O
leitor desavisado que olhar de relance o título dessa postagem vai com certeza
pensar que se trata de mais uma bizarrice do malfadado evangelho da superstição
e da prosperidade que cresce em nosso meio numa dimensão geométrica, e que faz
a festa dos blogs de “humor cristão”. Que nada, esses relatos foram escritos
por Voltaire, há três séculos e meio (1762). Não há como negar verossimilhanças das narrativas
desse filósofo e crítico do cristianismo com o que acontece hoje sob o pano de
fundo da Igreja de Deus. Voltaire em seu “Tratado
de Tolerância” ― Editora Martins Fontes (página 116) diz algo dolorosamente
atual, no capítulo XX (Da Utilidade de
Manter o Povo na Superstição):
“Quando os homens não têm noções
corretas da divindade, as ideias falsas as substituem, assim como nos tempos
difíceis trafica-se com moeda ruim quando não se tem a boa. O pagão deixa de
cometer um crime, com medo de ser punido pelos falsos deuses; o malabar teme
ser punido por seu pagode. Onde quer que haja uma sociedade estabelecida, uma
religião é necessária: as leis protegem contra os crimes conhecidos, e a
religião contra os crimes secretos”.
“A superstição filha da religião
subjugou por muito tempo a terra inteira. Os senhores feudais faziam acreditar
os seus vassalos que São Genou
curava a gota e que Santa Clara
curava os olhos enfermos. As crianças acreditavam em lobisomem e os adultos no
cordão de São Francisco. O número de
relíquias era incontável. [...] Sabe-se que quando o bispo de Noailles mandou
retirar e lançar no fogo a suposta relíquia do umbigo de Jesus, toda a cidade Chalôns moveu-lhe um processo; mas ele teve
coragem e devoção, e acabou convencendo os habitantes da região de que era
possível adorar Jesus Cristo em
espírito e em verdade sem ter seu umbigo na Igreja. Deixou-se de acreditar que
bastava a oração dos trinta dias à Virgem Maria
para obter tudo o que se queria para pecar impunemente. Enfim a burguesia
começou a suspeitar que não era Santa
Genoveva quem trazia ou parava a chuva. Os monges ficaram espantados de que
seus santos não fizessem mais milagres; e, se os escritores da ‘Vida de São Francisco Xavier’ voltassem ao
mundo, não ousariam escrever que este santo ressuscitou nove mortos, que foi visto ao mesmo tempo no mar e em
terra, e que, tendo seu crucifixo caído no mar, um caranguejo o veio trazê-lo de
volta”.
Mas
o sarcástico, ambivalente e inteligente, Voltaire, adoça a língua ferina, bem
no final do seu ensaio. Em consonância com os ditados populares ― “uma na ferradura e outra no cravo”
(que aqui eu inverti a sua ordem), e o velho adágio “Morde e assopra”, ele termina sua fala com duas emblemáticas interrogações,
talvez dirigidas a ele mesmo; inquirições que podem (por que não?) ser
endereçadas a nós também:
“Mas de todas as
superstições, a mais perigosa não é a de odiar o próximo por suas opiniões? E
não é evidente que seria ainda mais sensato adorar o santo umbigo, o santo
prepúcio, o leite e o manto da Virgem Maria, do que detestar e perseguir seu irmão?”
O umbigo e o prepúcio,
para quem não sabe ainda, foram os pedaços mais procurados e venerados do
mártir do Gólgota ―, objeto de disputas cristãs tanto na França de Voltaire,
quanto na Itália e na Alemanha do século XVIII. Numa sábia decisão, o papa Clemente
V mandou picotar o “umbigo de Jesus” em três partes, para satisfazer os cristãos de Constantinopla, de S. José
do Latrão e da França. Mas houve quem batesse o pé reivindicando um umbigo inteiro.
Ah meu caro “herege”, Voltaire!
Se você soubesse que passados três séculos e meio desse imbróglio
umbilical/prepucial de sua era, a disputa pelo espólio de Cristo continua mais
viva do que nunca entre as facções
cristãs: Uma tem até um canal de TV para mostrar um Cristo fatiado ao gosto
do freguês.
Guarabira, 01 de março de 2013
Gostei Levi, meu mestre Bronzeado! Acredito que dispense comentário! rss
ResponderExcluirLamentavelmente a falta de temor a Deus, e os interesses escusos abundam na mente destes exploradores da fé. Mas cabe a cada pessoa procurar com zelo o que procede ou não.
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