27 agosto 2016

AGOSTO ― Mês dos Grandes Espetáculos em Nossa República






Coincidência, superstição ou obra dos deuses, o fato é que o mês de agosto em nossa república tem sido recheado por grandes espetáculos históricos (risíveis ou não). Citemos alguns: Suicídio de Getúlio Vargas, renúncia de Jânio Quadros e recentemente a fase final do processo de impeachment da presidente reeleita em 2014, transmitido ao vivo pela TV Senado.

Por falar em grandes espetáculos no mês de agosto não poderia deixar de registrar o risível acontecimento promovido por autoridades brasileiras em Paris - França no mês de agosto de 1952. Foi lendo Chatô O Rei do Brasil”, volumoso livro de 600 páginas de Fernando Morais (autor de Olga e a Ilha), que pude tomar conhecimento de um acontecimento insólito (não sei se comum - hoje). O espetáculo foi protagonizado pelo poderoso senador pela Paraíba, Francisco de Assis Chateaubriand. Na época, Chatô mandava e desmandava no país, e não era pra menos, pois era dono de 34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 estações de televisão, uma revista semanal (O Cruzeiro) e a Cigarra (mensal), afora revistas infantis e uma editora.

Mas vamos ao espetáculo hilário promovido em Paris pelo mega-empresário e senador Chatô. No capítulo de número 30, página 446, do livro “Chatô O Rei do Brasil”, Fernando Morais faz um resumo do que ele considerou o grande escândalo social daquele ano (o célebre baile do castelo de Coberville), espetáculo que, com os devidos créditos, aqui replico:


Segundo suas próprias palavras, o Plano de Chateaubriand era “apresentar à alta sociedade do Velho Mundo, o Brasil verdadeiro, o Brasil que somos nós: um Brasil de mestiços autênticos, mulatos inzoneiros, índios e negros a promover a vasta experiência de cruzamentos no trópico, em vez do falsificado Brasil branco de catálogo dos grã-finos[…]". A oportunidade surgiu quando o costureiro francês, Jacques Fath propôs que os Diários Associados organizassem em seu castelo parisiense uma grande festa de arromba para promover na Europa o algodão brasileiro.

[…] Às nove da noite do dia 03 de agosto um espetáculo de fogos de artifícios iluminou a multidão de 3.000 pessoas que lotavam os jardins do castelo. Só para levar os cem convidados brasileiros, Chateaubriand fretara dois Constellation da Panair, sem contar o voo especial que transportara orquestras, músicos, cantores, sambistas e frevistas. Terminado os rojões, o maestro Severino Araújo saiu do camarim armado atrás do castelo e invadiu os jardins regendo a Orquestra Tabajara da TV Tupi, que tocava um frevo pernambucano. Atrás deles vinham os cantores Elizeth Cardoso, Ademilde Fonseca, Zé Gonzaga, Jamelão e “Pato Branco” (um safoneiro albino que se fazia passar pelo músico Sivuca, que não pudera comparecer). Atrás deles, vinte passistas baianas bailavam e abriam passagem para que pudessem sair de dentro do castelo quatro negros de tanga, carregando uma liteira coberta onde vinham instalada, vestida à la Debret, a esfuziante Aimée de Heeren. Depois dessa abertura triunfal, vinte cavalos saíram em disparada dos fundos do castelo, cada um deles montado por um convidado ilustre (Francês ou brasileiro) vestido de cangaceiro e carregando uma mulher na garupa, também vestida à caráter. A cavalhada foi aberta pelo antropólogo Arbusse Bastide fantasiado de Lampião, levando na garupa a manequim Danuza Leão vestida de Maria Bonita, e fechada por Chateaubriand sobre um alazão e vestido “com uma cópia da fatiota de couro cru que meus antepassados usavam para capar bode no vale dom Piancó”. […] Vestindo um sumário cache-sexe, de peruca de índio e cocar sobre a cabeça, o costureiro e anfitrião Jacques Fath pegou o microfone e anunciou que “a grande festa do Brasil estava acontecendo”.

