13 dezembro 2018

Diálogo Entre Édipo Rei e Creonte ─ (ou) Virtuosos e Tiranos na “Democracia”



Fragmentos de cerâmica Ateniense – usadas para contar votos nos processos democráticos



Em sua fenomenal obra “A Era do Imprevisto A Grande Transição do Século XXI”, Sérgio Abranches faz referências a trechos de um emblemático diálogo entre dois personagens míticos da Grécia antiga (berço da democracia). Édipo e Creonte funcionam como elementos basilares para compreensão e sustentação dos argumentos que o autor delineia e aplica às formas de governo do mundo atual, em face de um futuro de incertezas; não deixando, inclusive, de enfatizar que todo o mandante, sem o contraponto da oposição, pode se transformar em um tirano.

Uma pequena parte do diálogo do excepcional dramaturgo grego, Sófocles, abaixo replicada, retrata bem o antagonismo entre o detentor do poder e aquele que se encontra sob o seu mando. O primeiro age imbuído do desejo célere de fazer justiça, sem a profunda e devida reflexão. Enquanto o segundo (subalterno), de forma mais argumentativa, tenta buscar uma compreensão sobre a parte que lhe afeta de perto, sem perceber que, inconscientemente, também anseia pelo populismo do qual o outro é detentor.

Édipo Rei inconformado ao perceber que seus desejos foram contrariados por Creonte, exaure sua sentença:

Não quero teu exílio, quero a tua morte.

Creonte:
Seria justo se provasses a minha culpa. A retidão falta em tuas decisões

Édipo:
Quando se trata de meus interesses, não.

Creonte:
O meu interesse também mereceria igual cuidado.

Édipo:
Deves-me, da mesma forma, obediência.

Creonte:
Se mandas mal, não devo.

Édipo, apelando à turba, responde:
Meu povo! Meu povo!

Creonte contesta, de imediato:
Também pertenço ao povo que não é só teu.

O povo, que antes exaltava o Rei Édipo, aplaude agora o astucioso Creonte, que lhe usurpou o trono, passando-lhe essa reprimenda:

Não queiras ser mais o mestre de todas as coisas. O poder que ganhastes em outros tempos deixou agora de existir.


Uma vez no Poder, Creonte age da mesma forma que o rei Édipo, usando dos mesmos métodos de tirania. Ao invadir a esfera do privado em um suposto nome do estado, de forma desastrada, Creonte se corrompe ao interpretar a lei segundo seus interesses particulares, abusando do poder ao condenar injustamente Antígona. Na nascente Democracia Grega tudo funcionava como se cada eleito para o posto máximo do Governo tivesse um tirano latente dentro de si, coberto por uma capa exterior (falsa) de virtuosismo. A psicologia, depois de Freud, desnudou esse homem ao explicitar com clareza todo o mecanismo psíquico de fundo paradoxal, que ainda hoje o escraviza na pós-modernidade. Os poderosos, no entanto, continuam cegos para aquilo que a psicanálise na modernidade conseguiu dissecar. Desde a Grécia antiga os governantes no Poder estabelecem normas de conduta a ser seguidas por todos do andar de baixo, mas na surdina, eles mesmos, se consideram exceção à regra. Sob o manto da “igualdade – fraternidade e justiça”, na atualidade, nunca exteriorizaram de forma escancaradamente maléfica seus monstros interiores, que destroem ou inutiizam toda retórica discursiva de cunho virtuoso.

O dramaturgo Sófocles, antevendo o destino da capenga democracia de Atenas, coloca palavras lapidares na boca de Creonte, palavras que ressoam de forma mais dolorida em nosso sombrio tempo, travando nossa língua de um amargor muito mais forte e cruel do que aquele experimentado pelos filósofos no sonho democrático abortado na Grécia antiga. Creonte, ao abrir os olhos para o óbvio ululante, do fundo de seu ser, faz emergir uma insofismável verdade, no final melancólico de seu enredo trágico:

― “Não é possível conhecer perfeitamente um homem e o que vai no fundo de sua alma, seus sentimentos e seus pensamentos mesmos, antes de o vermos no exercício do poder”.


