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19 dezembro 2021

Um CONTO a SER EXPLORADO antes do FINAL do ANO

 



Logo na semana natalina, quando a maioria das pessoas está assoberbada de tarefas para resolver em um exíguo espaço de tempo, o convite posto acima corre o risco, sim, de ser refutado como coisa chata ou fora de propósito. Logo agora, que doidice é essa, cara!?” ─ alguém poderá ARGUMENTAR.

Como filhos da LINGUAGEM, somos atraídos pelo PRAZER que as narrativas nos confere, especialmente na forma tradicional de LIVRO. Mas convenhamos, mesmo que seja uma boa história, em uma época especial como essa, fica evidente que muitos não podem dispor de ‘horas mortas’ para se transportar a esse encantado e idolatrado mundo da LEITURA. Contudo, mesmo diante da ansiedade natural reinante nesses frenéticos dias, deixo a critério do leitor ou leitora conferir ou não a envolvente historieta. Sei que o insólito e metafórico conto de três páginas e meia ─ 'IDEIAS do CANÁRIO' ─, de Machado de Assis, o bruxo de Cosme Velho(RJ), seria devorado em questão de mais ou menos 15 minutos.(rsrs)

UMA DEIXA: no conto/ficção machadiano, o estranho e sábio pássaro é quem dá as cartas, superando até seu próprio mestre. O canário entende os mundos a partir dele mesmo, contrariando o confuso ornitólogo. O professor estudioso dos pássaros, em seu mundo de ilusória racionalidade, tateia e patina diante de um passarinho bem mais ágil que ele. O canário surpreende o ornitólogo no entendimento das nuances evolutivas existenciais de um MUNDO centrado, de forma mecânica, no idealismo cego de uma elite supostamente científica e poderosa que costuma se apresentar como dona de todo o SABER.

A quem interessar a leitura, segue, abaixo, o atraente opúsculo que, apesar de ter sido publicado no longínquo 1889, parece ter sido profeticamente escrito para os intranquilos dias atuais (rsrs): 


                                         Ideias do Canário - de Machado de Assis

Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração. 

No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam Ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. A loja era escura, atualhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão. Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume. — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela? E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito? 

— Mas, perdão, que pensas deste mundo? 

— Que cousa é o mundo?

— O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

— Quero só o canário. Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul. Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando. Não tendo mais família que dous criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos. Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros. Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...

— Mas não o procuraram?

— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareitos, ninguém sabe nada. Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular…

— Que jardim? Que repuxo?

— O mundo, meu querido.

—Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de Belchior...

— De Belchior? — trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de Belchior?

                                                        FIM

FONTE do CONTO: https://docplayer.com.br/188183228-Exercicio-1-leitura-o-texto-a-seguir-e-um-conto-escrito-por-machado-de-assis-ideias-do-canario.html



Por Levi B. Santos  

Guarabira,19 de dezembro de 2021                                                

17 abril 2021

A Primeira Comissão de Inquérito (PCI) da LÍMBIA



Sobre o planeta dos hominídeos, denominado LÍMBIA, o que se sabe é que, sob a forma de ‘Limbo’, ela já estava presente no Canto IV do ‘Inferno’ em ‘A Divina Comédia’ de Dante.

Em uma tradução apócrifa do Gênese bíblico, alguns estudiosos dos MITOS afirmam que a Límbia se originou da junção ou choque entre Sodoma e Gomorra. Na verdade, em tempos remotos, esses dois planetas entraram em rota de colisão, provocando a destruição de quase todos seus habitantes. Dizem míticos historiadores que essa grande hecatombe foi um castigo divino devido à desenfreada corrupção e prostituição que em Sodoma e Gomorra corriam frouxas. Se a tradução apócrifa, diz que o cataclismo destruiu quase todos habitantes desses dois planetas, pode até se pensar ou cogitar que alguns pecaminosos tenham escapado, só não sabemos de que forma.

Mal havia sido criada (ou inventada), a Límbia foi invadida por um miasma que deixava a muitos abatidos, e fazia outros desaparecerem como que por encanto. A maioria lá, acentue-se, era formada por místicos de pensamentos rudimentares. Todos faziam incontáveis rituais e elucubrações diárias que, mais tarde, a lógica, a metafísica, a Teologia e a Ciência tomariam para si como objeto de suas inúmeras análises.

