26 setembro 2013

O Dilema de Ser Ético




Uma das razões do mal-estar na pós-modernidade, creio eu, reside na tentativa inócua de se ver livre da tradição dos pais, ante o bombardeio intenso de modelos e orientações dirigidas para o gozo e o consumo a qualquer preço. Sobre essa realidade que alicerça a sociedade contemporânea, a psicanalista e escritora, Maria Rita kehl, em seu livro − “Sobre Ética e Psicanálise” (pág. 13) ―, tem algo irrefutável a dizer: “Cada geração se constitui pelo rompimento com o que ainda teria restado de “tradição” para as gerações anteriores. Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso com os antepassados, incapaz de reconhecer o peso do laço com os semelhantes, vivos e mortos na sustentação de sua posição subjetiva.”

Foi a leitura reflexiva que fiz do artigo escrito na revista Veja da semana passada ―   “Devo Educar Meus Filhos Para Serem Éticos?  ― do ensaísta Gustavo Ioschpe, que me levou a relembrar a vida esforçada de minha mãe, que se consumia em passar para os filhos os valores éticos que considerava a coisa mais sagrada da vida.

Senti-me na pele desse escritor, quando no seu instigante e fenomenal artigo, descreveu como era a sua própria infância, e o sofrimento despendido para ser um sujeito ético. Disse ele: “Meu pai era um obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade, honestidade, código de conduta, escala de valores, e outros que eram repetitiva e exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu certo. Quer dizer não sei. No Brasil atual eu me sinto deslocado”.

O articulista da VEJA se reporta a um trecho emblemático de Hannah Arendt, em seu livro “Responsabilidade e Julgamento”, que não poderia deixar de replicá-lo aqui: “Tenho certeza de que os maiores males que conhecemos não se devem àquele que tem de se confrontar-se consigo mesmo de novo, e cuja maldição é não poder esquecer. Os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão”.

O velho dilema interno está também presente numa menção marcante de Kant: “O desprezo por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação era que o homem pode mentir para si mesmo.”

O desfecho desse antológico artigo publicado na revista VEJA, como o brado da letra no nosso Hino Nacional, foi retumbante, e deve ficar muito bem guardado por nós, pais e mães  da atualidade:

“Assim é que, criando filhos brasileiros morando no Brasil, estou às voltas com um deprimente dilema. Acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho para a vida. Essa é a nossa responsabilidade: dar aos nossos filhos os instrumentos para que naveguem, com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E acredito que a ética e a honestidade são valores axiomáticos inquestionáveis. Eis aí o dilema: será que o melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar com atrasos, não insistir para que não colem na escola, não instruir para que devolvam o troco recebido a mais...” [...]

O ceticismo do jornalista chega a um ponto crítico, nesta citação: “Em última análise, decidi dar a meus filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não porque ache que eles serão mais felizes assim ― pelo contrário ―, nem porque acredite que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria conviver comigo mesmo, e com a memória de meu pai, se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que ele me ensinou a desprezar.”

As palavras de Gustavo Ioschpe reverberaram profundamente em minha alma, ao mostrar uma sociedade pós-moderna que de forma banalizada, evidencia um tipo de “brasilidade” totalmente descolada do caráter ético.

Sabemos, no entanto, que o dilema de ser ético em nossa colônia vem de longas datas. Rui Barbosa, em um de seus maiores discursos no senado, já fazia ressoar esse sintoma, que se tornou um paradigma em época de crises de credibilidade nas relações dos homens com seus semelhantes: 
  
“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”


Guarabira , 26 de setembro de 2013


Site da Imagem: lancesnuances.com

23 setembro 2013

Um Presente de Grego




Os gregos foram os articuladores de uma das maiores artimanhas da História ― no que ficou conhecido até hoje como o “Presente de Grego”. Eles puseram ardilosamente um gigante cavalo de madeira colocado bem às portas de Tróia.  Após ficarem deslumbrados com o fantástico presente transportado para dentro de sua cidadela, os troianos foram alegres da vida, dormir sua primeira noite de sonhos maravilhosamente realizados. Mas a alegria durou pouco tempo, pois nessa mesma noite, os soldados gregos que estavam escondidos dentro do imenso cavalo de madeira saíram do seu interior para saquear toda a cidade de Troia.

Essa história tornou-se paradigmática, caindo bem naquilo que se recebe como doação ou oferta e termina em uma bruta dor de cabeça.

A presidenta Dilma, ao retirar de sua vistosa vitrine eleitoreira o programa “Minha Casa Minha Vida” lançado em 2009 ―, empreendeu uma versão do conto do presente grego na área da política e da economia.

