23 outubro 2006

A ORFANDADE NA RELAÇÃO PAI-FILHO




Tanto o pai quanto a mãe, estão sempre aquém daquilo que o filho racionaliza em seus pensamentos e desejos. No crescimento, formação social, cultural e religiosa do filho, algo se perdeu, deixando uma lacuna ou vazio, cuja responsabilidade se atribui erroneamente ao que o pai deixou de ensinar. Não sabe o filho que esta orfandade sentida como “algo que faltou”, será a alavanca que o impulsionará em busca de sua própria identidade, fazendo-o adquirir forças para superar o pai, tentando desta forma, obter satisfação naquilo que não lhe foi oferecido.

Não há nada mais cômodo e tranqüilo para os pais, que ter seus filhos sobre total controle, numa tentativa de evitar a orfandade ou vazio, que na certa mais cedo ou mais tarde os atingirá. O pai não pode escamotear esta verdade: um dia eles, os filhos, terão de escrever a sua própria história, que nem sempre corresponderá necessariamente aos desejos paternos. Quanto mais cedo o filho entender que esta orfandade sempre o acompanhará pela vida afora, melhor será para ele. Pois, só o sobre-humano é que o aliviará no enfrentamento do vazio do “ser em si”. Na ânsia de fugir desta orfandade, ele será sempre refém da “vontade de potência” sobre o medo, sobre o desconhecido, enfim, sobre os desígnios da natureza. Esta vontade de tudo poder, talvez o desloque para um prazer a ser vivido no simbólico e imaginário mundo religioso.

A cultura impôs aos pais, o dever de dar todo o bem estar aos filhos, quer sob a forma de proteção, quer sob a forma de assistência. Porém, tanto os pais como os filhos, devem entender que a lacuna da impotência continuará sempre fazendo parte intrínseca de nossa natureza.

Esta é uma questão cuja resposta é, talvez, muito dolorosa: assumir a condição de ser incompleto, ser faltante. Somos portadores de um vazio pesado demais para carregar. O Cristianismo mui apropriadamente determina: “Que devemos tomar a cruz, e seguir”.

Há uma sede inata que provém da fonte dos nossos desejos mais prementes, que nos impulsiona a fazer perguntas como estas: “Por que esta cruz?”. “Para que?”. “Quem será o culpado ou responsável por colocá-la em nossos ombros”? Na verdade cabe a nós simplesmente tomá-la. Cruz esta, que sob a forma de uma orfandade, nos acompanhará em toda nossa trajetória existencial.

Mas orfandade pressupõe algo que foi perdido. A máxima felicidade sem nenhum esforço, a vontade de tudo ter as mãos, de tudo poder da tenra infância, não encontrou ressonância ou resposta por parte do pai natural. Continuar na caminhada, órfão de um desejo interdito que pesa como uma cruz, é a nossa sina. Deus, agora como Pai espiritual, todo poderoso, é doravante a quem nos dirigimos. É Ele quem amenizará o vazio do nosso ser com a “esperança” de um dia nos fazer banhar nas águas da imortalidade. Porém, enquanto mortal, é responsabilidade nossa assumir esta orfandade. Em outras palavras, não podemos abandonar a cruz, porque abandoná-la seria o nosso próprio suicídio.

Phillipe Julien, psicanalista francês, em seu livro “Abandonarás teu pai e tua mãe” descreve com letras fortes o sofrimento existencial de Cristo ante a crucificação. O filho, sofrendo a recusa da lei do desejo por parte do Pai, brada: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste”? Em outras palavras: Por que me deixaste só na procura de preencher a lacuna sem resposta de teu silêncio? “Criaste e instaurasse um vazio (uma orfandade – grifo meu) a demarcar o meu gozo, deixando-o incompleto”. “Jesus pedia ali uma explicação, supondo que o Pai poderia, se tivesse querido, ter usado do seu poder”. Ora, o homem Cristo sentiu, como qualquer um de nós, a não adesão de um Pai poderoso à vontade do filho. Eis a resposta do Pai: cala-se diante da violência e da maldade humana, deixando o filho entregue e abandonado às conseqüências felizes ou infelizes da liberdade e dos desejos humanos. Na visão do filho, a ausência de resposta o deixara órfão do apoio paterno. Na visão do Pai, em seu significante silêncio, demonstrara a impossibilidade de identificação com o filho ante um desejo que não era o Seu.

