24 dezembro 2016

Reminiscências De Uma Noite de Dezembro

Teatro Santa Ignês – Alagoa Grande - Pb


          De quando em vez me surpreendo assoviando uma estrofe de uma cantiga dos meus tempos de estudante ginasial. A melodia dessa canção faz a minha mente viajar para trás, suscitando-me uma regressão aos tempos do meu paraíso edênico.

Lá se vai a minha velha embarcação caminhando em sentido contrário à corrente do rio, que é a vida, corrente essa que teima em se nutrir mais do olhar para frente, do que o andar para trás. Sinto lá nos recônditos da alma, o rumor das águas do rio de minha vida pueril. Vejo dentro de mim, cenas do turbilhonar dessas águas. Elas estão represadas não sei onde, e de vez em quando, extravasam através das comportas estanques da memória, sob a forma de reminiscências. É especialmente na época do Natal, que as águas do meu passado distante transmitem um sentimento de nostalgia de algo prazeroso que vivenciei nos tempos em que o meu “eu” não conhecia a Lei que mais tarde poria dentro do meu ser a inimizade entre o profano e o sagrado.

No convés de minha embarcação, navegando para trás, encontrei o menino de 13 anos de idade, cantando alegremente num grupo orfeônico, em uma festa natalina após as provas do final de ano letivo. Os olhos da alma insistiam em querer ver o que a embarcação já deteriorada pela ação do tempo não me permitia enxergar. A velha embarcação construída há sessenta e três anos, demorou demais no trajeto inverso, e eu só pude reter ou rever a segunda parte daquela canção que tanto marcou os meus Natais pela vida afora. Essa parte da melodia foi a que o barco de memórias conseguiu resgatar, e correspondia a uma dolente sinfonia em tom menor, que eu, por toda a vida de adulto assoviara. Sem a letra, hoje considerada profana, só restou o assovio da metade da bela modinha reverberando nas cordas do meu violão.

O cérebro, esse antiquado computador, deletou a primeira estrofe da canção que cantei jubilosamente com os meus coleguinhas de classe, num salão imenso ornamentado de luzes multicores, e árvores carregadas de nacos de algodão, que mais tarde eu viria saber que eram para imitar a neve que naturalmente decoravam as árvores no natal dos países frios. Que bons tempos aqueles do coral orfeônico de minha saudosa escola. Era sob a batuta do experiente e paciente maestro que a música transformava-me em um corpo coletivo. As notas musicais transportavam-me a outro mundo, e eu me identificava com os outros, meus colegas, meus irmãos, numa efusão prazerosa de felicidade e êxtase. O que mais me interessava não era a letra da canção e sim a beleza extra-subjetiva dos acordes que mergulhava o meu coração na atmosfera harmônica indescritível carregada de uma inefável serenidade.

Essa máquina maravilhosa ─ o computador ligado a rede mundial de informação, como um poderoso cérebro, foi buscar, nos seus antigos e raros arquivos, essa obra musical monumental de autoria do nosso grande compositor Heitor Villa Lobos, intitulada "Canto do Pajé

Através do vídeo abaixo, pude adentrar de novo a Catedral do mundo estrutural e espiritual dos meus verdes anos, quando o maniqueísmo do bem e do mal, do sagrado e do profano não tinha ainda se entranhado em meu ser.

A emoção que como adulto sinto no momento, nada mais é que a REPETIÇÃO de minha primeira experiência no mundo sublime da música, refletida no meu imaginário.


Crônica por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de dezembro de 2009

13 dezembro 2016

Um Tenebroso Sonho com a República



Não raramente tenho tido sonhos angustiantes. Mas esse que tive recentemente, pela gravidade do momento que ora atravessamos, talvez tenha sido o mais estarrecedor. Não obstante, os antigos acreditarem que sonhos podem prever o futuro, na minha cética compreensão, acompanho Freud, quando ele diz que “todos os sonhos se originam do passado em todos os sentidos”. Mesmo projetado num futuro, o sonho do tempo presente tem, em seu bojo, conteúdos já experimentados e recalcados no subsolo obscuro da mente.


