12 janeiro 2019

Sobre a Metáfora “Espinho na Carne”




E foi me dado um Espinho na Carne” (Saulo de Tarso)



É consoante em psicanálise que a metáfora “Espinho na Carne”, usada pelo apóstolo Paulo em uma de suas cartas, tem a ver com algo de natureza inconsciente que amarra o sujeito nos momentos em que o intrometido “Eu” costuma aparecer como se fosse senhor absoluto de todo o saber. O espinho, de tão íntimo e arraigado ao indivíduo, acaba por se tornar irremovível. É uma espécie de vínculo afetivo incrustado no passado da memória, sede de angústias e intensas dores morais, quando despertado ou tocado.

Na busca de um estado utópico de perfeição, dizemos que renunciamos a algo sombrio e íntimo de nossa personalidade (afetos que no passado nos garantiam um certo grau de satisfação egocêntrica). Como não somos senhores de nós mesmos, aquilo que percebíamos como afetos extirpados (simbolizados pela figura de um incômodo espinho na carne), independentemente de nossa vontade, retornam a nós, de uma maneira muito sutil e em momentos jamais imaginados. É em decorrência do choque entre afetos paradoxais de nossa natureza dual (Se quer, mas não se pode) que surgem a angústia e o mal estar psíquico. Usando outros termos, poderíamos asseverar que ninguém pode se considerar salvo desse tipo de sofrimento existencial.

Devem existir aspectos de nossa vida que até podemos dar um jeito, menos o ato de tirar o espinho da carne. Toda vez que pensamos ter eliminado o espinho de nossa carne, lá estamos a projetá-lo no outro. Por esse mecanismo de defesa, o espinhoso passaria a ser o outro, nosso “bode expiatório”, a quem julgamos. Ledo engano, o espinho na carne não se retira. Ele é um elemento necessário para equilíbrio do sujeito em suas ambivalências existenciais pela vida afora, além de um formidável antídoto para que ninguém possa se gloriar.

A compreensão “constrangedora” de que por mais que nos esforcemos, cativando uma imagem melhor e mais simpática para nós mesmos, continuará lá nas profundidades psíquicas do nosso ser, resíduos afetivos que muito almejaríamos jogar no mar do esquecimento, a saber: impulsos, inclinações, pensamentos e imagens destoantes daquilo que construímos como máscara virtuosa em nossa vida de relação.

Zygmunt Bauman, em “O Retorno do Pêndulo”, demostra que o armistício, na guerra entre os desejos ambíguos da alma humana, é sempre temporário, até o próximo confronto. O famoso sociólogo, assim como Paulo em suas relações com os romanos, faz uso da metáfora do espinho na carne, como indicativo ou reflexo da dualidade intrínseca da alma e da condição humana:

...Um espinho cravado no corpo das relações entre o indivíduo e a sociedade. [...]significa enfrentar situações nas quais a balança se inclina contra fazer o que se quer e a favor de fazer algo que se gostaria de evitar”. (Zygmunt Bauman)
Foi em um contexto análogo que, numa espécie de insight, o apóstolo Paulo diante dos altivos romanos fez desaguar do seu obscuro oceano interno afetos contraditórios, até então escondidos: “Pois o que quero isso não faço, mas o que não quero isso faço” (Romanos 7:15)

Em “A Gaia Ciência”, vejamos o que Friedrich Nietzsche escreveu em analogia à metáfora Paulina espinho na carne”:

Examinem a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntem a si mesmos se uma árvore que deve crescer orgulhosamente no ar poderia dispensar o mau tempo e os temporais; se o desfavor e a resistência externa, se alguma espécie de ódio, ciúme, teimosia, suspeita, dureza, avareza e violência não faz parte das circunstâncias favoráveis sem as quais não é possível um grande crescimento, mesmo na virtude? O veneno que faz morrer a natureza frágil é um fortificante para o forte e ele nem o chama de veneno”.