O vazio existencial humano, sob forma de uma orfandade, que a primeira vista põe o filho em oposição ao pai, só traria resultado benéfico, quando este mesmo filho chegasse a entender profundamente, que o seu desejo idealizado para fugir do real, teria que ser negado, pois tal anseio contrariava o objetivo de um Pai identificado com uma outra realidade.

Para os jovens de hoje, queremos deixar bem claro o exemplo de Cristo, que assumindo o vazio da impotência humana, deixou-se submeter a todo tipo de humilhação, injustiça e escárnio, sem merecimento, e, no entanto, nunca culpou o Pai pelo seu sofrimento. Cabe então ao filho de hoje assumir a sua trajetória existencial, mesmo cheio de lacunas e vazios deixados por um pai silencioso. Silêncio este, entenda bem, não deve se constituir motivo para ressentimentos que porventura venham atordoar o coração do filho. O silêncio de Deus-Pai, num primeiro instante, poderá significar abandono para o filho, contudo, depois lhe proporcionará estímulo para uma apurada reflexão Mais cedo ou mais tarde surgirá o reconhecimento do filho para com o Pai, expressado nesta singela frase: “Contudo seja feita a tua vontade”.

(Ensaio por: Levi B. Santos. Guarabira, l5 de agosto de 2006)

13 outubro 2006

DIVAGAÇÕES SOBRE “ VARRER O CHÃO”




Há muitas verdades, muitas lições a tirar quando empregamos esta tão significativa expressão: “Varrer o chão”. Comumente ligamos esta frase ao nosso labutar cotidiano, que por vezes nos é imposto como uma obrigação contundente e cansativa, coisa que vai de encontro aos anseios mais profundos da alma, que está sempre a desejar um paraíso, um Jardim do Éden de felicidades infinitas com tudo ao alcance das mãos, sem o mínimo esforço.

Considerando o “varrer o chão” como o nosso ganha-pão de cada dia, cabe lembrar aqui alguns trechos da importante obra “Do sentimento trágico da vida” de Miguel de Unamuno, grande ensaísta espanhol do século XIX, em que ele diz: “Uma vez satisfeita a fome, e esta logo se satisfaz, surge a vaidade, a necessidade ─ que o é ─ de se impor sobre os outros. O homem costuma entregar a vida pela bolsa; mas entrega a bolsa pela vaidade”. Em outro parágrafo ele fala assim: “A curiosidade, o chamado desejo inato de conhecimento, só desperta e age depois de estar satisfeita a necessidade de se conhecer para viver”. Diferente do viver para conhecer. O que se depreende da fala deste famoso ensaísta, é que primeiro vem a luta pela sobrevivência, para depois vir o deleite do filosofar, como bem esclarece ele neste outro trecho: “O homem costuma filosofar, ou para resignar-se à vida, ou para encontrar nela alguma finalidade, ou para divertir-se e esquecer suas penas, ou por esporte ou jogo”.

Finalizando este pequeno exercício de imaginação sobre as agruras do infindo “varrer de chão” cito mais um outro trecho de Miguel de Unamuno, que vem bem a calhar, pela sua riqueza de sentido: “O universo visível, o universo que é filho do instinto de conservação, me é estreito como uma jaula pequena para mim, e contra cujas barras minha alma bate em seus vôos; falta-me no ar o que respirar”.

Varre-se o chão para se poder sobreviver, mesmo a custa da privação da liberdade, em uma gaiola chamada “mundo civilizado”, mundo hostil ao nosso espírito de conhecimento do verdadeiro sentido da vida, que paulatinamente tenta nos transformar em um mero “objeto”, em meio a uma sociedade regida pelo consumismo de coisas efêmeras e irracionais. Felizmente, ou infelizmente, fazemos parte dessa engrenagem.

“Varrer o chão”, necessário é para satisfação do nosso instinto de conservação. Contudo, quando a vassoura estiver a descansar “atrás da porta”, cuidemos das coisas do espírito.

(Ensaio por Levi B. Santos. Guarabira, 25 de setembro de 2006)