Sobre o tablado de madeira e som da orquestra Tabajara, fotógrafos dos Associados, de agências internacionais e dos jornais e revistas franceses retratavam o cineasta Orson Welles meio embriagado tentando dançar xaxado com a atriz Ginger Rogers ao lado do ator Jean-Louis Barrault que ensaiava passos de cururu com a estrela Claudette Colbert. Para Chateaubriand, no entanto, aquelas não eram as vedetes mais importantes da festa que só terminaria no dia seguinte, ao raiar do sol. Seu grande tento tinha sido conseguir levar para Corberville duas austeras senhoras discretamente vestidas a rigor, que, sentadas em uma mesa na beira da pista, pareciam sentir enorme desconforto por estar em ambiente pagão: eram Darcy Vargas, mulher do presidente da República, e sua filha Alzira(Fernando Morais em “Chatô – o Rei do Brasil”)

Segundo Fernando de Morais, Carlos Lacerda ao saber das estripulias de Chatô em Paris, no Jornal “Tribuna da Imprensa”, editou um artigo sob a manchete: “205 mil dólares numa festa em Paris”, tendo ao lado um editorial intitulado: “Afronta”. 


P.S.:

Enquanto reproduzia essa espetaculosa festança dos anos cinquenta protagonizada pelo poderoso e influente senador paraibano “Chatô” , pela TV Senado via um dos capítulos do espetáculo “republicano” que, segundo alguns otimistas, se encerrará daqui a dois dias.

Como agosto ainda não terminou, coisas inacreditáveis poderão acontecer. Se nada acontecer, outros agostos virão com seus casos espetaculares.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 27 de agosto de 2016

Site da Imagem: cantinhodosaber.com.br

23 agosto 2016

O Suicídio de Getúlio pelo Rádio e na Revista “O Cruzeiro” (Memórias)

Página da Revista “O Cruzeiro” Noticia a Morte de Vargas


Guardo muitas lembranças da ruazinha pacata de Alagoa Grande – PB, onde morava. Às vezes me bate uma saudade danada do tempo em que os moradores possuíam rádios das marcas Phillips, Pionner e Telefunken. Lembro que esses aparelhos, em sua maioria, ficavam ligados em volume exagerado desde o início do dia até as oito horas da noite, horário em que as ruas ficavam praticamente desertas, pois todos (adultos e crianças) se recolhiam aos seus lares para, num silêncio sepulcral (e às vezes entre lágrimas), ouvir circunspectos os capítulos emocionantes de umas das novelas de maior audiência de todos os tempos: “O Direito de Nascer (Vide Link).

Foi na manhã ensolarada do dia 24 de agosto de 1954 (a 17 dias de completar meus oito anos de idade) que, de uma hora para outra, uma notícia triste transmitida pelas ondas radiofônicas varreu às ruas de forma rápida ― “Getúlio se matou” , ocasionando alvoroço entre os adultos da minha pequena cidade. As emissoras de maior audiência naquela época eram, a Borborema, a Cariri e a Caturité de Campina Grande (cidade polo que dista 40 quilômetros da minha) que, em cadeia com a Rádio Nacional, repercutiram a voz nervosa do locutor Heron Domingues do famoso Repórter Esso em sua edição da manhã, dando em primeira mão a notícia do suicídio de Getúlio: “Atenção! Aqui fala o Repórter Esso em edição extraordinária! Acaba de suicidar-se em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas”.

Minutos após a notícia do suicídio do presidente da república, o “Reporter Esso” passaria o restante do dia repetindo a melancólica Carta Testamento deixada pelo suicida (Vide Link).

Mesmo sem entender nada do jogo político-partidário daquela época, fui, de certa forma, envolvido pela comoção que se abateu sobre a maioria dos habitantes de minha saudosa terra natal. Pranteavam o morto como se tivessem perdido um pai ou avô. Durante todo o dia, e entrando pela noite, detalhes da tragédia foram incessantemente divulgados. Getúlio entrara para a história como o primeiro presidente da república a se matar em pleno palácio do Catete – residência oficial presidencial situada no Rio de Janeiro.
Mesmo em meio a essa grande tragédia nacional, por paradoxal que seja, a novela “O Direito de Nascer”, continuou líder de audiência no horário nobre das oito da noite. Na noite do dia 24 de agosto de 1954 chorava-se duplamente: ao ouvir os personagens injustiçados da rádio-novela e diante das palavras comoventes da Carta Testamento(Vide Link). Esse escrito destinado a posteridade, atribuído a Getúlio, inspirou muitos poetas violeiros a contarem a tragédia em versos de cordel na forma de folheto (texto literário popular muito apreciado na época), geralmente, vendido nas feiras livres da cidade.

