelação “Guimarães-Rosiana” me diz que o adolescente que não conseguia se entrosar com os de dentro do clube, ainda existe escondido num porão secreto de minha psique. Às vezes ele se manifesta contestando os avanços insossos da modernidade; outras vezes, esse adolescente rebelde, até parece pertencer a um grupo avesso à sua família originária, querendo se afirmar como independente. De certa forma, ele continua atirando petecas de papeis nas cabeças dos que não fazem parte de seu grupo — uma maneira de, pelo menos em fantasia, reviver o prazer de bater naqueles que, ilusoriamente, não lhe davam bolas, lá no “gueto festivo” do Clube 31.

A exclusão que cultivávamos era percebida reativamente sob  a forma de ressentimento, como se nela estivesse encerrada a condição que considerávamos perfeita de olhar o mundo, tudo, porque nos esquecíamos de olhar o lado avesso ― coisa que uma sutil pergunta poderia revelar a cada um do grupo a que pertencíamos ―, tipo: ”Eles são ridículos porque nos excluem, ou somos excluídos por não enxergamos o ridículo que há em nós?”


Por Levi B. Santos
Guarabira, 07 de setembro de 2012