Sonhei que estava no início de julho três meses antes da eleição presidencial de 2018 , época em que a operação Lava-Jato, como nunca tinha ocorrido antes, vinha funcionando de forma temerária e avassaladora. Lembro bem da voz tonitruante que fez estremecer todo meu corpo: “já contamos com mais de trezentos congressistas denunciados como réus”. Manchetes dos principais jornais do país passavam por minha mente dando conta de que nossos seis principais partidos políticos estavam sem pré-candidatos à presidência da república. Ninguém estava em condições de assumir o posto maior da nação, provocando, em consequência, uma crise sem precedentes desde que o mundo é mundo.

Em minha visão, um senhor de longa beca preta, parecendo um dos ministros do Supremo, saiu-se com essa: “Eu avisei! Eu avisei que a Lava-Jato, com seu ímpeto puritano, terminaria por inviabilizar o país!” No desenrolar do sonho veio a minha percepção que o vaticínio do ministro teria começado a se concretizar em uma reunião secreta, por ocasião da recusa de um membro do Senado em assinar uma intimação enviada pelo próprio STF, nos idos de dezembro de 2016. Um detalhe do sonho, nunca vou esquecer: O senhor de preto, usando da ironia, cantarolava (baixinho, para ninguém ouvir) o último verso de ― ”FESTA” ―, música funk muito conhecida, na voz da grande intérprete baiana, Ivete Sangalo: “...Vai rolar a festa/Vai rolar/O povo no gueto/Mandou avisar.”

De repente, me vi em um grande salão ricamente condecorado. Um guarda com vestes imperiais, dirigindo-se a mim, detonou: aqui você não pode entrar, os três poderes estão se reunindo para descascar um grande abacaxi! Depois de vários jantares secretos nesse belíssimo salão nobre, as autoridades levantaram-se cabisbaixas e, tomando seus valiosos automóveis, desapareceram com destino incerto, como fantasmas evaporando no ar. Foi quando vi uma fumaça branca subindo no céu do planalto central brasileiro, indicando que haveria eleição para presidente da república: Do lado de fora do prédio vi uma grande faixa branca onde estava escrita, em letras vermelhas reluzentes, a inscrição: “A fórmula encontrada foi uma intervenção vinda do Céu!”. Por falar em Céu, pude escutar uma voz cavernosa a imitar a célebre e sábia decisão de Cristo diante dos apedrejadores da prostituta, narrada nos Evangelhos: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”

Perguntei ao guarda sobre o motivo dessa reunião secreta. Após olhar para frente, para trás e para os lados e não vendo ninguém por perto, segredou-me ao ouvido: Pelo placar de 9X1, ficou decidido que só os réus com até três processos é que poderiam se candidatar ao posto máximo do país. Pelo mesmo escore, também decidiram que a Lava Jato seria controlada por um Conselho, aos moldes do CNJ. Diante do caráter urgente prevalecera o bom senso de que não se deveria retardar o veredicto. Imediatamente, após a fala do guarda, vi uma enorme pomba falante passar em voo rasante sobre minha cabeça. Em todo seu esplendor, ela estava alí, bem evidente a grasnar em latim: “Periculum in mora!”


Em minha mente, eu tinha a nítida percepção de que a decisão tomada de urgência pela alta cúpula dos poderes não tinha agradado aqueles presidenciáveis que, apesar dos fardos pesados que carregavam nos ombros e em outros recantos, estavam na crista da onda midiática.

Como é comum em sonhos se pular em frações de segundo de um ambiente para outro completamente diferente, de repente estava eu deitado no sofá de minha sala assistindo ao Jornal da GloboNews (edição da meia-noite), do qual, só retive na memória a última fala do comentarista de plantão, especialista em política e economia:

...Talvez tenha sido por isso que o dólar subiu e a Bolsa despencou. O Mercado, as empresas nacionais/internacionais e os banqueiros não gostaram da solução acordada pelos três poderes. Os que estavam de corpo e alma envolvidos em muitas denúncias na Lava-Jato eram os preferidos do Mercado. O Mercado temia os mais puros de coração(os com menos de três processos): é que os imaturos, devido a falta de traquejo político-econômico, poderiam por tudo a perder ao assumir o cargo de presidente da república. Os barões, administradores dos bancos e das grandes empresas, apesar de confiarem no espírito poderosamente inflamável do Neo-Liberalismo, temiam que o presidente eleito, imbuído de um idealismo edênico, interferisse em suas futuras e obscuras negociatas com o poder público”.