É certo que, hoje, não mais existe inconciliabilidade entre a Teologia e a Psicanálise. O Judeu Sigmund Freud, por exemplo, foi um incansável leitor e intérprete das inúmeras figuras de linguagem presentes na Bíblia e bebeu a vida toda dessa insaciável fonte. Ela muito o auxiliou na construção dos conceitos linguísticos e científicos que serviram de base para a nascente Psicanálise, no final do século XIX. Tanto é assim, que o influente teólogo alemão Paul Tillich, no capítulo 8 (Significado Teológico do Existencialismo e da Psicanálise) de sua fenomenal obra “Teologia da Cultura” assim se definiu, a respeito: Certamente, o desenvolvimento da psicanálise tem sido de infinito valor para a Teologia. [...]As duas disciplinas não andam em caminhos separados, mas se interpenetram”

Voltando à metáfora Espinho na Carne criada pelo apóstolo Paulo: Freud, através de suas esmiuçadas observações, incansáveis análises e longos estudos da psique humana, chegou à conclusão de que não há indivíduos “sem espinhos”. Disse o fundador da Psicanálise: “Existe em todo ser humano uma instância especial na psique onde é mantida imagens, desejos e sentimentos considerados inaceitáveis, adquiridos em nosso desenvolvimento biossocial e psicológico afetos que gostaríamos de nos ver livres deles para sempre”.

A esse lado espinhoso da personalidade, que percebemos como indesejável, Carl G. Jung denominou Sombra”. Torcemos o nariz para esse nosso lado sombrio, e isso não passa de uma atitude defensiva ou reativa, pois, indubitavelmente, não temos o poder de anulá-lo ou destruí-lo através de nossa frágil vontade.

Foi em um conflito com esse lado medonho e obscuro, latente em si mesmo, que o próprio Paulo foi incitado a fazer essa crucial exclamação: “Miserável homem que sou. Quem me livrará do corpo dessa morte!”(Romanos 7: 24)

Para que eu não ficasse orgulhoso, recebi o dom de um obstáculo(espinho), que me mantém em contato com minhas limitações. Sem chance que eu ande de nariz empinado e orgulhoso! No princípio, eu não pensava nele(no espinho) como um dom. […]Agora enfrento com alegria essas limitações, como tudo o que me torna pequeno – abusos, acidentes, oposição, problemas.” (Palavras de Paulo Versão contemporânea da II Epístola aos Coríntios 12: 7-12).

Não poderia deixar de trazer a metáfora do espinho na carne para os tempos atuais, empregando-a no contexto do frenético mundo cibernético que, progressivamente, vem tomando conta de nossas vidas. O Facebook e o WhatsApp são exemplos de nossos novos objetos de desejo. O arguto espinho digital, apesar de está bem encravado em nosso ser, nunca esteve tão visível. O renomado sociólogo brasileiro, Jessé Sousa, em seu livro recentemente lançado pela Editora Estação Brasil ― “A Classe Média no Espelho Sua História, Seus Sonhos e Ilusões, Sua Realidade”(página 262), diz algo emblemático sobre esse novo espinho irremovível, a cujos efeitos sedutores cedemos, por não termos mais o livre-arbítrio em empreender sua  extirpação:

Todo o mecanismo precisamente concebido para atender aos desejos e necessidades de cada um, é produzido por nós mesmos. E tudo sob a aparência ingênua e confiável da troca de informações com amigos e familiares. Ninguém mais precisa invadir de modo ilegal nossa privacidade: agora nós a disponibilizamos, de graça (e não pela Graça – grifo meu), para que as empresas lucrem. (Jessé Sousa – Sobre nossa relação com as redes sociais)

Chegamos ao ponto de nos afligirmos em meio ao trabalho, lazer ou até em momentos devocionais, quando damos pela falta do smartphone. Na realidade, não podemos negar que as curtidas nos provocam uma ligeira anestesia ou sensação de bem-estar. Enquanto isso, o espinho na carne, responsável pela  dor existencial, sob a forma de um vazio impreenchível, continua inapelavelmente a reverberar as angústias de uma alma profundamente ferida em seu narcisismo.

Partes de mim se rebelam em segredo, e, quando menos espero, elas assumem o controle” (Epístola de Paulo aos Romanos 7: 23 Traduzida em Linguagem Contemporânea por Eugene H. Peterson)



Por Levi B. Santos
Guarabira, 12 de janeiro de 2019

Site da Imagem: desistirnunca.com.br/nao-somos-apenas-o-que-pensamos-ser-freud/

02 janeiro 2019

CÉREBRO LIBERAL E CÉREBRO CONSERVADOR




Ela, a sempre Neurociência, não cessa de escavar os nossos cérebros na tentativa de desvendar o porquê de certas atitudes e comportamentos que adquirimos durante nossa trajetória existencial.