O sonho das famílias de pouca renda vem se transformando em uma brutal dor de cabeça. A revista Veja, que saiu às bancas nesta semana, dá conta de que “o índice de inadimplência está em 20%, na população com renda até 1.600 reais (dados da C.E.F). É um número dez vezes maior que a média dos financiamentos imobiliários no Brasil.” Para ler a reportagem completa, Clique Aqui.  

É bom salientar que o atual atraso no pagamento das prestações do “Minha Casa Minha Vida” é dez vezes maior que os créditos podres da grande crise imobiliária ocorrida recentemente nos EUA, que afetou o mundo inteiro. O que se pode concluir é que o nosso governo está, de forma irresponsável, preparando uma bomba relógio para o futuro.

O programa eleitoreiro de Dilma já está sendo apelidado de o “Minha Casa Minha Dívida”. Como sempre acontece nos programas de cunho eleitoral, o governo, sem cerimônia, usa e abusa das transações ilegais, como a de recentemente retirar 10% do FGTS para financiar o presente de grego. No dizer do ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, “O governo compra o eleitor à vista e obriga a sociedade a pagar por ele a prazo”.

Um dia, talvez, o “bom” brasileiro que tem muita fé e diz que Deus é brasileiro, venha colher dinheiro caindo do alto do céu para fazer face as suas futuras dívidas. Quem sabe?   

O imponente e mítico Cavalo de Tróia que os troianos receberam dos gregos e lhes proporcionaram uma noite festivamente comemorada, mas com final desastroso, para não dizer trágico, vem reforçar o meu ceticismo quanto à doações espetaculosas que escondem em seu bojo nebulosas transações.

Não custa nada, relembrar a ano de 2007, em que nos EUA, um milhão de proprietários inadimplentes foram obrigados a devolver suas casas (seus cavalos de Troia) financiadas com o aval do governo americano.

Mas o nosso governo é teimoso: há dois meses lançou o P.P.E.F. (Programa para Piorar o Endividamento das Famílias): uma linha de crédito até 5.000 reais ― “O Minha Casa Melhor” ― Um outro nome para iludir o eleitor.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 23 de setembro de 2013



Site da Imagem: espacodois.blogspot

17 setembro 2013

O Espião e a Espiada




Dilma, hoje (dia 17), bateu o martelo. Fazendo beicinho, disse furiosa: não vou, não vou, não vou aos EUA! O Obama me faltou com o respeito, me espiou e nem me deu satisfação.

A ala do abafa entrou rápido em cena para pedir por tudo no mundo que ela retrocedesse de tal atitude (a de não viajar aos EUA no próximo dia 23, para um colóquio previamente marcado com o maioral da Casa Branca).

Ninguém sabe o que Obama falou ao seu ouvido por telefone ontem à noite. Só se sabe é que depois de vinte minutos de conversa, a presidenta decidiu de forma ríspida suspender a visita que faria ao escorregadio presidente da Disneylândia em crise.

As más línguas dizem que Obama ficou irado com o programa de importação de 4.000 médicos cubanos para o Brasil, e com o pito que levou de Dilma recentemente na Rússia. Com certeza o Obama não está gostando nadinha dessa salada  petista tão em voga nas mesas de bate-papos ― “Brasil-Venezuela-Bolívia-Cuba-Rússia” ―, que está botando o seu MacDonald para trás.

Dilma, recentemente, teve um entrevero ríspido com Obama, na Rússia de Putin. Alguns dizem que ela ficou muito brava com Obama e sua espionagem barata. “E, como vingança resolveu que vai importar uma leva de espiões de Cuba para espionarem o Governo dos EUA”. Bem feito presidenta! (vide esse link)

“A visita de Dilma seria espetaculosa, com direito a baile de gala na Casa Branca” ― escreveu Josias de Souza em seu blog. Parece que o desastrado Obama foi quem perdeu (rsrs).

Tem mais: Dilma está tremendamente irritada com o fato de o Obama está espionando a Petrobrás. Será que ele está tentando copiar a fórmula petista de congelar o preço dos combustíveis sem causar mal estar nos acionistas do Pré-sal?

Os brasileiros, as brasileiras e os fabricantes de automóveis agradecem a presidenta por segurar artificialmente a inflação.

Não é bacana saber que a gasolina do Brasil está 30% mais barata que a dos EUA? Obama, por certo, está com inveja. (rsrs)

O espião americano deve está querendo que a presidenta conte como ocorreu o milagre da transformação de uma gasolina mais cara nas refinarias em uma mais barata nos postos de combustíveis. Será que acertei na mosca?

Dilma agiu bem ao cancelar sua viagem aos EUA. Para o bem de todos e felicidade geral da nação ― Fique Dilma!

Nós, os espiados, temos o que o espião não tem.