Para mostrar que a democracia grega já nasceu capenga, o historiador Luciano Cândido, em “O Mundo de Atenas”, cita Tucídides: O governo de Péricles foi democracia apenas nas palavras. Há quem a chame de democracia e quem a chame de outra maneira, cada qual de acordo com sua preferência, mas, na verdade, é uma aristocracia com o apoio das massas”.

Vejo nessa ideia da força corruptora do poder não contestado, as duas faces de Creonte na Trilogia de Tebas” (Sérgio Abranches)

Abranches, em sua magistral obra, empreendeu uma profunda abordagem sobre a Medida do Poder, trazendo para o presente o maniqueísmo da denúncia, do impedimento, assim como do populismo que sempre grassou entre os poderosos, desde os primórdios da civilização Grega. Na realidade, esse sonho democrático (repleto de maquinações) ensaiado pelos personagens míticos do dramaturgo Sófocles (400 a.C), ainda hoje, se faz plenamente presente em todos seus aspectos. As profundas mudanças e transições históricas globais (retrocessos) que estamos a experimentar na atualidade, não nos deixam mentir.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de dezembro de 2018

24 novembro 2018

“A MOÇA DO SONHO” E A “DEMOCRACIA BANGUELA”



Clique na Figura para ver melhor




A canção “A Moça do Sonho” de Chico e Edu Lobo , foi esboçada para o show Cambaio em 2001. Em uma nova e magistral interpretação - foi incluída no recente Show e CD “CARAVANAS” de Chico Buarque.

Foi lá no magnífico Teatro Pedra do Reino – João Pessoa (15 de setembro de 2018 – pouco mais de duas semanas antes do primeiro turno da eleição para presidente da república), que tive a oportunidade de ver um Chico de pé (com sinais na face, denunciando seus setenta e quatro anos de idade). Impassível, só as mãos meio trêmulas acompanhavam, sob a forma de sentidos gestos, sua voz melancólica. Teatro lotado. Na plateia nenhum pio se ouvia, e as estrofes da dolente canção “A Moça do Sonho” extravasavam de sua boca, agitando e vibrando as cordas dos corações daqueles que estáticos o ouviam sentados em aconchegantes poltronas.


Arrisquei perguntar: Quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó.

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: Quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu.” (Primeira parte de “A Moça do Sonho”)

O poeta é o rei das metáforas.

É impossível pensar em qualquer sonho sem que uma motivação original não tenha passado pela mente: quer seja um desejo, anseio ou impulso. O Sonho simplesmente é produto de uma elaboração dramática que parte dos fragmentos históricos pré existentes no subsolo de nosso aparelho psíquico”. (Já dizia Freud, em “A interpretação dos Sonhos” – página 86)

E Chico, o poeta maior da MPB, por fim, como um exímio artista em “A Moça do Sonho”, exibia seus próprios desejos, seus próprios sonhos, sua utopia, sua esperança/desesperada, seu anseio em retornar ao “Jardim do Éden”, seu gozo imaginário por um venturoso “Milênio de Paz e Justiça” de que trata a religião cristã no livro do Apocalipse Bíblico.
Como metáfora para os dias atuais, por que não traduzir a “Moça do Sonho”, como a Democracia sonhada por muitos, principalmente, em tempos sombrios de mudança de governo?

Sou da época de Chico Buarque, e aprendi nos livros de História que a Democracia (ou sonho democrático) nasceu na Grécia de Péricles e Aristóteles - 500 Anos a.C.. Mas a coitada, creio eu, foi tão maltratada que já chegou ao Novo Mundo desdentada.

A título de realce, não poderia deixar de repetir, aqui, o que escreveu o pai de Chico (o Historiador Sérgio Buarque de Holanda) sobre nossa suposta cordialidade democrática ─ no antológico clássico ─ “Raízes do Brasil”:

A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. […] Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência ou hostilidade”.