O desfecho do sonho foi tremendamente assustador. Lembro que estiquei-me todo, ficando nas pontas dos pés sobre o assoalho de madeira de lei, a fim de me debater com mais vigor contra a água turva de odor irrespirável que inundava o salão nobre. Quando me encontrava no momento de maior agonia, lutando para que a água turva não entrasse em minhas narinas, nauseado e completamente sem forças, acordei do meu tenebroso sonho republicano.




Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de dezembro de 2016

05 dezembro 2016

“Nossa Contraditória Natureza” ─ Um Tema Inconveniente em Congresso Festivo





O Bispo empalideceu instantaneamente ao tomar consciência que o Tema do Congresso religioso seria baseado na Carta que o apóstolo Paulo deixou aos Romanos , exatamente a parte que considerava a mais difícil e truncada da Bíblia Rom. 7:19

Com antecedência, já tinha enviado passagem de avião e uma boa ajuda de custo para o famoso preletor. Mas não teve outra decisão, que a de rapidamente enviar uma mensagem curta e certeira pelo WhatsApp ao renomado pregador, implorando para que abdicasse de tocar nessa passagem tão polêmica da epístola de Paulo aos Romanos, tema que já lhe custara muitos meses de estudo e reflexão sem que até agora encontrasse lógica nenhuma na dúbia citação paulina.

Em sua agonia, tivera até sonhos em que anjos apareciam informando-lhe que aquilo que Paulo escrevera teria sido na época em que sua fé ainda estava imatura. Lembrou-se de que certa vez, ouviu um colega de ministério dizer que o apóstolo Paulo escrevera o capítulo 7 de Romanos não para ser tema de sermões em cultos públicos, e sim para ser ventilado em reuniões secretas da igreja.

Pediu a opinião de seu vice, o qual, de imediato, concordou que seria um perigo ou um balde de água fria no Congresso discorrer para pecadores ou novos convertidos sobre um tema inflamável e até mesmo contraditório, como se a contradição não fosse a característica maior do ser humano.

O bispo viajou de urgência à Brasília, a fim de consultar o Setor de Aconselhamento da igreja matriz a qual pertencia, por sinal, muito frequentada por autoridades da república, além de grande parcela de mestres e doutores em Ciências Humanas da Capital Federal.

Não gostou, ou para falar a verdade nua e crua, saiu altamente decepcionado com o que ouvira de alguns sabichões da cúpula de comando de sua instituição religiosa.
Chegou até a exclamar para si: “Meu Deus, a Igreja da qual sou um simples bispo, está mundanizada!” Nem notou que o aparente paradoxo da passagem paulina se fez presente nele mesmo, ou em seu inconsciente, ao pedir, no mesmo instante, perdão pelo pecado de “blasfêmia” ao considerar a santa Igreja desviada dos caminhos do Senhor.

Não entendera nada do que o psicólogo, teólogo e doutor Ph.D. em “Carta aos Romanos” tinha exposto sobre a essência da ambiguidade dos afetos humanos tão bem sintetizada pelo apóstolo Paulo naquele emblemático versículo. Como gravara em seu smartphone tudo que ouvira na reunião, na viagem de volta para sua cidade natal foi revendo o que os estudiosos conselheiros tinham lhe explicado a respeito do polêmico Romanos (7:19). Mas uma voz não cessava de sussurrar aos seus ouvidos: “Isto é coisa do Diabo, bispo. Saia dessa!”

Nunca que vou concordar com tamanho absurdo que ouvi dos meus superiores , dizia o bispo de si para si. Lá atrás em uma das últimas poltronas do avião que o levava a sua terra natal, a curiosidade, tal qual prurido em lugar mais sensível do corpo, estimulou-o a novamente ligar seu aparelho a fim de rever toda a gravação que fizera da fala do seu superior hierárquico:

Paulo disse algo profundo, que ainda hoje é base de toda a Psicologia individual e coletiva: Através da célebre afirmação de Saulo de Tarso aos Romanos, hoje podemos compreender que a religião não é uma espécie de luneta para observação de panoramas externos. Pelo contrário, ela é um espelho que nos possibilita olhar para dentro de nós mesmos, a fim de que entendamos que mesmo ao pregar o bem, o mal está lá escondido nos recônditos mais profundos de nossa psique ou alma”.