A comunidade era ainda bem pequena e imatura, mas, devido a praga recente de miasmas, em suas mentes já dançavam as sombras da ansiedade e do medo da morte. A maioria dos límbicos asseveravam que a corrupção havia sido banida com o choque interplanetário, mas alguns não acreditavam nesse mito.

Aparentemente, eram todos iguais e pacíficos. Porém, as pequenas brigas e rixas que aqui e acolá pipocavam, eram uma prova insofismável de que o pecado da corrupção de antes não havia desaparecido por completo; melhor acreditar que esse sacrilégio estivesse apenas em um estado de latência. O certo é que devagarinho, mas bem devagarinho mesmo, o burburinho foi aumentando entre eles, a ponto de, em certa ocasião, se ouvir da multidão, o grito: “Alternativas! Precisamos de alternativas, urgente!”.

Foi aí, então, que dentre eles surgiu um senhor de alta estatura, vistoso e de porte atlético que, sem ao menos prestar suas credenciais, foi logo bradando: “Em mim foi plantada a incipiente ideia de um ser perfeito. Não adianta tergiversar sobre esse particular e onipotente dom que me foi dado de forma misteriosa!”. É de admirar que um homenzinho raquítico e sem formusura, eu diria um quase anão, surgisse de repente como que para agradar ao homenzarrão em sua indumentária espacial(ou divinal?), gabando-se a falar: “Grande senhor, vos louvo como o primeiro a nos acalmar o espírito diante desse miasma mortal! Falai-nos, somos todos ouvidos!” em tom de bajulação e com a voz miudinha e fina, deixando os outros desconfiados.

O homenzarrão, que alguns o chamavam de Seráphico, viu-se na condição de não poder ponderar com ninguém a respeito do maldito miasma. Quanto à amalucada teoria que pretensamente defendia, seus ares de misticismo denunciavam que ele acreditava piamente ter vindo de “paraísos celestiais”.

Diálogo, na acepção da palavra, praticamente ainda não existia em Límbia, mas, surpreendentemente, o grande senhor ouviu, nitidamente, alguém sussurrar o termo ‘dialética’, em Latim arcaico ou primitivo.

Certa noite, o grandalhão místico, sem conseguir conciliar o sono, teve uma espécie de devaneio onírico. Na sua visão distorcida viu algumas pessoas aglomeradas, e pasmem, além da discussão sobre o miasma que se disseminava, conseguiu escutar vindo da multidão uma frase começando pela palavra Deus’ (ou Zeus) , arquétipo que, em sua percepção, só a ele teria sido reservado o direito de O pronunciar.

Passado algum tempo, o grande místico ou seguidor de alguma entidade religiosa, (sabe lá, um remanescente dos Sodomitas/Gomorristas que conseguiu escapar do castigo divino/planetário?) ─, deu início a uma tensa reunião, tentando convencer os demais a respeito de suas supostas boas intenções. O reverendíssimo, de repente, ficou de pé e, chutando para o lado a cadeira na qual estava sentado, vociferou:

Não vos inquieteis caros irmãos, a corrupção foi banida, o que agora existe é o meu deus e o sagrado, que vocês, se quiserem, podem evidentemente perceber, em mim!. Prometo que a cura do miasma virá e não tardará!”. As palavras ditas pelo místico senhor serviram de senha para o início de outro grande tumulto.

Esse deus não é só seu, Ele também habita em nossos corações!” reclamaram, em uníssono, 11 pessoas (entre essas não estava o afoito e bajulador anão). Se servindo de ditos pinçados e decorados de um velho catecismo de sua bisavó, o fervoroso sacerdote, de pronto, arremata com bastante ênfase: “Em mim não há mácula, nem sombra de mentira. Deus conhece o meu coração, e sabe que desde o início dos séculos, eu já tinha sido o escolhido para reger o destino de vocês”.

E abriu-se o livro sagrado” que, até então, estava atado com sete fitas e selado com sete selos, para que todos pudessem estudá-lo por um certo tempo, até que do céu fosse determinada a ordem de instalação da Primeira Comissão Inquisitorial ou de Inquérito (PCI) do novo planeta que, primordialmente, trataria de investigar se realmente a ‘Cinchona’ (planta produtora de quinino, abundante na América do Sul), teria ou não o efeito milagroso de afugentar ou acabar com o miasma que estava ceifando vidas e deixando tristes e abatidos muitos dos primevos habitantes da recém-criada, LÍMBIA.