E por falar em “sonho democrático”, não é que o cartunista, André Dahmer, da Folha de São Paulo (no Caderno Ilustrada da Folha de São Paulo de 10 de novembro de 2018) publicou um humorado quadrinho (Vide Figura no Topo do texto) que, muito bem, poderia ter esse título: “Você Beijaria a Democracia Banguela?”

Bem, pelo menos em sonhos (utopia), o poeta maior da MPB deixa implícito na pungente canção, o desejo (que também é o nosso) de um dia encontrar essa “Moça”, e não voltar jamais (que fique claro: com todos os dentes e não banguela)


Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a Vida não…


Um lugar deve existir
Uma espécie de Bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre as escadas que fogem dos pés
E relógios que andam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava jamais”. (final da letra de “A Moça do Sonho”)




03 novembro 2018

QUANDO O ATO DE PERDOAR É UM “TAPA NA CARA DO OUTRO”







Quando se fala em perdoar o outro, há que se deter no fato de que há perdões para todos os gostos. Existe até aquele tipo de pedido de perdão que faz cessar a raiva de quem planeja a tal ação não tão virtuosa assim. Digo não virtuosa por ser de fundo egoístico. No ato do “generoso” está escondido o desejo inconsciente (ou consciente) de constranger àquele que o injustiçou.


Há quem afirme que o ato de perdoar uma pessoa inimiga pode, por incrível que pareça, ser uma espécie de vingança recolhida. Nesse caso, a pessoa que pede perdão ao faltoso, sente-se como se tivesse dado um soco no estômago ou tapa na cara de quem lhe fez mal. Na realidade, a solicitação de perdão da pessoa atingida em sua sensibilidade àquele que provocou o dano, tem mais a função de aliviar o ressentimento interior do magoado ― uma forma sutil e até certo ponto covarde ―, que pode muito bem ser considerada um revide a suposta ofensa recebida. Refletindo bem, esse ato de pedir perdão confere a quem o pede, uma sensação de superioridade sobre o outro que, nessas ocasiões, se mostra desconcertado ou constrangido. Uma versão bíblica mais versátil sobre essa modalidade de perdão se encontra no Livro de Provérbios de Salomão (25: 21, 22): “Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer, e se ele tiver sede, dá-lhe água para beber. Porque juntarás brasas ardentes sobre sua cabeça”.

Em resumo, é mais ou menos assim, o que se passa na mente de quem resolve pedir perdão ao inimigo:


...esperei demais que ele viesse me pedir perdão, até que encontrei uma fórmula de me vingar dele: ao invés dele vir a mim, quem vai a ele sou eu, quando deveria ocorrer o contrário”.


Por outro lado, lá no fundo do coração ou do inconsciente de quem pede essa modalidade de perdão, flui uma nesga de prazer ao ver o outro humilhado ou lívido de vergonha. Reza a psicanálise que isso faz parte das nossas relações narcisistas de cada dia.


Na verdade, o simbolismo da expressão ― “tapa na cara ou soco no estômago” ―, pode corresponder a mistura de duas dores: a de um que, fomentado pela mágoa, não conseguiu esquecer uma ferida antiga e a do outro que não teve como guardar remorso por algo acontecido em sua vida pregressa.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 03 de novembro de 2018

21 outubro 2018

VIAGEM IMAGINÁRIA AO IMPÉRIO DO MEDO



Quadro “O Grito” de Edward Munch


Enquanto escrevo essas linhas, jornalistas da Globo News no programa “Central das Eleições” discutem, alvoroçadamente, sobre a pesquisa mais recente do “Datafolha”, contendo dados estatísticos sobre o medo de implantação de uma futura ditadura no Brasil. A pergunta feita ao eleitor foi essa:

Qual a chance de haver uma nova ditadura no Brasil?

A resposta mostrou o país rachado: 50% tem medo de que a ditadura volte.

Em época que a mídia trata de explorar o medo entre os eleitores, nada melhor que recorrer ao sociólogo, Zygmunt Bauman, e refletir um pouco sobre o que ele diz no trecho, abaixo, de sua obra Vida Liquida”:

a vida na sociedade líquido-moderna é uma versão da dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo”.