Não fiquei durante todo o dia 24 de agosto só ao pé do rádio, também corri às ruas vizinhas para ouvir os comentários e as fofocas politiqueiras sobre a triste tragédia que consternou a todos os moradores da minha humilde cidade (celeiro de políticos, como Osvaldo Trigueiro, Raimundo Onofre, Edgar Nóbrega e do grande compositor, Jackson do Pandeiro)

A Revista Ilustrada semanal “O Cruzeiro” do paraibano de Umbuzeiro, Francisco de Assis Chateaubriand, era a única que chegava até o meu torrão natal. Só as a pessoas ilustres da cidade adquiriam esse volumoso e maravilhoso semanário. E eu, ansioso, ficava na espera de que o rico fazendeiro Sr. Oscar e seus filhos Flávio, Cristóvão, Nazaré e Socorro, que moravam a cem metros da minha casa, pudessem ler a revista para depois me repassarem. Lembro que ficava abismado com tudo que a famosa revista, já toda amassada de passar de mãos em mãos, trazia em suas supercoloridas páginas, cujo papel brilhoso e macio era importado da Argentina. “O Cruzeiro” tinha o formato e dimensões da revista Manchete, que mais tarde os Blochs editariam, após o fechamento do saudoso semanário em 1974.

Por sinal, a manchete de “O Cruzeiro” em letras garrafais – “Com um Tiro no Coração, o Presidente Encerrou Sua Agitada Vida de Homem Público” –, veio com a data de 04 de setembro de 1954, sete dias antes da comemoração dos meus oito anos de idade. Das 126 páginas que compunha a edição que tratava da morte trágica de Getúlio, nada mais nada menos que cinquenta duas fotos ampliadas eram relativas ao suicídio do indigitado presidente e a consequente reação do povo nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Borja – RS.

Para se ter ideia da grandeza da revista do paraibano de Umbuzeiro, basta saber que a revista VEJA, hoje, a de maior circulação semanal no país, tem uma quantidade de páginas (variando de 95 à 102) menor que a editada por Assis Chateaubriand. Ressalte-se que a dimensão da página de Veja corresponde à metade da página da antológica “O Cruzeiro”.

O jornalista Theófilo de Andrade, em um artigo de página inteira na revista “O Cruzeiro” da última semana de agosto de 1954 sob o título “O Último Caudilho”, fez uma emocionante narrativa dos instantes mais marcantes da vida de Vargas. Esse foi o parágrafo final de sua histórica reportagem: “E foi assim que, pelas próprias mãos, terminou uma vida extraordinária, que encheu três décadas da existência da República.”


Por Levi B. Santos

Guarabira, 23 de agosto de 2016

12 agosto 2016

Lacan e a Teologia Judaico-cristã






O francês, Jacques Lacan, filho de pais católicos, sob o pretexto de retornar o estudo da psicanálise onde o pai da psicanálise tinha deixado, empreendeu uma releitura do inconsciente freudiano surpreendentemente muito próxima dos conceitos da Teologia Judaico-cristã.

Mas o que levou Lacan a se interessar tanto pela Teologia Cristã, da qual o “Judeu infiel”, Freud, passou ao largo? Ressalte-se, aqui, que o Judaísmo de Freud nunca deixou de estar presente em seu inconsciente, como denota essa afirmação que fez em 1927: “o pai sempre esteve oculto por trás de toda figura divina, como seu núcleo”.

Lacan, por seu turno, empreendeu uma exegese pós moderna da bíblia. Foi com o auxílio da linguística que conseguiu realizar uma interpretação psicanalítica dos textos bíblicos mais articulada que a de Freud, que considerava os rituais religiosos uma neurose obsessiva.

No polêmico seminário “Nomes do Pai” , Lacan afirmou: “… É diante desse Deus (judaico) que Freud se deteve”.