Finalmente, descobriu-se que para a Límbia não havia mesmo remédio, pois nada nela era levado a sério; nem o conhecimento nem a Ciência e nem as teses universitárias tinham sido por ela abrigadas. Na Límbia, supostamente sem pecado e sem pecadores, não se condena ninguém. Desde que apareceu essa ideologia de que os límbicos são incorruptíveis, as sentenças começaram a ser, indefinidamente, proteladas ‘ad-aeternum’.

E o que se vê, claramente, agora, é uma Límbia que não é dona de si. Como ocorre em todo planeta novo ou ressurgente, seus habitantes sempre herdam dos predecessores os mesmos vícios e males que não acabam em cada fim de mundo.

Os límbicos, em matéria de PCI(ou CPI), inconscientemente tendiam a seguir o mesmo roteiro traçado pelos hominídeos que os precederam. Até o refrão usado na Límbia era o mesmo da destruída Gomorra: “CPI tem dia para começar, mas não tem data para terminar!”

Então, o que ninguém jamais tinha imaginado, mais tarde ficou patente: a Límbia, com pouco tempo de inventada, ficou conhecida como a terra da ficção que virou verdade.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 17 de abril de 2021


24 março 2019

“Como Nós Podemos Evitar a Guerra?”






Virgínia Woolf (1882 1941) por volta de 1936, no tempo que corria a insurreição fascista na Espanha, em uma carta a ela endereçada, foi inquirida por um renomado advogado. Naquela época, como ainda hoje, a pergunta que ele fez (plena de significados e significantes – em Linguística), apresenta-se de difícil abordagem: “Na sua opinião como nós podemos evitar a guerra?”. Essa pergunta de feição aparentemente simples, ao partir de um homem para uma mulher, na realidade, tem em seu bojo signos ambíguos, como ambígua é a nossa natureza.

Foi por essa época que o físico Albert Einstein, em uma carta dirigida a Freud, ficou perturbado pelo mesmo sentimento ambivalente, mas humano, de querer e não poder. Einstein, era sabedor de que o barbudo cientista da alma, diferentemente do estudioso de física, discorria com clareza incomum o fenômeno da ambivalência: o primitivo e selvagem instinto de luta e de aniquilamento presente no indivíduo, convivia com o nobre ideal de se libertar completamente da guerra.

Susan Sontag, em seu livro “Diante da Dor dos Outros” , conta que Virgínia Woolf refletiu muito, antes de responder ao bacharel em Direito. Ela, apesar de ser instruída tanto quanto o nobre jurisconsulto, entendeu “que existia um grande abismo entre eles: o advogado é homem e ela é mulher. Homens(em sua maioria) fazem a guerra, gostam de guerra. Para eles existe uma glória, uma satisfação em lutar, que as mulheres (em sua maioria) não sentem ou não desfrutam”.

Depois de tatear para cá e pra lá, Woolf, enfim, compreendeu que a pergunta do advogado escondia algo dúbio. Ela percebeu que a pergunta que lhe foi apresentada não foi no sentido de saber seus pensamentos sobre as maneiras de evitar a guerra. Diante da pergunta emblemática ela se deteu na expressão “Como Nós”. Ora, ao contrário de “Como nós”, “nenhum de ‘nós’ deveria ser aceito como algo fora de dúvida, quando se trata de olhar a dor nossa e a dos outros”.

Costuma-se dizer que os homens fazem as guerras e as mulheres sofrem as consequências. Evidentemente, essa assertiva tem lá suas razões de ser. Olhando por esse viés, desde os tempos mais remotos, a dor da mulher e a dor do homem tem contornos subjetivos diferentes ou diversos.

Em uma época em que as mulheres não dispunham de condições iguais aos dos homens nem na educacão, nem no trabalho e nem na liberdade , Virgínia Woolf lançou seu último livro “Os Três Guinéus”. O primeiro dos guinéus (símbolos do investimento) seria destinado ao Estado. O segundo guinéu seria destinado ao trabalho, e finalmente o terceiro guinéu deveria se empregado em favor das liberdades individuais e para a cultura. Mas o governo da Inglaterra abortou sua iniciativa antes de ser inaugurada, porque ela era mulher, e mulheres não sabem exercer a liberdade pensamento político da década de 1930.

O livro, acima referido, de Virgínia Wolf, trata justamente do “fato de que a guerra é um jogo de homens e que a máquina de matar tem um gênero, e ele é o masculino”. Esse foi um dos motivos, dessa sua obra ter sido a mais mal recebida de todas que a grande escritora britânica nos legou. 