E não é que, recentemente, neurocientistas andam a conjecturar sobre a existência dos genes da ideologia?

O antropólogo e evolucionista americano, Avi Tuschman — autor de "Nossa Natureza Política: A Origem Evolutiva do Que Mais Nos Divide" — disse, em uma entrevista nas páginas amarelas da revista Veja da semana passada, "que cientistas pesquisadores da Universidade College London, escanearam cérebros de estudantes através da ressonância magnética e, pelas imagens obtidas, conseguiram prever quais alunos eram mais conservadores e quais eram mais liberais. Aqueles identificados com os valores de direita possuíam uma área do cérebro, amígdala cerebelosa direita mais desenvolvida[...]. Já aqueles estudantes que se identificavam com valores relacionados à esquerda apresentavam outra região cerebral mais desenvolvida — o córtex cingulado anterior”.

Quanto a esses fenômenos, seria importante esclarecer o que é causa, e o que é consequência, em analogia à velha pergunta: "Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?"

Neurocientistas trabalham com a hipótese de que o alinhamento ideológico(conservador e liberal) seria conseqüência ou decorrência de uma diferença estrutural cerebral existente em cada um dos grupos. E se a maneira de ser do indivíduo adulto forjada lá na sua tenra infância, pesando nisso a sua formação ambiental, paterna, cultural ou mesmo de fundo religioso forem a causa, e não consequência, de tais modificações em determinadas áreas do cérebro? Segundo Freud, a carga afetiva e reações psíquicas defensivas da criança nos seus quatro ou cinco primeiros anos de vida são cruciais para a formação de sua personalidade. Por essa época, tanto a submissão quanto a rebeldia a uma autoridade exercem um fascínio incomum sobre o infante. O rebelde de ontem não seria o rebelde e liberal de hoje? O submisso e medroso de ontem não seria o precavido e conservador dos dias atuais? Ou o que denominamos "ser liberal" e "ser conservador" são fases que se intercalam, ao sabor das circunstâncias, em nosso caminhar existencial? No clássico, “Os Irmãos Karamazov”, Dostoiévski mostra que a contradição faz parte da natureza humana. O filósofo e ensaísta, Luiz Felipe Pondé, fazendo uma abordagem sobre a obra desse autor russo, chegou a afirmar: “Não é possível descrever o ser humano, categorizá-lo, prendê-lo; só se pode ouvi-lo.”
  
“O que é você? Uma conservadora? Uma Liberal?" — perguntou, certa vez, um entrevistador a famosa e polêmica filósofa política de origem judia, Hannah Arendt, naturalmente, querendo saber de que lado ela militava. Não sei. Eu realmente não sei e nunca soube. Você sabe que a esquerda pensa que sou conservadora, e os conservadores às vezes pensam que sou de esquerda” — respondeu, de forma desconcertante e lúcida, a entrevistada.

Freud chegou à Ciência como um rebelde — ainda que fosse, politicamente moderado, liberal, ligeiramente conservador e não tivesse simpatia por bandeiras vermelhas e barricadas” — afirmou Zigmunt Bauman, para realçar a ambivalência reinante em nossas decisões (Modernidade e Ambivalência — Editora Zahar). O homem é ambivalente porque apesar de latejar em si o ideal liberal, não deixa de sofrer influência de seu lado conservador inconsciente e reprimido.  
  
“Um superego amistoso, benevolente e útil, seria a solução ideal, como contraponto ao superego que age de forma tirânica e ameaçadora”— fez ver Freud, com relação ao teimoso liberal e ao passivo, temeroso e subserviente.

Em suma, a psicanálise e a neurociência não são totalmente inconciliáveis, apesar de divergirem em suas abordagens. Não podemos negar que existe certo consenso entre esses dois campos científicos, que exploram os nossos afetos ambivalentes: “Há uma tendência de nos tornamos mais conservadores à medida que envelhecemos” — concluiu, Avi Tuschman, em sua entrevista à revista Veja —, em consonância com a frase atribuída ao grande estadista e médico francês, George Clemeceau, contemporâneo de Émile Zola:

“Um homem que não seja comunista aos 20 anos não tem coração e um homem que permaneça comunista aos 40 não tem cérebro.”


Por Levi B. Santos
Guarabira, 22 de janeiro de 2015

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