Ainda, no tocante ao medo, gostaria que respondessem a essa pergunta:

Vocês sabem por que o filme Titanic atraiu tanta gente, chegando na época a superar todos os recordes anteriores de bilheteria? Na verdade, quem pergunta e ao mesmo tempo responde, em forma de metáfora, é Jacques Attali:

O Titanic somos nós, nossa sociedade triunfalista, autocongratulatória, cega e hipócrita, sem misericórdia para com seus pobres uma sociedade em que tudo está previsto, menos os meios de previsão… Todos imaginamos que existe um iceberg esperando por nós, oculto em algum lugar no futuro nebuloso, com o qual nos chocaremos para afundar ouvindo música… .
Attali, identificou vários icebergs: financeiro, nuclear, ecológico, social e o proveniente do fundamentalismo religioso,” (Zygmunt Bauman – Medo Líquido).

Não poderia, de maneira alguma, deixar de trazer à tona o maior pensador e dramaturgo do século XX, o alemão Bertolt Brecht. Ele diz algo que vem bem a calhar com o sentimento de medo que, por ora, domina os corações da geração dos ex-colonos de Portugal. Da sua memorável comédia “De Nada, Nada Virá” , trago um trecho que,(quem sabe?), pode funcionar como um calmante ou antídoto contra a neurose coletiva que domina atores de diversos escalões da sociedade:

O PENSADOR:
Vou pensar alto, o que querem representar, se isso não atrapalhar o meu próprio pensamento?

OS ATORES:
Vamos apresentar a vida dos homens entre os homens

O PENSADOR:
O que querem provar com isso?

OS ATORES:
Não sabemos, o que você acha que poderá ser provado, se apresentarmos a vida dos homens entre os homens?

O PENSADOR:
De Nada, Nada Virá.

OS ATORES:
???

Podem até considerar que o que eu vou dizer aqui é coisa de louco. Mas, como é livre a expressão do pensamento, quero dizer ao nobre leitor(a), que o meu pessimismo parece, hoje, ter dado lugar a um incipiente otimismo (o otimismo dos atores da comédia de Brecht – rsrs).
Mas não ria não! Console-se. Pensando bem, vejo que os navios de grande calado, hoje, bem mais reforçados do que os de 1964 navegam pela mesma rota que passou o velho Titanic, sem, no entanto, correrem o perigo de se desmancharem frente a choques de média intensidade (Marolas ou marolinhas, na linguagem do velho timoneiro, Lula).

Ademais, não custa lembrar que, logo logo, chegará o Natal, depois vem a festa do reveillon, e mais um pouco a frente, o Carnaval. Por esse tempo todo, podem ficar certo, não haverá grandes navegações em alto-mar, pois, os navegadores (comandantes) estarão todos gozando férias prolongadas. Ou não estão lembrados que o Brasil, como é de costume, só começa a funcionar depois da Páscoa?. Até lá, não vai haver perigo de afundamentos de navios nem afogamentos de passageiros. Haverá, sim, por esse período de tempo, uma acomodação geral e irrestrita. Nesse ínterim, os derrotados de ontem se abraçarão com os vitoriosos de hoje em Copacabana na festa de fogos, ou mesmo na Sapucaí. E o povão, feliz da vida, poderá ver pela TV os componentes dos blocos partidários (ou sopinhas de letras) a torcer, efusivamente, por suas escolas de sambas financiadas com dinheiro público.

E o Império do Medo, então, se transformará em Império da Alegria. Os de togas, os de paletós e os vestidos de roupas de militares sairão de braços dados com os fantasiados portando armas de brinquedos, numa algazarra, aos olhos de muitos, irracional. Foliões, desfilando com máscaras de todos os que concorreram à Presidência da República, se deleitarão num clima de pacificação jamais visto nas terras de Santa Cruz.

Falou o profeta, que hoje, se encontra sem medo e de bom humor.