Contudo, no que diz respeito ao Corão, tanto Freud quanto Lacan permaneceram praticamente mudos, talvez, quem sabe, pela razão de os muçulmanos não perceberem Deus como Pai, como também pela sua total rejeição à família da Santíssima Trindade. Os que seguem o Corão não admitem que Deus seja pai do messias cristão. O conceito de “Pai Celeste” para o muçulmano é uma blasfêmia. O Corão não comporta a dedução psicanalítica de que Deus é um “Pai Simbólico ou imaginário”, sucedâneo do pai natural, ou tutor, que a criança um dia teve, e que lá dos arquivos profundos e impossíveis de ser delatados da psique do adulto ocidental, continua a emitir suas ressonâncias.

Nos países Islâmicos é mais complicado, não porque os muçulmanos não tenham inconsciente. O fato é que um xiita em crise jamais procuraria um analista. É mais provável que procurasse um líder religioso” disse Renato Mezan, em uma entrevista em 2006.

Jacques Lacan, no seminário 11 (falando sobre o Sujeito e o Outro) disse uma grande verdade: “cada um de nós é um Eu somente porque há um conceito de outro” ou seja, é pela existência do outro que definimos e redefinimos a nós mesmos.” Para Lacan o sujeito é sempre um efeito da linguagem de um Outro que lhe antecede. “Quanto mais o sujeito tenta resgatar a si mesmo, buscando a verdade de sua conduta, mais depara com algo não seu, que vem do outro”. O sujeito ao nascer no campo do outro, a sua linguagem, em consequência, vai ser portadora dos significantes materno e paterno.

Não sei, mas pode ter sido as raízes do catolicismo bem plantadas em sua infância que intuiu em Jacques Lacan a ideia de criar o conceito de um “Grande Outro”. O que seria esse “Grande Outro” senão a imago paterna do Deus católico que nomeia mas não é nomeado, como fez seu pai, um padre católico que, em homenagem ao Grande Jacó, o nomeou de Jacques Jacó, em sua variante francesa.

Ao enunciar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem Lacan evoca a Teologia Judaico cristã. Valeu-se da interpretação metafórica do “...no início era a Palavra do prólogo do evangelho de João para explicar a esfera do inconsciente. Se no início era a palavra, pode-se concluir que o inconsciente tem a ver com a linguagem. Françoise Dolto (pediatra e psicanalista das crianças que perderam seus pais na primeira grande guerra mundial), em seu livro Tudo é Linguagem, disse: tudo que se refere ao agir das pessoas, ao que elas dizem, ao seu comportamento, estrutura a criança”.

A influência do catecismo católico que manejava quando criança, fez-se presente em suas elaborações psicanalíticas. Não foi à toa que em um dos seus mais concorridos seminários, denominado por ele Nomes do Pai, Jacques Lacan assim se referiu: “...é importante apontar que o conceito 'O-Nome-do-Pai' tem a ver com a religião e não com a ciência”. Ele considerava um paradoxo precioso o fato de o pai dar a seus filhos e filhas o nome pelo qual os judeus se referiam a Deus.

O trecho replicado abaixo, que trata principalmente do conceito “Nome do Pai”, evidencia o quanto ele bebeu da tradição judaica na formulação de seus conceitos psicanalíticos:

O Nome-do-Pai” é o próprio nó. E o que é um nó? É um furo e uma modulação em torno deste furo. O nome próprio é um furo(como a coisa não tem nome, dá-se um nome à ausência da coisa). Os judeus são muito claros a respeito daquilo que chamam de Pai. Enfiam-no em algum lugar do furo que não podemos sequer imaginar: Eu sou o que sou” isto é um furo, não é? Um furo(…) engole as coisas, e às vezes torna a cuspi-las. O que ele cospe? O Nome, o Pai como um nome”.

Quando afirma que o nome do Pai é um furo ele se reporta ao vazio do interior do vaso. O espaço vazio do vaso é estruturante. O furo deve permanecer lá, contornado pelas paredes do vaso. Adorar o contorno do furo, é o mesmo que idolatrar Deus ou fazer Dele um ídolo. Afinal, o que interessa é que o furo é um furo, como o célebre “Eu sou o que sou” relatado no livro de Gênesis.

Sobre os conceitos psicanalíticos criados por Jacques Lacan, Elisabeth Roudinesco, autora de sua única biografia, assim se referiu: “esta doutrina pertence a tradição cristã”.