Torceu o nariz quando o teólogo fez, no seu dizer, uma fiel analogia da frase paradoxal de Paulo com um verso que Horácio, (65 a. C), grande poeta da Roma antiga, deixou registrado em seus escritos: “Mais na mente que no corpo jazem minhas dores/ Tudo que me prejudica, com alegria eu busco/ Tudo que me faz bem, com horror eu vejo”.

Sentiu-se mal e desejou até apagar esse trecho horripilante da totalidade do que gravara na “Clínica da Alma”, situada numa dependência da grande catedral de sua Instituição em Brasília, ocasião em que tivera a oportunidade de ouvir o Mestre-Conselheiro explicando o “porquê” da emblemática frase de Paulo “O querer bem está em mim, porém não consigo efetuá-lo”.

Paulo queria explicitar que o desejo de fazer o bem realmente habitava no homem regenerado, naquela porção nova da natureza dupla do crente; mas visto que a sua antiga e corrupta natureza mantinha o domínio, a sua porção regenerada ficava tolhida… […] Por conseguinte, o crente continuava a fazer o que odeia, sendo incapaz de praticar o que ama.”

Sentiu náuseas ao conferir a elucidação enfatizada pelo Teólogo existencialista, cuja função precípua era a de dirimir dúvidas sobre a interpretação de textos que versassem sobre a natureza ambígua ou contraditória do homem em sua totalidade. O desejo de externar o que pensava na cara do conselheiro veio à tona em seu coração: ora, o velho Adão em si já morrera, por conseguinte, não poderia admitir que continuava a fazer o que odeia. Poderia até concordar com o teólogo e conselheiro-mor de sua igreja, se ele tivesse explicitado que o "mal" podia aparecer em sonhos, pois no sono profundo não se consegue controlar a mente. Para ele o que valia mais era o estado de vigília, estágio em que o sujeito tem a capacidade de reprimir as coisas da carne que vez por outra aflora na consciência. 

Como, admitir toda essa asneira meu Deus do Céu? Como, na condição de Nova Criatura, além de mensageiro de Cristo, vou afirmar para as minhas ovelhas que o mal que não quero para elas, esse faço? inquiria o bispo, meio desnorteado. Foi quando abandonou o seu celular para retirar de sua pasta o grosso volume de 887 páginas do livro “Romanos interpretado versículo por versículo” , grande coleção da Editora Candeia, composta de seis grossos volumes, totalizando nada mais nada menos que 4.336 páginas, do autor, Russell Norman Champlin, Ph.D.
Além de ser muito dispendioso adquirir todo o Novo Testamento explicado versículo por versículo, sabia que nunca chegaria a ler tamanho calhamaço. Contentou-se apenas com o volume correspondente a Carta de Paulo aos Romanos.

Ao abrir livro aleatoriamente, como quem puxa à guiza de revelações, versículos bíblicos escritos em pequenos cartões coloridos da velha conhecida “Caixa de Promessas, o bispo surpreendeu-se com a analogia que o autor fez da célebre e paradoxal frase de Romanos 7:19, com um verso do poeta considerado por ele como um dos mais mundanos. Tremeu só ele, e não o avião, ao ler o que considerava uma blasfêmia: tratava-se de uma poesia existencialista de Olavo Bilac, um dos maiores poetas de nosso país. E não é que, repentinamente, arregalou os olhos ao se deparar com o trecho final do poema, que dizia assim:

E, no perpétuo ideal que te devora/Residem, juntamente no teu peito/Um demônio que ruge e um Deus que chora”.

Fechou o volume de quase mil páginas e clamou tão alto pelo sangue de Cristo, que acabou acordando muitos passageiros que estavam cochilando nas poltronas do avião. Dali pra frente não conseguiu ler mais nada daquele herético livro.

E haja pensamentos e mais pensamentos a torturar o bispo, que com seus botões racionalizava, agora em um surdo silêncio. Alguma coisa nele dizia: Não sei, mas certas passagens bíblicas, só vamos entender na outra vida. Para evitar contendas, enquanto estiver a frente da igreja, esse tema não será motivo de filosofices, seja de quem for, doutores ou não doutores. Ademais, o Livro Sagrado não é de particular interpretação, e ponto final.