Despeço-me, não sem antes, a título de alerta, deixar aqui para cristãos e não cristãos, uma máxima do apóstolo Paulo, considerado o fundador do cristianismo: “Queres tu, pois, não ter medo da autoridade? Faze o bem...” (Romanos 13: 3)


Por Levi B, Santos
Guarabira, 21 de outubro de 2018


17 outubro 2018

É Tempo de Revisitar Freud em ― “Psicologia das Massas e Análise do Eu”





Não havia ocasião mais propícia para Freud se debruçar sobre o comportamento das massas em face do eu individual, que a do fim da Primeira Grande Guerra Mundial. Só em 1921 é que o mundo acadêmico da Europa pode, afinal, conferir seu livro “Psicologia das Massas e Análise do Eu”. Sem dúvida, foi desse mega-conflito mundial que o velho barbudo, conseguiu obter material de sobra para sua extraordinária obra que, ainda hoje, repercute nas hostes psicanalíticas referência para quem deseja dar um mergulho com profundidade no mundo psíquico e no ativismo ideológico que dele se origina.

Freud recorre a Gustave Le Bon, que o antecedeu no estudo da alma coletiva das massas. Ele achou por bem ressaltar (entre aspas) o que seu antecessor deixou escrito, e que faço questão de replicar, por entender que é de crucial importância para a compreensão do que acontece no momento, aqui, nas terras de D. João VI:

Escreveu Freud
Agora passo a palavra a Le Bon. Ele diz:

O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, seja semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. [...]Para compreender esse fenômeno, é preciso ter em mente algumas descobertas recentes da fisiologia. Sabemos hoje que um indivíduo pode ser posto num estado tal que, tendo perdido a sua personalidade consciente, ele obedece a todas as sugestões do operador que a fez perdê-la, e comete os atos mais contrários a seu caráter e costume. Ora, observações atentas parecem provar que o indivíduo, mergulhado há algum tempo no seio de uma massa ativa, logo cai em consequência de eflúvios que dela emanam num estado particular, aproximando-se muito do estado de fascinação do hipnotizado nas mãos do hipnotizador. […] A personalidade consciente se foi, a vontade e o discernimento sumiram. Sentimentos e pensamentos são então orientados no sentido determinado pelo hipnotizador. [...]Portanto, pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos”.

O que me levou a empreender essa rápida revisitação a uma das mais interessantes obras de Freud, foi exatamente o clima de histeria coletiva que por ora, divide o país em duas tribos antagônicas a se insultarem mutuamente.

Por sinal, na Folha de São Paulo de ontem (dia 16), um artigo de Vera Iaconelli (mestre e doutora em Psicologia pela USP e membro do departamento de psicanálise da Sedes Sapientiae), não nego, concorreu para me instigar a revisitar Freud em sua fenomenal obra, editada em meio a Segunda Guerra Mundial. O Pai da Psicanálise sustentava que o analista não deveria se engajar em tribos partidárias em suas renhidas lutas políticas. Seguindo essa linha freudiana, diz a doutora, em um momento de seu ensaio, sob o título: “Posição Política de um Psicanalista”:

Para o psicanalista pouco importa em que seu paciente deve votar. […] o paciente só fala de si mesmo, em infinitas versões. […] Nesse ponto a ética do analista é não julgar e permitir que o paciente escolha o que fazer com o que descobre de si. A sessão trata menos do encontro entre o paciente e o analista do que do encontro do paciente consigo mesmo, sustentado pela abstinência do analista. Se nosso trabalho se baseia no exercício diário dessa abstinência, como podemos vir a público repudiar um candidato e declarar nossa intenção de voto?
[…] Qualquer proposta política que propagandeie o uso do outro como bode expiatório daquilo que não queremos reconhecer em nós é antipsicanalítica e deve ser combatida como tal”.

O momento atual do “Nós contra Eles” não difere muito do tempo em que viveu Freud, como estudioso e perseguido que foi pelas elites científicas , sofrendo os efeitos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Quanto a esse último duro conflito que, em sua essência, envolveu “semitas X antissemitas”, para não ser morto, o fundador da psicanálise teve que fugir para Londres, onde, em exílio, viveu seus últimos dias. Foi lá na Inglaterra que, já cansado e gravemente enfermo, sem antes fazer algumas correções, traduziu para o inglês sua magistral obra, ainda hoje em evidência nos círculos científicos e universitários “O Futuro de Uma Ilusão”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 17 de outubro de 2018

24 setembro 2018

O Discurso Como Mecanismo de Defesa







Dentre os mecanismos psíquicos de defesa desenvolvidos por Freud um, muito usado, para defender ou escamotear interesses individuais e de grupos que se sentem em posição desconfortável, é a racionalização, geralmente, bem articulada em forma de discurso.