Na páscoa de 1953 Lacan redigiu uma carta a seu irmão beneditino na qual reivindicava nas entrelinhas e sem ambiguidade o pertencimento de sua doutrina, à tradição cristã”. (Gérard Haddad)

A tradição judaico-cristã em suas obras falou tão alto, que o título Escritos posto na Capa do seu primeiro camalhaço, foi considerado por muitos dos seus seguidores, uma homenagem a velha bíblia de estudos em hebraico que levava sempre consigo a tiracolo, em cuja capa principal reluzia em letras douradas: “Escrituras Sagradas”

Gérard Hadadd, em O Pecado Original da Psicanálise - (Editora Civilização Brasileira -2012), nos dá uma ideia de como a vivência religiosa estava tão profundamente arraigada no inconsciente lacaniano. Diz Hadadd:

Em 1941, Sylvia, esposa de Lacan dá a luz a uma filha a quem ele chamou Judith, um perfeito nome judeu, já que significa simplesmente judia. Lacan queria uma filha, filha de Israel, e que disso trouxe a insígnia. Uma tal escolha não deixa de ser audaciosa e imprudente, naqueles anos em que o antissemitismo matava sem intimação”.

Em O Triunfo da Religião, Lacan, enfim, reconhece “o poder da religião ao dar um sentido às formas mais insólitas da experiência humana”. Entretanto, não deixa de dar uma alfinetada ao dissertar sobre o lado avesso da função consoladora da religião:

a religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”.

Ao forjar a célebre pergunta “O que o Outro quer de mim?”, Lacan, com o auxílio da linguística, pode perceber claramente que o inconsciente é o discurso do outro. Bem antes, ele já entendia que na psique do seguidor da cultura judaico-cristã, o inconsciente era estruturado como o discurso ou o Desejo de um Grande Outro, arquétipo que no mundo ocidental costuma ser chamado Deus, ou Pai celestial. No Cristianismo, é o desejo internalizado de um Grande Outro a que se refere Lacan ou de um Pai, (da tradição judaico cristã), que prevalece sobre o desejo do Filho: “… contudo não seja feita a minha vontade, mas a tua.” (Lucas 22. 41-42) A ambivalência do homem nascido na cultura judaico-cristã que projetava em seu Deus Desejos e contradesejos exercia uma tremenda fascinação em Lacan. Fascinação essa advinda de seus próprios afetos ambivalentes: é que ele sentia tanto empatia quanto antipatia à religião dos judeus. Quando retornou a falar sobre seu concorrido seminário O Avesso da Psicanálise em numa longa entrevista em 1968, fez questão de acentuar a semelhança entre o midrash, a arte judaica de ler a Bíblia, e a psicanálise.

Gérard Haddad, um dos discípulos mais famosos de Lacan, foi, talvez, quem mais disseminou pelo mundo o conteúdo dos seminários lacanianos e sua correspondência com a religião deduções conceituais, em sua maioria, atreladas aos símbolos da cultura judaico-cristã. Sobre as incursões exegéticas psicológicas que Lacan empreendeu nas muitas leituras de sua Bíblia em hebraico, Haddad chegou a dizer algo emblemático em sua obra “O Pecado Original da Psicanálise”:

Não é ilegítimo considerar a psicanálise, sobretudo na sua origem, como produzida por essa Coisa judaica. Ela nasceu justamente sobre as ruínas do judaísmo e alimentou-se de seus restos. […] O mito fundador do judaísmo, o “sacrifício de Abraão”, Lacan transformou no equivalente do Complexo de Édipo, como mostra esse trecho de sua obra escrita em 1938, Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo (Outros Escritos Lacan Zahar editora, edição 2003): '[…] ao advento da autoridade paterna corresponde uma moderação da repressão social primitiva. Legível na ambiguidade mítica do sacrifício de Abraão, que, além do mais, o liga fundamentalmente a expressão de uma promessa, esse sentido não é menos visível no mito de Édipo'”.