Ao advogado que, em sua missiva, fez a crucial pergunta “Na sua opinião como nós podemos evitar a guerra?” recebeu da destemida Virgínia Woolf, essa incisiva resposta: “nós estamos vendo, com o senhor, os mesmos cadáveres, as mesmas casas destruídas. Quem é o ‘Nós’ que constitui o alvo dessas fotos de choque. […] essas fotos, documentos antes da chacina de civis do que de confronto de exércitos só poderiam estimular a repulsa a guerra”.  

 Biblioteca do CICV, DR/hist-00212-04

Para Woolf, assim como muito polemistas antibelicistas, a guerra é genérica, e as imagens que ela descreve são de vítimas anônimas, genéricas”. (Susan Sontag “Diante da Dor dos Outros” Companhia das Letras)

Fazia um dia claro e frio quando ela deixou sua bengala ao lado, atravessou os belíssimos prados e mergulhou rio adentro para não mais voltar”.

No próximo dia 28 de março de 2019 (Quinta Feira), completa 78 anos da morte de Virgínia Woolf.


P.S.:
Apesar dos escritos de Virgínia Woolf já ultrapassarem os cem anos, o diapasão da violência continua a vibrar em nossas terras. Por aqui, os conflitos belicosos e suas nefastas consequências se tornaram coisa tão banal, que nem despertamos mais para o fato de que estamos, há décadas, vivendo em meio a uma guerra civil.

A força de tanto contemplar a destruição de lares e famílias inteiras, as imagens do arquivo da dor, composto de corpos mutilados e sangue no asfalto e nas calçadas, já não mais nos tocam como antigamente. Como disse o psicanalista e colunista da Folha de S. Paulo, Contardo Calligaris em seu artigo “A Dor dos Outros”, de 29 de maio de 2003:

O sofrimento dos outros seria como a musiquinha do caminhão de gás, que não nos acorda mais. Os fotógrafos que arriscam (e, às vezes, perdem) a vida para nos trazer imagens abomináveis foram chamados de ‘turistas de guerra’, como se por eles, a dor se tornasse mais uma atração no circo do mundo”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 26 de março de 2019


07 agosto 2017

A Alma Dúbia dos Poetas




Na medida em que evidencia um elemento comum às artes e à religião, uma recente afirmação do filósofo suíço, Alain de Botton, se presta bem ao entendimento da fonte onde brotam os afetos paradoxais que habitam a alma humana. Disse ele: “Tanto na religião como nas artes há um elemento catártico”.

O personagem Sócrates já definia o poeta como sagrado. Sagrado, por ser incapaz de produzir se o entusiasmo não o arrastar e o fizer sair de si mesmo. Paradoxalmente, é o mesmo Platão que distingue no poeta um outro polo (o antagônico e demasiadamente humano), ao declamar que o seu delírio é um sinal de posse demoníaca.

O nosso poeta Olavo Bilac, por sua vez, fez uma síntese representativa dos polos ambivalentes da alma. Num rasgo bem humano, descreveu brilhantemente seu dualista coração:

E no perpétuo ideal que te devora/ residem juntamente no teu peito/ Um demônio que ruge e um Deus que chora.”

O poeta Ferreira Gullar que se definia como ateu, em seus versos, dizia que em si existia uma parte desconhecida. Não importa o nome que se dê a esse desconhecido. Mesmo que se venha nomear esse lado desconhecido, ele será sempre um enigma. Não importa que, através de uma racionalização defensiva, o poeta chegue a se declarar: “eu sou isso; ...sou aquilo”. Para além das respostas racionais/reacionais, o que importa é que na ânsia de traduzir-se, o poeta exprima em metáforas a dualidade de seus sentimentos, como a que está presente nessa poética estrofe:

Uma parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente”

Em outras palavras, Gullar talvez quisesse dizer: Uma parte de mim é previsível. Outra parte de mim é desconhecida de mim mesmo, por isso me surpreende. Freud diria: uma parte de nós é consciente/ Outra parte de nós é inconsciente. Jung diria: Uma parte de nós é transparente/ Outra parte de nós é transcendente.

O advento da psicanálise veio demonstrar que a certeza de que o homem é senhor de si mesmo caiu por terra. Abriu-se então o véu para se ter acesso aos recônditos mais profundos da mente, e com isso, se chegar a conclusão de que as ideias e pensamentos recalcados no início de nossa formação biopsíquica continuam a participar de nossa vida mental de adulto. Hoje, sabe-se perfeitamente que o homem das artes (principalmente o poeta) em seus devaneios, usa incessantemente o material recalcado nas profundezas abissais de sua psique. As ideias que passam pela cabeça do poeta no presente e levadas para o porvir estão, na verdade, atreladas a um passado indeletável. Em vão, o artista consegue tomar partido de um dos lados ou pólos ambivalentes de sua alma. Ele será duplo até o fim, pois grande parte do que fala e escreve e o motiva provêm de um mundo ambíguo, recalcado na infância.