O discurso, quase em tom de desespero, do sociólogo e ex-presidente da república, FHC, realizado recentemente em forma de carta (dia 20), se enquadra muito bem nessa categoria freudiana. Na verdade, esse tipo de discurso de última hora, quando o barco está a naufragar, tem, por incrível que pareça, a função de proteger a pessoa declamante ou o grupo com o qual se identifica. Não é à toa que a psicanálise reza que no lado avesso do discurso elaborado sob forte ressentimento(a carta de alerta dirigida aos eleitores) reside o medo do autor perder algo de si ou para si que ele considera de crucial valor ou importância.

Em meio ao pedido de socorro vindo de altos escalões de nossa república, alguns, de forma escancarada (em nome de uma suposta paz), incitam a renúncia de um dos dois principais postulantes ao cargo de presidente da república, como a melhor das soluções. Dizem até: a pátria em situação de extrema gravidade está a exigir o sacrifício de um dos que estão em primeiro lugar nas pesquisas. Aqui, é bom que se ressalte: o mecanismo de defesa psíquica interessa ou favorece mais ao autor da carta de alerta fora de tempo, movido, pelo menos inconscientemente, por um sentimento de culpa.

Freud descobriu a nascente desses mecanismos de defesas: eles têm origem na infância e perduram por toda a idade adulta. Foi a partir do pai e contra ele (como autoridade patriarcal) que a criança em tenra idade iniciou o desenvolvimento de todos os tipos de defesa, como: introjeção ou recalque, negação, projeção, reação e a tal racionalização. Desde a aurora de nossas vidas fazemos uso desses mecanismos de defesa que, da instância do Superego (Pai simbólico ou imaginário), nos ameaça punir com a culpa diante das astúcias do ego.

A expressão popular “discurso da boca para fora” , em ocasiões sombrias, quando o jogo jogado se encontra aos 40 minutos do segundo tempo, tem lá a sua razão de ser dita. “Os humanos têm uma forte necessidade de viver em grupos, próximos um dos outros. Mas essa necessidade entra em conflito com sua agressividade inata e seu desejo de se satisfazer egoisticamente. [..] Para muito de nós, a tentativa de reduzir a culpa, evitá-la ou expiá-la é um importante motivador” (Michael Kahn – “Freud Básico” – Editora Civilização Brasileira).

Como a História é cíclica, basta dirigir o olhar para trás, a fim de perceber que não só em nossos adversários, como em nós mesmos, e entre nossos amigos, esse fenômeno chato e doloroso está repetidamente sendo recriado. Interessante, é que dois dias após sua carta-discurso, FHC veio a público afirmar pelo Twitter que sua carta tinha sido dirigida ao povo, e não aos partidos (às cabeças pensantes responsáveis pela sopinha de letras que inunda o país). E aí, a emenda saiu pior do que o soneto, pois, o sociólogo incorreu em mais dois mecanismos de defesa muitíssimo estudado por Freud: o de negação e o de projeção. O tom da carta deu a impressão de uma mera forma de negar (junto às altas cúpulas) ser responsável pela atual situação vexatória; situação que, ao contrário de sua argumentação de fundo defensivo, foi obra executada em seus minimos detalhes, de cima para baixo. Pasmem: através do mecanismo de projeção pôs toda a culpa na conta do povo, com essa infeliz frase, endereçada aos eleitores: “Ainda há tempo para deter a marcha da insensatez”

Faltam poucos minutos para o término da partida: agora, é só esperar, para ver o resultado daquilo que foi plantado entre nós. Espernear não adianta. O choro pelo descaso e a indiferença para com o sofrido povo, inevitavelmente, não vão trazer de volta o leite derramado.