O certo é que Lacan tomou emprestado muitos elementos míticos da cultura judaico-cristã para elaborar sua exegese psicoteológica, como o autor do livro “A Bíblia Pós Moderna – Bíblia e Cultura Coletiva(Edições Loyola -página 202), faz ver:

Uma dificuldade no desenvolvimento de um discurso psicanalítico apropriado a textos teológicos surge porque o conteúdo inconsciente é, em grande parte, visto de forma não discursiva, em termos de campos de força, imagens e arquétipos, e, por isso, não podem ser lidos da mesma forma que a linguagem teológica. É exatamente aqui que Lacan revela a possibilidade de unir o inconsciente ao discurso teológico… Lacan atribui caráter linguístico e textual ao próprio inconsciente. Nessa perspectiva, textos teológicos e manifestações do inconsciente são homólogos e abertos à estratégias interpretativas comuns”.

Em 1991, na comemoração dos dez anos da morte do pensador e católico rebelde Jacques Lacan, a revista CULT nº 77, publicou o artigo Um Morto Contra a Morte” de autoria do psicanalista Fabio Herrmann , encimado por um subtítulo ousado e provocador, que reproduzo abaixo:

Lacan é como Cristo que fala por parábolas, para que, nesse caso, tendo ouvidos para ouvir, não ouçam aqueles que não merecem”.

No seu resumido artigo, sobre as analogias que Lacan, em seus longos e enigmáticos seminários, fez da Teologia Judaico-Cristã com a Psicanálise, assim se expressou Fabio Herrmann:

...a obscuridade do cânon interpretativo propicia, inelutavelmente, o efeito magistral: na incerteza, faz-se mister um intérprete autorizado, já que a evidência se escondeu. Como nas religiões, o sentido vago favorece a proliferação de mestres e discípulos”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 12 de agosto de 2016


05 agosto 2016

Dez Anos do Blog “Ensaios & Prosas” ― Um Breve Histórico





O desejo que os seres humanos têm de, lá no íntimo, narrar a história de suas vidas e ideias (as mais extravagantes possíveis) encontrou na Blogosfera um canal gratuito, ou uma oportunidade ímpar de ser realizado ou descarregado. Na época, confiávamos que tudo que fosse postado seria guardado em arquivos invioláveis. Os casos mais marcantes de nossas vidas, nossos inconformismos e recalques, pendores artísticos, culturais, científicos, literários, nossos sucessos/decepções, nossas dores, conquistas e competições, sem a necessidade de gastar dinheiro e tempo excessivo, passaram a ser depositados em arquivos “secretos” de uma conta no Google. Fui um dos primeiros a me associar a UBE (União dos Blogueiros Evangélicos)”, fundada em 2005, que hoje agrega mais de 20.000 blogs. 

Em 21 de maio de 2006, duas semanas antes de criar o blog “Ensaios & Prosas” (esse título talvez tenha sido influência do caderno cultural “Prosa & Verso” do Jornal “O Globo” editado aos sábados, que lia religiosamente), um artigo do jornalista Carlos Castilho sobre a Blogosfera publicado no site do Jornal Observatório da Imprensa já noticiava tramas visando a adoção de um código de conduta, na tentativa de evitar excessos verbais, xingamentos, sectarismos e radicalismos entre os blogueiros de língua mais ferina. Dizia ele no início de seu artigo: “O deslumbramento da descoberta de uma nova ferramenta de comunicação passa agora a ter que conviver com temores, explosões de raiva, catarses, ressentimentos e tentativas de se tomar o controle sobre o que é publicado”.

Mas o certo é que a blogosfera, entre os anos 2004 e 2006 começou a virar o mundo de cabeça para baixo. No jornalismo e nas faculdades, os alunos mais rápidos no entendimento da linguagem cibernética, através de cursos relâmpagos de Internet, passaram a ensinar seus professores sobre a tal sigla “html”. “Faça Seu Blog Gratuito Aqui” era uma das frases mais repetidas nos sites de busca. Os blogueiros mais criativos mudavam o modelo de seus blogs quase de ano em ano. Lembro que ao tentar mudar o modelo (Gadget) da página principal do “Ensaios & Prosas”, cheguei quase a perder todo conteúdo que tinha até então arquivado. Não me aventurei mais a mexer no blog. Deixei-o ate hoje com o mesmo formato de quando foi criado em 06 de agosto de 2006.