Diante de uma das mais severas crises da história recente da nação brasileira, decorrente da falta de credibilidade, a maioria dos membros do corpo da igreja em uma votação democrática, pediu mais leveza na escolha do tema do Congresso: Em vez de assunto tão terrível e complexo, que se falasse de algo mais prazeroso, como “Vitória e Glória” que deixa todo mundo saltitante de contentamento ―, além de ser uma espécie de compensação anestesiante para o enfrentamento da realidade tão angustiante da vida que, bem diferente do ambiente sagrado, naturalmente se leva lá fora.

Ninguém é de ferro, não é irmãos? A vida, tal qual uma rapadura, já é tão dura!. Uma semana de festa, já nos aliviaria bastante — disse um empolgado membro, fazendo uso da palavra —, e isso foi o bastante para obtenção de calorosos aplausos e glórias a Deus.


NOTA:

Os trechos em itálico na cor vermelho-tijolo foram pinçados dos excertos e comentários ao capítulo 7 de “Romanos explicado versículo por versículo”, da grande coleção do Novo Testamento, de Norman Champlin Ph.D.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 05 de dezembro de 2016

25 novembro 2016

A Propósito do Discurso Xenófobo de Donald Trump





Ao ler as memórias de Carl G. Jung (1875 1961), ditadas por ele mesmo a Aniela Jaffé, cinco anos antes de sua morte, cheguei a conclusão de que o lado mau do homo sapiens anda triunfando nos tempos atuais, talvez de uma forma mais perversa do que nos tempos primitivos. Liquidar os anseios da idade média que habitam o homem de hoje é tarefa praticamente impossível.

Apesar das brilhantes descobertas e das aquisições da ciência, as vãs promessas de harmonia brandidas pelos povos poderosos aos mais humildes e marginalizados, particularmente por parte daqueles que estão no topo da pirâmide em matéria de riqueza terrena, têm sido, sem sombra de dúvida, a causa principal de todo o mal estar na pós-modernidade.

Donald Trump o magnata eleito recentemente para reger os destinos da nação mais poderosa e rica do mundo, pasmem, promete fazer um muro de separação entre seu país e o odiado México prova evidente do triunfo do lado selvagem do homem, que responsabiliza a coletividade estrangeira pelos seus próprios preconceitos nacionais. Nunca é demais salientar que a América do Norte sempre foi a sonhada Terra Prometida dos puritanos emigrantes do Reino Unido(os novos filhos de Israel). A travessia tormentosa dessa corrente do protestantismo pelo vasto mar, transformou-se em uma reedição da odisseia do idolatrado líder Moisés e seu povo através do infindável e inóspito deserto, rumo à invasão da terra de Canaã.

Todo o mal secreto do colonizador puritano percebido no outro-estranho provoca em si desagrado ou irritação. A expulsão do estrangeiro tem sido quase sempre a solução doentia ou neurótica adotada para aplacar o ódio dos poderosos aos deserdados e marginalizados. De maneira inconsciente, esse idealismo retrógrado deve ter sido plantado no coração dos que fugiram do Reino Unido para fundar nas terras da América do Norte uma Nova Jerusalém só para eles. A Psicologia mostra que esses recalques ficam submersos nas camadas mais profundas da psique por décadas ou séculos. Mas, um dia, encontrando ocasiões propícias, o que foi recalcado sai de sua latência e volta à tona sob a forma sutil ou mesmo declarada de intolerância.

Carl Jung, depois dos 45 anos de idade, já enjoado de tanto estudar ou analisar os meandros da alma humana, resolveu viajar por diversas regiões do mundo a fim de conhecer profundamente os diversos povos e suas culturas. Enfim, compreendera que para tomar consciência de suas particularidades nacionais de homem europeu branco, necessitava olhar outros povos do lado de fora de sua própria nação (Suíça). Ao realizar uma viagem ao Novo México onde habitava os índios Pueblos, confirmou “o quanto estava aprisionado ou fechado, mesmo na América, na consciência do homem branco. […] Aprendeu de certo modo a ver com outros olhos e a observar o que é o 'homem branco' quando está fora de seu próprio medo”.