Por Levi B. Santos
Gurabira, 23 de setembro de 2018

OBS:
Imagem do Topo: "O Inconsciente é a Verdadeira Realidade Psíquica" Sigmund Freud (1856 - 1939) O Livro da Psicologia ― GloboLivros

16 setembro 2018

Abordagem Psicanalítica de Nossa Postura Político-Ideológica




Dois jovens pugilistas de Santorini (1550 a.C)


No mundo todo, particularmente em nossa nação, o que há de mais selvagem no inconsciente coletivo e individual está sendo exposto de forma violenta nas redes sociais e demais veículos de comunicação. Foi refletindo sobre esse instinto agressivo/destrutivo que resolvi revisitar um trecho que, há mais ou menos 20 anos, grifei no volumoso livro “Eros e Repressão”, de Rollo May (Editora Coleção Psicanálise). Trata-se do capítulo ― “O Neurótico e o Profeta”.

Partindo de sua experiência com a vasta clientela de neuróticos que atendia em consultório e, recorrendo ao que Freud já tinha profunda e minuciosamente analisado em “Mal Estar na Civilização”, disse Rollo May:

Nossos pacientes predizem a cultura vivendo conscientemente o que a massa do povo conserva ainda inconsciente. […] Hoje, a pessoa que tem problemas psicológicos carrega no próprio sangue o peso dos conflitos dos tempos e está destinada a predizer, através de seus atos e lutas, as crises que mais tarde irromperão de todos os lados na sociedade”.

Hannah Arendt, por sua vez, em seu livro “Sobre as Revoluções” recorreu a Freud (“TOTEM e TABU”), para nos revelar algo que vem bem a calhar com os momentos atuais de loucura coletiva:

A narrativa é clara: qualquer fraternidade de que sejam capazes os seres humanos nasceu do fratricídio, qualquer organização política a que tenha chegados os homens, teve origem no crime” afirmou, de forma enfática, a pensadora alemã de origem judaica, autora de antológicas obras, como "Origens do Totalitarismo" e a que trata do julgamento de "Eichmann em Jerusalém".

No Mito do Pai da Horda (“Totem e Tabu”, de Freud) os filhos mataram o Pai Primevo e fundaram a aparente fraternidade (ensejando a utopia de que tudo seria resolvido de maneira horizontal pelos irmãos). Ao dizer “aparente fraternidade”, corroboro com Freud que, em seus escritos, deixou claro que o Pai simbólico internalizado (Superego) nunca deixa de emitir suas ressonâncias na psique humana. Ele (o Pai) continua encarnado em nós, como uma das funções estrturantes, senão a principal, de nosso aparelho psíquico (o arquétipo paterno). 
“Após o ato (fratricídio), a s, filhos descobrem que também amavam esse pai; o amor é então, transformado em sentimento de culpa e a palavra do pai se converteu em lei simbólica. Este pai morto seria a condição de retorno da ordem e do estabelecimento de um laço social com a renúncia dos filhos ao gozo da mãe”. [Que Pai é Esse? ― Círculo Psicanalítico da Bahia).

O que Freud escreveu em 1921 continua muito atual, na medida em que os filhos ainda procuram idealizar um Pai, que não aquele primevo. Decorrido quase cem anos da primeira edição de “Totem e Tabu”, em sua febre ideológica polarizada, os filhos desse Pai imaginário reunidos numa suposta irmandade, continuam a usar da violência em suas relações inter-pessoais, chegando até, entre nós, a manchar o solo com sangue humano ― consequência nefasta das pulsões destrutivas e cruéis sobre o outro que lhe serve de “bode expiatório”.

É bom ressaltar, aqui, a referência que o psicanalista Jacques Lacan, nos anos sessenta, fez dos sintomas histéricos coletivos de maio de 1968, na França. Na ocasião, Lacan, se dirigindo aos jovens que gritavam bordões, tipo ― “É proibido proibir!” ― reverberou de forma enfática: “Como revolucionários vocês são histéricos a demandar um novo mestre. Vocês o terão!”.