Não poderia deixar de aqui ressaltar que é do poeta rotulado ateu, Fernando Pessoa, a mais humana e mais bela narrativa que um cristão jamais ousou fazer sobre o menino Jesus, digna de ser canonizada. (Vide link: “A Mais Bela História de Um Poeta Ateu”)

Conta-se que o Poeta Mário Quintana não acreditava em Deus, mas não dizia isso para não ofender a Nossa Senhora e ao Menino Jesus. Na verdade, os versos de Quintana, com naturalidade e graça, mostram, mais que tudo, elementos antagônicos de seu ser duplo: um mais vestido para apresentação e outro simbolizado como o mais nu dos animais. No poema “Crenças” ele explica o por que” do respeito aos sentimentos dos outros. Foi da lama de seus pensamentos primevos afetos adubados pelas histórias religiosas contadas por seus pais , que Quintana produziu preciosas metáforas sobre nossa natureza dúbia. Afinal, é na poesia que a sujeira do barro e a pureza da água que nos mata a sede, se juntam à elevada linguagem do “céu”.

O religioso fundamentalista pode até se escandalizar com esse verso de Quintana que reproduzo abaixo, mas duvido muito que cada um, lá dentro, não perceba escondido ou quase em oculto, o tal porteiro Glicínio ̶ personagem do mundo pueril e mítico do poeta. Basta voltar a ser criança de novo para, enfim, imbuído de coragem e humildade poder retirar do baú das reminiscências infantis o material dissonante de que fomos forjados. Depois, é só montar as peças, uma por uma, e estará pronto, na imaginação, o reino encantado, onde heróis e vilões coexistem, trocando de papéis ao sabor das circunstâncias.

CRENÇAS”

Seu Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.

É uma crença que ele traz da sua infância

Não o desiludas com teu vão saber,

Respeita-lhe os queridos enganos:

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança

Tenha ela oito ou oitenta anos!
[Mário Quintana]
Levi B. Santos
Guarabira, 07 de agosto de 2017



28 maio 2017

Clarice, Caetano e Marília Pera ― Entrelaçamentos





Na atualidade não há como negar a existência de um forte entrelaçamento entre a Literatura e a Psicanálise. Uma instância não vive sem a outra, pois a matéria prima que manejam é a mesma: a letra, que vem da fala ou do dito, dos lapsos, das crônicas, dos contos, dos sonhos, da poesia, dos desejos não realizados, enfim, da imaginação. Não foi à toa que a psicologia foi buscar na literatura os principais elementos metafóricos para formulação da Teoria do Inconsciente. As grandes obras de Freud, sem nenhuma dúvida, foram frutos da leitura reflexiva de um épico clássico ― “Édipo Rei” ― de Sófocles, especialmente destinado ao teatro.

A psicanálise parte da fala e da ausculta do sujeito, no intento de que afetos escondidos a sete chaves possam vir à tona. De maneira análoga, a literatura ou o ato de escrever, por sua vez, permite a vazão dos conteúdos latentes do inconsciente. Tudo isso demonstra com clareza que essas duas misteriosas instâncias são, na verdade, irmãs siamesas.

Comentando o conto “Mineirinho” “Clarice na Cabeceira” (Editora Rocco) escreveu Caetano Veloso: “Clarice Lispector teve um enorme impacto sobre mim”. Em 1959, quando ainda era um imberbe jovem de Santo Amaro na Bahia, ficara profundamente impressionado após ler o conto de Clarice,A Imitação da Rosa”.

Em 1968, um dos anos mais turbulentos da ditadura militar, Caetano e outros artistas exigiam do governador do Rio uma posição sobre o estudante Edson Luís assassinado de maneira covarde no restaurante universitário (Calabouço), ocasião em que, sorrateiramente, foi abordado por uma mulher: Sou eu, Caetano!” ― anunciou, Clarice Lispector, diante de um ainda tímido poeta, cantor e compositor da MPB.

O certo é que por essa época, as obras de cunho profundamente psicanalítico de Clarice Lispector inundaram as mentes dos artistas brasileiros, e serviram de fonte de inspiração para muitos, como foi o caso de Marília Pêra.