Um Lembrete:

Caso a nossa presidenta, de última hora, resolva viajar, não deixe de recitar em alto e bom som, diante de todos os espiões da Casa Branca e bem ao pé do ouvido de Obama, os versos do nosso grande poeta Olavo Bilac, na “Canção do Exílio”:

 “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o Sabiá/As aves que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 17 de setembro de 2013



Site da Imagem: Correiobrasiliense

12 setembro 2013

O Voo Incerto da Coruja



Na mitologia grega, Atena, deusa da Guerra e da Sabedoria, em seu caminhar, nunca se desgrudava de uma coruja pousada em seus ombros.

Essa ave tem a capacidade de ver na escuridão o que os outros seres não vêem. O dom inato de profunda conhecedora daquilo que estava oculto, fez com que esse pássaro se tornasse, na cultura ocidental, o símbolo do conhecimento. O instinto nato de, com olhos arregalados, permanecer a noite inteira vigilante e atenta, fez dela o símbolo maior para os gregos que consideravam o período noturno propício ao filosofar e ao exercício do intelecto.

O século das luzes, tendo a razão como sua maior lâmpada, veio com uma tarefa árdua e quase impossível: a de iluminar as densas trevas da irracionalidade, ou do oculto que existia em cada indivíduo. O ideal iluminista, na época, foi bem representado no quadro de Goya, onde se vê, em destaque, monstros povoando o sonho da razão (vide foto do topo). A pintura do artista reflete um ser frágil, mergulhado em um mundo tenebrosamente onírico, cercado por monstros da irracionalidade a espantar a razão para bem longe.

A certeza, a coerência e a estabilidade do idealismo iluminista deram lugar na pós-modernidade, ao seu paradoxo ― ansiedade da incerteza, a insegurança e o mal estar de um mundo em desordem. Na pós-modernidade a supremacia da razão parece sucumbir ante à re-sacralização do mundo.

 Sérgio Paulo Rouanet, considerado por muitos, defensor da razão iluminista, aponta uma terceira via para amenizar o mal estar da pós-modernidade entre as diversas culturas; uma via que passa pela manutenção e observância de um núcleo mínimo de princípios universais: “Se você tem um mundo dominado por particularismos selvagens sem regras universais que permitam a coexistência não-antagônica desses particularismos, você vai ter um mundo de todos contra todos, uma guerra de culturas.” (Mal−Estar na Modernidade – Editora Companhia das Letras)

O fundador da psicanálise, foi um iluminista. No projeto de Freud, a psicanálise através da deusa razão imunizaria o sujeito contra todos os messianismos. Todavia, em contraste, ele sabia que a natureza paradoxal/pulsional do homem era ineducável. Lá no fundo ele pressentia que os ideais universalistas podiam ser vencidos por paixões nacionais, raciais e religiosas.

“A Coruja e o Sambódromo” ― de S. P. Rouanet (filósofo e ensaísta membro da Academia de Letras) é uma humorada e significativa fábula que tem no centro de sua trama uma coruja (a deusa razão) em um voo incerto.

Trago, com os devidos créditos ao autor, o vôo solitário dessa ave totêmica pelo mundo afora. O ponto final de sua angustiada viagem é o sambódromo, onde se queda profundamente deprimida com o que viu e ouviu:


                  “A Coruja e o Sambódromo(texto condensado)
 (Mal-Estar na ModernidadeS. P. Rouanet)

A heroína desse ensaio é uma Coruja.  Ela já foi uma voz arrogante, pois representava a razão universal, tanto a teórica, capaz de compreender o mundo, como a razão prática, capaz de legislar para os homens. Mas hoje, anda triste e cabisbaixa,  tiritando de frio e com medo da sombra. Ela lembra com orgulho do seu período de aproximação quando foi canonizada na Notre Dame, transformando-se na deusa da razão [...].

Mas tudo isso é passado. A coruja resolve investigar o presente: quem sabe se no mundo contemporâneo há ainda lugar para ela?

 A coruja resolve viajar [...]. [...] Ela está sendo acusada de ser um pássaro etnocêntrico, que quer transferir para o mundo inteiro hábitos que só valem nos bosques europeus, é um pássaro totalitário, que quer impor seus pios crepusculares a todo o resto da floresta que vêm de centenas de passarinhos diversos, com suas cordas vocais próprias, com sua plumagem inconfundível, e com seus ritos amorosos característicos.

 Ela está interessada em visitar algumas regiões conflagradas do planeta.  Agora que o fim da União Soviética eliminou o risco de uma Terceira Guerra Mundial, ela percebeu perplexa, que a Primeira Guerra Mundial está acontecendo de novo na Iugoslávia. Que a guerra de 1914-18 está incendiando de novo os Bálcãs [...]. Escutando tantas alusões à Eslovênia, à Croácia e a Dalmácia, ela não pode acreditar na dissolução do império austro-húngaro [...]. Mas nada disso a impediu de perceber o essencial: a matança indiscriminada de homens, mulheres e crianças em nome de ignóbeis particularismos nacionais, étnicos e religiosos.