A narrativa do encontro de Jung com Ochwiay Biano, chefe dos pueblos, diz muito sobre o modo como os ancestrais dos mexicanos viam o homem branco americano revestido de sua empáfia ou ar de superioridade. O psiquiatra suíço pediu para Ochwiay fazer uma descrição do homem branco que habitava a terra acima de sua fronteira a intitulada Nova Inglaterra:

Veja”, disse o índio pueblo, “como os brancos têm um ar cruel. Têm lábios finos, nariz em ponta, os rostos sulcados de rugas e deformados. Os olhos têm uma expressão fixa, estão sempre buscando algo. O que procuram? Os brancos sempre desejam alguma coisa, estão sempre inquietos, e não conhecem o repouso. Nós não sabemos o que eles querem. Não os compreendemos e achamos que são loucos!”

Perguntou então o professor Jung por que ele pensava que todos os brancos eram loucos. Ochwiay, prontamente respondeu: “Eles dizem que pensam com suas cabeças.”

— “Mas naturalmente! Com o que pensa você?” retrucou Jung, admirado.

― “Nós pensamos aqui” ― disse ele, indicando o coração.

Pela primeira vez na minha vida, disse o professor e psiquiatra (um dos fundadores da Psicanálise), alguém me dera uma imagem do verdadeiro homem branco. Esse índio encontrara nosso ponto vulnerável e pusera o dedo naquilo em que somos cegos.

Jung, filho de pastor protestante, se tornou um estudioso do fenômeno religioso. De sua incursão pelo mundo da religião criou o conceito arquétipo, presente em todos que praticam atos religiosos. Não resistindo a uma abordagem do lado religioso do índio pueblo, perguntou-lhe:

― “O senhor acredita que suas práticas religiosas sejam de proveito para todo o mundo?”. O índio, com muita vivacidade, respondeu:

― “Naturalmente, se não o fizéssemos o que seria do mundo?”. “E, com um gesto carregado de sentido apontou o Sol”.

Precisamos sorrir, ainda que de puro ciúme, da ingenuidade dos índios e nos vangloriarmos de nossa inteligência, a fim de não descobrirmos o quanto nos empobrecemos e degeneramos. O saber não nos enriquece; pelo contrário, afasta-nos cada vez mais do mundo mítico, no qual, outrora, tínhamos direito da cidadania.” [Carl G. Jung ― Memórias, Sonhos e Reflexões ― Editora Nova Fronteira]


Por Levi B. Santos
Guarabira, 25 de novembro de 2016

Site da Imagem: politicalivre.com.br

14 novembro 2016

Similitudes entre a República de Deodoro e a de Temer






● Se não sabia, fique sabendo, que o governo de Deodoro da Fonseca, iniciado em 15 de novembro de 1889, por ser provisório como o de Temer, foi marcado por intensa atividade legislativa.


Dizia-se, como hoje, que a União compunha-se de três poderes harmônicos e independentes entre si: O executivo, o Legislativo e o Judiciário.

O lucro estratosférico das empresas criadas na república de Deodoro permitia uma rápida fortuna aos que delas se associassem.

Os anúncios de jornais de 1889 davam conta de uma república fantasiosamente inventada, um país de papel, composto de títulos, certidões e contratos responsáveis por exuberantes lucros que enchiam os bolsos dos alegres e aparentemente cordiais banqueiros.

Rui Barbosa, ministro da Fazenda de Deodoro da Fonseca, com pouco mais de um mês no cargo, anunciou um programa econômico em tudo parecido com o do economista Henrique Meirelles do Governo Temer. O mote principal era o mesmo consagrado hoje: o de fugir dos empréstimos e organizar a amortização, proibindo terminantemente a contração de novas dívidas.


(Há muito de primitivismo no homem da pós-modernidade. Não seria exagero dizer que caminhamos em um círculo onde o presente já foi passado. Nesse caminhar trocam-se apenas os atores, mas o espírito ou o que faz acionar o motor de nossa ambígua história atual é o mesmo de ontem.
Para compreender porque o enredo histórico trágico-cômico, sem a participação do povo, que estamos assistindo em novembro de 2016 é uma “reprise” do que foi encenado nos idos de15 de Novembro de 1889” ―, leia o livro “1889” de Laurentino Gomes Editora Globo)


Por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de novembro de 2016


20 outubro 2016

Homem, Teu Nome é Paradoxo!




