08 junho 2015

Seu Último Yom Kipur




Morreu na madrugada do feriado judaico da expiação, após tomar a terceira injeção de morfina. Desde o início de sua doença fizera ver que não aceitaria “a paralisia da capacidade pela miséria corporal”. Não mais suportando as dores e o odor forte e fétido que inundava todo o seu quarto, proveniente do câncer de mandíbula que necrosara parte de sua face, de forma lúcida, despediu-se de seu médico de cabeceira, dando-lhe autorização para encerrar de uma vez por todas seu intenso sofrimento. Tentativas frustradas de debelar seu mal renderam-lhe mais de trinta cirurgias e penosas convalescenças.

O barulho lá fora, provocado pelas passadas de muitos judeus em Londres a caminho das sinagogas onde realizariam seus rituais de jejum e orações (Yom Kipur), ele deve ter escutado por um breve tempo até cair num sono profundo para não mais acordar. Coincidência ou não, veio entrar suavemente na imensurabilidade do tempo em uma fria madrugada de um sábado festivo “dia do perdão” ─, cerimonial judaico que em criança junto aos familiares o deixava extasiado por seus cânticos e pela magnífica ceia final.

Fora o criador da ciência da alma, que tem na “culpa imaginária” seu epicentro. A culpa e o perdão teriam alguma coisa a ver com a escolha do feriado sagrado do Yom Kipur, para, ainda em sã consciência, praticar a eutanásia?

Ao divã por ele criado quis dar um propósito aparentemente oposto ao que de fato acontecia no divã confessionário do judaísmo. Foi longe, a pretensão de que sua ciência, um dia, geraria no homem, a ausência de acusação com a concomitante ausência de perdão. Fato este, talvez impossível diante de nossa condição de transgressor, aturdido por afetos ambivalentes provenientes dos desvãos mais íntimos de nosso inconsciente, onde guardados estão crimes não ditos e recalques de toda ordem.

O modo de pensamento talmúdico não pode ter desaparecido de nós confidenciou-lhe, certa vez, um amigo que frequentava as famosas reuniões científicas das quartas-feiras, ao notar que havia uma íntima relação entre as modalidades de interpretação do texto bíblico e a abordagem na análise psíquica. Era evidente a estreita ligação entre a psicanálise e a tradição Judaica. Não custa lembrar que no divã do confessionário da ortodoxia judaica da qual seu pai foi um membro ativo, era através da confissão da culpa a um Pai imaginário que o judeu, por ocasião do Yom Kipur, percebía-se isento ou redimido da própria dor psíquica de culpa. A figura do Superego que criara, não seria uma forma de confirmar que um pai continuava a viver no inconsciente do sonhador?

Diante de seus discípulos, reagia de modo enfático: “o analista não inclui nem exclui, não culpa nem absorve”. Foi rebelde até o fim. Quis ser senhor até do dia de sua morte, provocando polêmica entre os ortodoxos de sua nação ao escolher a comemoração do Yom Kipur para se despedir da vida.

Logo cedo aprendera da mãe a resignar-se aos ditames da condição humana: “um dia teria que retornar ao pó, de onde veio”. O que não se poderia imaginar naquela época, era que, ele mesmo, seria o capataz a dar ordem para o início da metamorfose última sentença javélica registrada no livro de Gênesis ─, tantas vezes repetida por sua genitora nas aulas diuturnas de catecismo religioso.

Por toda a cidade de Londres, seu último refúgio em vida, máscaras de gás eram distribuídas para fazer face aos terríveis bombardeios aéreos que a Alemanha de Hitler iniciara naqueles trágicos dias de setembro de 1939. “Será a minha última guerra afirmou ele ao médico que cuidara de sua saúde nos seus últimos dez anos de vida. A guerra tinha sido um tema recorrente em suas palestras. Só via duas formas de descarregar a libido agressiva que cada um carrega dentro de si: através da pulsão destrutiva (assassinatos, guerras), ou da sublimação, entendendo-se por esta última, a conversão da poderosa energia instintiva humana em criações artísticas, em produções de cunho científico, político ou econômico.


P.S.:

Freud morreu num processo de Eutanásia, segundo Ernest Jones, seu biógrafo. Eu acho necessário que nós possamos ter a coragem, em uma sociedade aberta e plural de discutir essa questão com serenidade, mesmo porque a qualquer instante nós estamos sujeitos a nos transformarmos num objeto passivo de uma decisão politica e biológica a respeito de nossa existência sem que sequer possamos ser ouvidos. Eu acho esta a maior das violências em relação a questão da minha morte”. [Jacob Pinheiro Goldberg]


  Por Levi B. Santos
 Guarabira, 08 de junho de 2015



4 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Interessante. Muitos falam de Freud mas ignoram e deixam de comentar sobre o episódio da eutanásia...

Para tentar simplificar essa questão e tratá-la fora das concepções morais e religiosas dominantes, proponho o seguinte roteiro de decisão:

1) Se o paciente nunca se manifestou prévia e expressamente por meio de documentos para que receba a eutanásia, esta não pode ser presumida para a hipótese do mesmo estar inconsciente ou com dificuldades de exprimir sua vontade.

2) Se o paciente manifestou-se favoravelmente à eutanásia, tal desejo deve ser confirmado, considerando a possibilidade de que a pessoa mude de ideia.

3) A família do paciente não pode decidir por ele e nem suprir a ausência de provas quanto ao desejo expresso da eutanásia.

4) Deve o médico ter sempre o direito de se recusar a praticar a eutanásia e ser respeitado pela sociedade, com sua identidade protegida, caso a execute.

5) Qualquer assédio para que a pessoa decida ou não pela eutanásia deve ser afastado, quer se trata de uma pressão da família, da religião ou de grupos da sociedade.

Levi B. Santos disse...

Ri,cá comigo, Rodrigão, ao perceber que você como militante no campo do Direito esboçou, de imediato, ítens de suma importância que bem poderiam fazer parte do arcabouço jurídico sobre a Eutanásia.(rsrs)

No caso, em pauta, Freud, de antemão, fez com seu médico particular (Dr. Max Schur)o trato de que quando chegasse a hora, daria o sinal para ele encerrar de uma vez por todas seu sofrimento.

Para judeus ortodoxos, Freud foi um rebelde, infiel e herege, ao tomar a decisão pelo suicídio assistido, em pleno dia do Yom Kippur.

Mas, Rodrigo, o que a Torá, na sua visão, tem hoje a dizer sobre a atitude tomada por Freud, quando diante de um quadro de sofrimento irreversível e, não se sentindo mais útil para nada, pediu para morrer?

Plagiando o personagem do N.T., Simeão, não poderia ele dizer: Agora despede-me em paz, meu Superego? (rsrs)



RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Caro Levi,

Respondendo a sua pergunta, a Bíblia diz lá em Deuteronômio:

"(...) escolhe pois a vida (...)"

Apesar do meu ponto de vista, respeito a decisão e o pensamento de cada um. Mesmo que entenda não termos o direito diante de Deus de desativarmos nossos corpos (ou contribuirmos ativamente para o falecimento de outra pessoa), não tenho o direito de julgar meu próximo pelas escolhas existenciais que fez. Eu mesmo não sei se seria forte suficiente para suportar qualquer doença até o último suspiro.

Um abraço.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Na manhã deste último sábado (20/06), li a passagem bíblica que fala da cura do rei Ezequias. Acho que tal episódio inspira entre cristãos e judeus uma ética em favor da vida.

Abraços.