Recordo que em dezembro de 2012, com a minha mania de escrever textos ácidos, terminei arranjando sarna pra me coçar. A paródia “O Salmo da Era Digitalque fiz, baseado no Salmo Bíblico de número 23 (O Senhor é o Meu Pastor) me rendeu bastante dor de cabeça, pela polêmica que provocou no meio religioso. Dois dias depois de ter publicado essa paródia, alguns blogueiros das igrejas mais fundamentalistas, não entendendo que se tratava de uma crítica ao evangelho da prosperidade econômica importado do Mercado Gospel dos EUA, sentaram o sarrafo, excomungando-me. Manchete tipo Site Compara Google com Deus e Gera Polêmica foram replicadas na blogosfera gospel, inscrevendo-me no rol dos hereges da blogosfera cristã.

Parafraseando o prólogo do evangelho de São João, em mais uma “heresia”, devo dizer que o famoso Blogger importado dos EUA se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória anunciada em todos os sites de procura (entre eles o velho Yahoo) ensinando a maneira mais fácil e rápida de criar um blog particular ou individual para a salvar memórias por toda a eternidade. Uma vez criado o blog, como acontece com o “livro da vida” do qual o evangelista João fala em seu livro Apocalipse, o nome do internauta não seria mais riscado da Nova Jerusalém do Mundo Cibernético.

Refletindo bem, a máxima de Michel de Montaigne (15331592) ― “As palavras pertencem metade a quem fala e metade a quem ouve” ― tem muito a ver com os lados conservador e liberal dos blogueiros em suas postagens. Traduzindo o bordão desse famoso filósofo, poderíamos intuir que o texto postado pelo blogueiro pertence metade a quem o edita e metade a quem o lê, comenta e critica. Foi  assim pensando que o criador do famoso Blogger, para fazer crescer rapidamente seu número de adeptos, abriu no topo da página inicial dos blogs um espaço para que os editores pudessem expor as carinhas dos seus cativos seguidores. Para incrementar o movimento comunicacional nesse serviço do Google dois recursos foram de fundamental importância: o de divulgar os artigos editados pelos blogueiros no mundo virtual e o de expor num recanto de suas páginas os produtos comerciais que tivessem alguma relação com os temas postados. O blogueiro que editasse postagens que causassem maiorres acessos no mundo virtual seriam recompensados com maior número de seguidores. O apelo chamativo como fazer mais amigos sem o menor esforço que alguns competidores ou caçadores de amigos detonavam na Web na mesma época que construí o meu recanto no Google, hoje não mais aparece tanto quanto naquela época em que a acirrada competição era estimulada ao máximo, com a finalidade de induzir uma maior visibilidade dos editores de blogs mais sucedidos.

Não nego que cheguei a colecionar alguns selos de premiação, na época em que ainda não tinha sido ex-comungado do rol dos politicamente e religiosamente corretos. Alguns títulos colocados pelos editores em seus blogs eram tão estrambóticos que não dava para resistir ao impulso de rir. Entre os selos de premiação que recebi, merece destaque um que me incluía entre os cinco “Melhores Blogs da Cristandade”, oferecido pelo blogueiro Teóphilo Noturno, cujo blog tinha em seu cabeçalho o título apocalíptico em letras garrafais flamejantes Este Mundo Jaz no Maligno”, possivelmente simbolizando a figura mítica do Inferno.

Com o blogueiro Leonardo Gonçalves, amigo de longos datas, ainda hoje editor do blog Púlpito Cristão(na época, acessado diariamente por dezenas de milhares de fiéis do meio Protestante), fiz uma parceria. Cheguei a lhe enviar textos para postagem sobre vários temas proibitivos ou intocáveis do meio religioso, ensaios de cunho satírico sobre o evangelismo gospel comercial que, ainda hoje, faz sucesso em vários canais na rede aberta de Televisão. Pois não é que o afoito Leonardo Gonçalves que não levava desaforo para casa, com ousadia incomum, acabou por divulgar em seu blog, o “O Pai Nosso: Modelo Empresarial Gospel(Vide link). Tratava-se de uma paródia que fiz com o “Pai Nosso” do Novo Testamento. O texto bombou na blogosfera de uma maneira tal, que em questão de poucos dias foi reproduzido em 28 blogs. A ousadia custou-me caro, pois, boa parte dos comentários que recebi de líderes evangélicos fundamentalistas consideraram a paródia uma blasfêmia contra Deus. Alguns alertaram-me que não brincasse com as coisas sagradas, enfatizando as histórias de maldições contidas no Velho Testamento.