Oh, a Humanidade vive em triste condição!
Nasce sob uma Lei mas prendem-na a outra:
Tende à vaidade, querem-na humilde,
Surgiu enferma e querem-na saudável”.
(Lorde Brooke)



Vendo que o homem paga um custo muito alto ao ceder parte de seus impulsos instintuais originais para poder conviver em um mundo mais ou menos pacificado, disse Freud: “A nossa civilização está alicerçada na supressão dos instintos”.

A constatação de que o instinto não se suprime e de que, por mais que se tente, o máximo que se pode conseguir é represá-lo ou reprimi-lo, fez nascer em toda sua plenitude, o conceito de ambivalência, que também pode significar ambiguidade, ou paradoxo. E esse antagonismo vem de longe. Plagiando o messias do Novo Testamento, eu diria: quem não puder se ver como criança não vai entender nada do reino da ambivalência, do reino dos sentimentos paradoxais ou antagônicos.

Quem não passou pelos primórdios da tal ambivalência na tenra infância? Quem não lembra de que, como criança, amava seu pai e por vezes desejava livrar-se dele?

A contradição é a marca característica do ser humano” já diziam os filósofos e estudiosos da alma. Para se ter ideia de como somos atraídos por um ideal de ego para ser diferente do que realmente somos, nada melhor que alguns dados estatísticos reveladores da contradição ou ambivalência demasiadamente humana que persiste em não nos largar, mesmo já “adultos maduros”. Para que se possa perceber o quanto as imagens secretas que existem em nossa psique estão repletas de desejos antagônicos, recorramos então a uma enquete realizada nos EUA, no final do século XX:

89% dos americanos consideraram a sua sociedade demasiadamente preocupada em ganhar dinheiro; 74% responderam que o materialismo excessivo dos indivíduos era um grande problema social. Pasmem: 76%, em outro quesito, fizeram ver que ter dinheiro os deixava bem consigo mesmo; 76% desejavam ganhar mais, e 74% gostariam de ter uma bela casa, um carro novo e outras coisas dessa magnitude”.

O apóstolo Paulo, em sua epístola aos Romanos, já fazia menção a esse velho conflito. Tanto é, que num rasgo de espontaneidade incomum assim se expressou: Porque eu sei que em mim, isto é na minha psique, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. (Romanos 07: 18). Nesse mesmo diapasão, afirmou, Eduardo Giannetti, a respeito do difícil equilíbrio entre a realidade e o sonho, mundo ideal ou utopia:

Há uma guerra anticolonialista na alma de cada um. Duas verdades medem forças. De um lado, está o princípio da realidade: se o sonho ignorar os limites do possível, ele se torna quixotesco”.

Paul Tillich, em Teologia da Cultura (página 245), já fazia ver a distância enorme entre o “desejado”(aquilo que se deseja para si) e o “desejável” (de fundo coletivo – idealista): “Esse é o nosso destino melancólico desde o começo da história humana e deverá permanecer enquanto houver vida humana consciente”.

O homem, enfim, é esse ser paradoxal que enquanto prega a salvação para os deserdados e marginalizados, trabalha desesperadamente para ficar mais seguro e distante daqueles que diz amar. Temeroso da própria sociedade ergue para si, altos muros eletrificados em torno de suas casas que mais parecem fortalezas em época de guerras. O homem é esse ser que está em um movimento pendular, ora se identificando com o polo que considera “positivo”, ora com o polo “negativo” de sua ambivalência, como bem explicita Kênia Kemp no trecho abaixo, pinçado do seu antológico artigo Identidade Cultural” (“Antropos e Psique” Editora Olho D'água):

Quando queremos nos apresentar a estrangeiros para nos valorizar, trazemos à tona traços da tradição e peculiaridades que nos identificam como brasileiros: a cordialidade, informalidade e alegria. Entretanto, entre nós são comuns expressões depreciativas: 'Brasileiro é preguiçoso'; 'a terra é boa, mas tem um povinho…'. Enfim, qualquer grupo de alguma forma coloca em questão a legitimidade dos traços de sua identidade, que inclusive podem ser modificados, ampliados ou reprimidos. Enquanto forem legitimados, permanecerão”.

