Ligo o velho computador, que já conta com mais de sessenta a nos de uso, e tento resgatar fatos registrados em sua memória há cinqüenta e cinco anos. Porém, o cérebro ─ esta máquina eletrônica criada por Deus ─, trava, destrava, trava de novo, esquenta. Enfim, conformo-me com os pequenos e significativos fragmentos colhidos com muito esforço.
Olho e observo detidamente por longos minutos a foto encardida pelo tempo. Não há como negar, que é a expressão facial, o que chama de imediato a atenção. Não é preciso ser psicanalista coisa nenhuma, para identificar a mensagem que os olhos da foto transmitem: MEDO e DESASSOSSEGO.
Algo como uma lufada de vento frio e penetrante, refresca a minha mente, abrindo-a para ver e sentir a verdade do meu ser, captada em frações de segundo naquela foto de 1951. O meu verdadeiro “eu” estava ali exposto através do olhar inocente dos meus verdes cinco anos de idade. Menino pobre, e ao mesmo tempo rico de estranhos sentimentos, cujos olhos, a maneira de uma navalha, rompia o envoltório da carne, para retratar a solitária agonia que ia dentro da alma. Ali naquela foto, a minha atitude expectante de uma medrosa obediência, decepcionou por certo a platéia que assistia ao espetáculo, constituída por meu pai, minha mãe, uma tia que me serviu de babá nos meus primeiros anos de vida, e o velho e rabugento fotógrafo com sua geringonça em forma de caixa de engraxador de sapatos sustentada por um tripé.
Quanto atraso! Naquela idade ainda não aprendera a posar para uma foto. Isto é, não sabia representar para um público ávido de imagens fabricadas. Hoje, uma criancinha de dois anos de idade, mesmo com um coração vazio, sem querer, e atendendo aos pais, sabe esboçar muito bem um sorriso de alegria, frente a uma câmera digital.
Há algumas semanas, minha velha mãe ao observar a antiga e encardida foto, dizia para mim:
─ Eu me lembro. Estavas com muito medo do “lambe-lambe”.
“Lambe-lambe”, era como se chamava popularmente o tirador artesanal de fotos, que saia de casa em casa oferecendo seus serviços. Acho que ele tinha esse nome, por lamber os dedos, enquanto reproduzia a foto em uma bacia com água e emulsão química. A geringonça de produzir imagens tinha a cor preta, com uma cortina de pano preto em forma de fole onde o fotógrafo enfiava a cabeça, e um bisaco também preto, onde ele metia o seu braço e a sua mão direita para bater a foto. Aqueles panos pretos me metiam muito medo, pois se assemelhavam a uma mortalha.
Quinze dias após aquele sofrido dia, em que expus para os outros um sentimento que tinha tudo, menos alegria e satisfação, chega o “lambe-lambe” com a foto ampliada. Foto esta, recebida com desgosto, pois ali, não estava o retrato de uma criança alegre, que os meus pais tanto gostariam de ver e mostrar aos amigos. Ali, estavam as ruínas de uma infância remota cercadas pelo medo, que não podiam ser mais reparadas. Eu suponho, que os meus pais viram nesta foto a imagem de um menino ausente, constituída de estranheza e timidez, como uma estátua construída de pedra e cal, mais reveladora do que encobridora.
Cá estou eu, o sessentão, olhando de novo a velha e surrada foto. Recolhendo do baú da memória, fragmentos perdidos de um tempo em que fui mimado como objeto de desejos dos meus pais que tanto ansiaram pelo nascimento do primogênito. De inicio, eles desejaram cores fortes, mas só recolheram sombras. Enquanto eu morria de medo na claudicação intermitente dos primeiros passos, eles riam de prazer do meu cambalear incerto. Fui forjado no caldo dos sentimentos verdes e imaturos de duas crianças (adultos), que no frescor de seus vinte anos se tornaram pais.
A fotografia revela claramente a teimosia do meu semblante, expressão real de quem não pôde corresponder ao que os jovens pais tanto esperavam. Contudo, resta o consolo de ter estampado ali, a fiel imagem de quem se sentia realmente desamparado, triste, e ameaçado por temores vindos não sei de onde. Se hoje, neste teatro que é o mundo, sou forçado a representar, não posso negar que naquela foto ficou registrado o meu verdadeiro “eu”: todo bem vestidinho, de sapatos da moda e meias de linho como quem vai para uma festa, porém, desejoso de fugir urgentemente daquele perigoso ambiente. Com um ar de quem está contrariado, ao ver a sua alma sendo captada pelo “lambe-lambe”, para uma posterior exibição de sua tristeza emoldurada.
Crônica de Levi B. Santos. (Guarabira, 23 de Março de 2007)