No Genizah (hoje, o mais acessado blog de Humor Cristão do país), do autor Danilo Fernandes, fui parceiro nas postagens de textos hilários baseados nos sermões da turma do evangeliquês gospel da prosperidade econômica. Ainda está bem viva em minha memória a repercussão de um texto exótico sobre exploração da fé. Tratava-se de um testemunho/entrevista sui generis veiculado em um programa televiso dedicado a curas e milagres. Assisti perplexo todo o desenrolar do trágico e cômico "milagre", em uma noite de insônia, quando já passava da meia noite (mês de julho de 2009). Ouvi atentamente a história e não resisti postá-la no “Ensaios & Prosas” com o título: Exploração da Fé Até que Ponto?” (publicado em 03 de julho de 2009). Esse excêntrico milagre, mexeu com os nervos de Danilo Fernandes que, provavelmente para causar maior impacto na blogosfera cristã, trocou o título da postagem original redigida no “Ensaios & Prosas”, pela extravagante manchete: “RR Soares viaja na maionese e libera a unção da Madonna: Like a virginfor the very first time…”. Dizem que em 2011 o site do Danilo chegou a ter mais de 600.000 acessos diários.

Como a curiosidade acaba sempre por se tornar a chave da liberdade, eis que muitos que em seus ambientes não tinham a condição de falar ou tocar em determinados temas ou assuntos considerados tabus, de uma hora para outra, passaram a ter na internet um recanto só seu para descarregar tudo que até então, nos meios conservadores, não era permitido ser ventilado. De início, gozávamos do privilégio de produzir textos a respeito de nós mesmos (as auto-biografias).

Alguns blogueiros de mente mais egocêntrica chegavam a dizer: “Escrevo só para mim”. Achava pura meninice esse tipo de racionalização. Se pensássemos mais profundamente chegaríamos à conclusão de que o blogueiro é, sim, um narcisista (no bom sentido da palavra). É preciso entender que a escrita é uma marca narcísica, tal qual uma cicatriz que carregamos por toda a vida. Esse desejo intenso de escrever pode ser, sim, considerado uma compulsão narcísica que tanto pode trazer frustração quanto prazer ou gratificação. E quem não a tem ou teve atire a primeira pedra.

Não sei se isso é um caso de narcisismo clássico:

Quanto a minha dificuldade de ordem gramatical e ortográfica, um dia, ouvi algo que me deixou muito animado. No lançamento do segundo livro de George Bronzeado de Andrade, “Retalhos da Memória” na Academia Paraibana de Letras em 2015, em conversa particular com o jornalista e escritor Hélder Moura, autor do livro O Incrível Testamento de Dom Agápito, de repercussão na Alemanha, Itália e França, assim ele se referiu sobre os escorregos que geralmente damos em nossa linga mãe: “Ainda hoje, nas releituras que faço do livro que lancei em 2012, encontro algumas incorreções. Toda vez que passo a vista em suas páginas encontro algo que necessita de ajuste. É um negócio sem fim”.

Oito anos atrás, em um o ensaio postado nesse recanto do Google que tinha por título Vivo Por Isso Escrevo, assim me expressei sobre esse prazer de escrever que nasceu bem cedo em minha vida: “...aquele mesmo impulsivo desejo de adolescente, agora, vendo-me entrar nos umbrais da velhice, me anima a ESCREVER LER ESCREVER LER, sem parar, com avidez ainda maior que nos tempos de outrora”.

Foi no dia 06 de agosto de 2006 que juntei os artigos escritos em rascunhos e arquivados em uma pasta do computador nos três primeiros meses de 2006 (três poesias, um verso de cordel e duas crônicas) e, em menos de duas horas, transferi tudo para o blog, nessa ordem: “Contos EscondidosAmigo Tardes de Domingo Poema de uma Avó para Uma Neta Dia de Mãe” e Um Nostálgico Fim de Tarde. Pronto, estava inaugurado o “Ensaios & Prosas”.

Bendita blogosfera que trocou minha caneta da marca Compactor por um silencioso e macio teclado, e minha folha de papel almaço pela tela deslumbrante do Word ―, dádivas maravilhosas que nos meus anos de colegial sequer podia imaginar que um dia a tecnologia viria oferecer.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 05 de agosto de 2016