Segundo a psicologia de Carl Gustav Jung, “a Persona (máscara em latim) opera como mediadora entre o ego e o mundo externo; é um meio termo entre o indivíduo e aquilo que ele deveria ser”. No seu ensaio “Persona” Clarice, se reportando ao uso de nossas primeiras máscaras, em uma perspicaz auto-análise, assim escreve:

...os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara”. [...]Mesmo sem ser atriz nem ter pertencido ao teatro grego uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível.”

Bem lá no final de seu ensaio psicanalítico a autora conclui de forma magistral:

Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar. É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida de repente a máscara de guerra da vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem com um ruído oco no chão. Eis o rosto, agora nu, maduro, sensível quando não era para ser. E ele chora em silêncio para não morrer”.

O sujeito escolhe a sua máscara (ou sua máscara vem mesmo sem que ele a tenha escolhido?). É com ela que o indivíduo se apresenta no meio social; ela representa o que a pessoa é, não para si, mas para os outros. A coisa funciona de forma tão imperceptível que, às vezes, o sujeito chega a se confundir com o personagem que está representando.

Marília Pêra, a premiadíssima estrela do Teatro Brasileiro, fazendo a apresentação da antológica crônica “Persona” de Clarice Lispector, num texto profundamente analítico diz, bem ao estilo Junguiano:

É muito difícil ser o que se é. O que se é? Onde começa o fio dessa meada? Esse é um mistério da vida.
Somos o que papai e mamãe fizeram de nós. Ou vovô e vovó, titia, babá, professor e irmãos.
Depois livros, filmes, peças, melodias, novelas, hoje internet, nos moldam.
Cores que outros artistas pintaram em nós, eis o que se é.
Nunca outra vez nossa tela em branco?
Atores também são seres cheios de emoções e carências banais.
Por isso talvez fosse aconselhável que atores usassem máscaras, como no teatro antigo.
Porque, sem as máscaras, há o risco de mostrarmos ao público sentimentos que talvez não pertençam aos personagens, mas ao nosso cotidiano mundo, sem transcendência universal.”

A antológica letra de SAMPA mostra, mais do que tudo, a influência de Clarice Lispector nas composições de Caetano Veloso: Quando eu encarei frente a frente não vi o meu rosto” (Caetano). Como era de se esperar, no espelho da fria e cinzenta São Paulo, Caetano jamais poderia reconhecer o seu rosto primitivamente refletido no espelho de sua “terra-mãe”. Quem sabe se restos de um passado emitido pelos arquivos psíquicos secretos, do tempo em que o cantor e compositor baiano lia e refletia sobre os textos de Clarice, não estavam ali emitindo ressonâncias ante a nova e feia megalópole paulista? É que a mente apavora o que não é mesmo velho” diria Caetano, de forma metafórica e auto-biográfica, em sua imortal canção, antes de se tornar “Mutante”.

A letra de SAMPA, explicita que mais tarde, sem perder suas identidades, os novos baianos, num processo de lenta adaptação, passeariam no cruzamento da Ypiranga com a avenida São João, curtindo numa boa sua agradável garoa. No Ensaio “Os Espelhos”, Clarice, disserta sobre o espelhamento de um itinerante que mesmo diante de uma nova realidade, deixa transparecer “vestígios de sua própria imagem narcísica”.

O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem não percebeu o seu mistério”.

É que Narciso acha feio o que não é espelho” ― reagiria Caetano. O Mito de Narciso” remete essa expressão de Caetano em Sampa à sua mãe Liríope. “Por desconhecer a própria individualidade, Liríope não pode refletir seu filho Narciso, e este será carente em relação a seu próprio reflexo” (O Mito de Narciso Raíssa Cavalcanti Babel da Psicanálise)

É num pequeno trecho do profundo ensaio “Os Espelhos” que Clarice, numa veia analítica incomum, parece denunciar o “por quê” da estranheza de Caetano frente a fria selva de pedra paulista, tão diferente de sua “cidade-mãe” Santo Amaro da Purificação Bahia:

Vi o espelho propriamente dito. E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo”. “Não existe a palavra espelho (a velha Santo Amaro de Caetano – grifo meu) só espelhos”.

Por fim, em SAMPA, Caetano chega a percepção de que a “feia São Paulo” é mais um espelho entre outros, “com suas oficinas de florestas e seus deuses da chuva”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de maio de 2017