Esse ente dúbio sem ter ideia de que tem a alma cindida entre dois polos ou afetos antagônicos, por um mecanismo de projeção bem evidenciado na religião ocidental, acha que o mundo (e não ele próprio) é que está dividido entre ele e os outros; não percebe que nas imagens que tem dos outros que lhe trazem perigo, residem as partes negativas ou rejeitadas de seu próprio ser. Os lá de fora são, como na versão bíblica, “bodes expiatórios” para projeção de tudo quanto percebe de ruim ou pecaminoso, a fim de se sentir purificado. E o que dizer então sobre esse sonoro e belo afeto, que para contrabalançar o ódio (polo negativo) de nossa ambivalência, o denominamos amor? Segundo o famoso psicoterapeuta americano, Rollo May, “...o próprio amor passou a ser problema. Tão contraditório tornou-se na verdade, que alguns que se dedicam ao estudo da família concluíram que “amor” é apenas o nome dado ao controle exercido pelos membros mais poderosos sobre os demais.[ “Eros e Repressão” (pag. 13) Rollo May Editora Vozes]

Mas o conflito humano (ou intrapsíquico), na verdade, se dá sempre entre o que queremos ou idealizamos ser e o que realmente somos. A parábola neotestamentária do “Joio e do Trigo(Vide Link), que algum tempo tinha seus símbolos antagônicos interpretados para identificar e separar as pessoas do “bem” daquelas do “mal”, com o advento da psicologia profunda já pode ser compreendida, em sua forma mais profunda, como metáforas dos afetos ambivalentes ou ambíguos que habitam em cada ser humano. O Inferno são os Outros” célebre frase dita por Sartre , pode ser considerada uma espécie de crítica aos puritanistas, que advogavam a separação entre santos(trigo) e pecadores(joio), sem ao menos perceber que o santo e o pecador, a um olhar mais reflexivo, andam a trocar de papéis de uma maneira sutil ou quase imperceptível. A psicologia junguiana disseca, pormenorizadamente, a paradoxalidade de nossos afetos, tornando mais evidente seu mecanismo de identificação imaginária, como a ilusão de se criar uma imagem pública a partir das características que julgamos aceitáveis, deixando de fora algumas partes mais importantes e saborosas de nós mesmos” (“O Efeito Sombra” Debbie Ford)

Ao discorrer sobre a paradoxalidade da ambivalência na sociedade, Zygmunt Bauman, deixou-nos essa contundente observação:

a modernidade é uma era de ordem artificial e de grandiosos projetos societários, a era dos planejadores, visionários e, de forma mais geral, 'jardineiros' que tratam a sociedade como um torrão virgem de terra a ser planejado de forma especializada[…]. Não há limite para ambição e autoconfiança. Com efeito, pelas lentes do poder moderno, a 'humanidade' parece tão onipotente e seus membros individuais tão incompletos, ineptos, submissos e tão necessitados de melhoria, que tratar as pessoas como plantas a serem podadas (ou arrancadas se necessário) ou gado a ser engordado não parece ser uma fantasia, nem moralmente odioso”. [“O Mal-Estar da Pós-Modernidade” Zygmunt Bauman]

Traduzindo para o mundo pós-moderno, a máxima Quem nos livrará do corpo dessa morte?” dirigida aos Romanos por Saulo de Tarso, penso que ficaria mais ou menos assim: Quem livrará o nosso EU, do peso da Contradição? Quem atentar para essa brilhante enunciação da dúbia alma humana realizada pelo apóstolo fundador do cristianismo, verá que ela está em perfeita consonância com o sujeito da psicanálise, que às avessas do jargão cartesiano “penso, logo existo”, abarca o Homem Paradoxal com esta emblemática frase: Penso onde não sou; sou onde não penso”.


Meu Eu Paradoxal”


Com uma face emancipada e outra dependente
Marcado pela lei dúbia do desejo ambivalente
Vivo como irmãos, despossuídos mutuamente
Sem poder traduzir meu ser incongruente”.
[“Parte Delirante de Mim” – “Ensaios & Prosas” – julho de 2011]




Por Levi B. Santos
Guarabira, 20 de outubro de 2016