De lá para cá, protestos violentos continuam varrendo vários países de todos os continentes. Tudo acobertado sob o manto da “democracia”. Na verdade o conflito ocorre primeiro dentro das mentes doentias de cada grupo. Nos renhidos embates, os polos afetivos ambivalentes da alma humana são rotulados de direita e esquerda. Não sabem os revolucionários que nesse confronto estão, apenas, projetando os próprios recalques provenientes dos porões de seu inconsciente no outro tido como inimigo.

Não sabem eles que, desde os primórdios, tese e antítese estão à procura de uma síntese, e não de um choque destrutivo. Republicanos e Democratas, Conservadores e Liberais, Intransigentes e Complacentes, Severos e Lenientes não são mais que adjetivos a denunciarem a dualidade dos afetos paradoxais de nossa alma.

Em tempos pré-eleitorais o que mais se deseja (consciente ou inconscientemente) não é unir, nem é buscar no outro o seu próprio sintoma esquecido ou guardado a sete chaves. O que mais se deseja, entre os grupos, é rotular o outro de direita ou de esquerda, como se a identidade negativa e burra estivesse sempre presente no outro e não no seu próprio Eu. O que talvez não compreendam é que os afetos que tanto identificam o “republicano” quanto o “democrata” fazem parte de nossa alma dúbia. Alma que ora pende para um lado, ora para outro, tal qual um equilibrista a caminhar perigosamente em uma corda bamba. Essa realidade psíquica desqualifica qualquer um a ser árbitro para julgar os afetos de natureza subjetiva do outro.

Parece que em tempos de acirramento político há uma regressão ou involução humana, uma espécie de retorno ao tempo em que éramos bárbaros ou selvagens, retorno ao tempo dos clãs. Tempo em que éramos cegos para o mal que existia em nós mesmos: só tínhamos a capacidade de percebê-lo na tribo que considerávamos inferior à nossa.

De certa forma, o embate ideológico dos tempos atuais, nada mais faz, que trazer à tona os monstros que estavam adormecidos na psique humana, desde tempos imemoriais  como bem fez ver o psicanalista Christian Dunker, quando no jornal NEXO, em janeiro de 2018, discorreu sobre “os efeitos da crise política para os brasileiros”:

A massa tem esse funcionamento polar, de precisar sempre segregar os inimigos para reforçar os laços de identificação [entre iguais]. É como se o funcionamento de massa exigisse a produção de grandes ídolos que são sucedâneos do Pai, um Pai muito autoritário”  


A História sempre mostrou que é em época de descontrole e vazio de poder, que a figura paterna (arquétipo patriarcal) ressurge das profundezas da psique humana com força total. O veneno dessa força instintiva descomunal ao aflorar nas almas humilhadas, desamparadas e desesperadas, insinuam, em suas mentes infantilizadas, o desejo ou anseio de proteção. Proteção, que em ambos polos ideológicos extremistas (direita e esquerda), se remontam a figura paterna onipotente (super-ego). Nietzsche, naquilo que fico cunhado de "eterno retorno", já fazia menção a uma tendência de repetição de fatos indigestos no desenrolar da história humana, desde as mais remotas eras.


O que Freud, com a descoberta da área sombria de nossa psique a que denominou de “Inconsciente”, conseguiu deixar tão claro, senão a de que, em tempos de paz, instintos altamente agressivos representados por paixões ideológicas antagônicas dormem de forma latente em cada ser humano?
Procurando entender o que levava os homens a essa forma cruel e extravagante de conflito, Albert Einstein, em uma de suas muitas cartas enviadas a Freud, fez a fatídica pergunta: “Por Que a Guerra?”. O fundador da psicanálise, sendo judeu, ainda mais numa época conturbada de violento antissemitismo, não quis se estender no tema, revelando, apenas, que os dois polos representativos da ambivalência humana, quando em atrito, davam lugar a “pulsões destrutivas” (Tanathos).


Só não vê quem não quer, a “indomável psicose coletiva” que grassa em nossas glebas.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 16 de setembro de 2018