Em Berlim a coruja observa, com nojo, cenas de violência semelhantes as que ocorreram na véspera da  Segunda Guerra. As vítimas, agora,  são turcos, negros e vietnamitas.[...].

Contendo a custo uma golfada de vômito, a coruja vai visitar o outro campo ― o dos discriminados. Ali decerto ela ouvirá opiniões mais racionais. Através do sótão, observa uma festa de estudantes estrangeiros. Há muito vinho e o ambiente é caloroso e fraterno.. Estão presentes um paquistanês, um nigeriano e um brasileiro. É um grupo heterogêneo, mas unificado por uma emoção forte ― o ódio ao europeu ― por uma idéia central ― a especificidade do Terceiro Mundo ―, e por uma ambição comum ―manter a identidade das respectivas culturas. [...]

Desgostosa a coruja voa para o Oriente, recordando-se de que foram os muçulmanos que divulgaram no mundo civilizado a ciência grega, contribuindo para uma visão secular do mundo. Ela pára no Irã. Mas não consegue falar com os poetas Fardusi e Hafiz de Chiraz, como desejava. Os interlocutores estão todos muito ocupados, dilapidando uma adúltera. [...]. [...] A caminho, passa por uma multidão vociferante diante da embaixada da índia. O que tinha se passado? Um dos manifestantes explica: era um protesto contra os fanáticos hinduístas que em nome de Brahma tnham destruído uma mesquita perto de Calcutá. A coruja chega ao seu destino mas não encontra o embaixador. Ele tinha ido a um serviço religioso. Certamente a um mistério de Elêusis, sugere a coruja, esperançosa. Nada disso,  responde o mordomo, foi ouvir o pregador evangélico Billy Graham. Abre-se a porta da embaixada do Brasil, ao lado, e sai uma robusta senhora, com uma faca afiada. Felizmente, a coruja percebe a tempo que a mulher estava mal-intencionada: na ausência de uma galinha preta, uma gorda coruja poderia ser agradável aos exus.

Ainda com o coração aos pinotes, a coruja, atravessa o Atlântico. Ela pousa numa universidade americana. Está se realizando uma assembléia universitária, o  que interessa imediatamente a coruja, animal político por excelência. Discute-se a questão dos direitos humanos no campus. [...]. [...] Um militante gay diz que as liberdades de 1789 se dirigiam apenas aos heterossexuais, enquanto um ativista negro afirma que a Declaração dos Direitos Humanos só pensara na emancipação dos europeus. O mal foi que a revolução visara o homem em geral, e portanto, como correlato, o indivíduo abstrato, em  vez de visar particularidades concretas, como os negros, as mulheres, os índios.[...]. [...] A coruja tenta defender-se, dizendo, por exemplo,  que sua Atenas estava muito longe de discriminar os homossexuais, mas é severamente reprimida por usar essa palavra, em vez de “pessoas de orientação diferente dos heterossexuais"[...]. [...] Ela ainda quer argumentar,  mas desanima quando a “chairperson”  a acusa de ter uma posição individualista, falando em seu próprio nome, em vez de falar como porta-voz credenciada da comunidade zoológica à qual pertence, defendendo os direitos humanos em vez de defender a identidade cultural das corujas, e perdendo, em conseqüência, uma excelente oportunidade de propor um termo politicamente correto para designar a coruja ― por exemplo, “animal com horários notívagos diferentes dos demais dos horários matinais dos demais pássaros”.

A coruja faz nova tentativa e pousa no México, onde um professor como nome de herói de Tolstoi tenta há vários anos desescolarizar a sociedade.  Há dois seminários em salas contíguas. Num deles, o tema é “A Ilusão da Ciência”. Um indiano de Goa diz que a ciência é uma invenção eurocêntrica destinada a subjugar os povos do Terceiro Mundo. Um discípulo de Foucault diz que a ciência é uma prática de poder, destinada a produzir a docilidade social.[...]. [...] Um teólogo de Tubingen declara que a ciência tinha privado o homem de Deus, opinião partilhada por um antropólogo que de tanto estudar uma comunidade religiosa eclética se vestia com um camisolão branco e se julgava a reencarnação de São João Batista.

Aturdida a coruja passa para a sala ao lado. Outro grupo estuda a questão da moralidade.[...]. Um missionário presbiteriano  que dedicara os últimos vinte anos a evangelizar os pigmeus informou que essa interessante cultura praticava o Decálogo às avessas, com grande austeridade:  por exemplo, era eticamente obrigatório desejar a mulher do próximo e insultar pai e mãe, o que provocava enormes sofrimentos, pois esse povo era naturalmente casto e dotado de grande piedade filial.

Mas o ambiente vai ficando irrespirável. Um médico homeopata que tinha se convertido ao Xamanismo enfumaça a sala com fumigações pestilenciais. [...]. [...] As agressões se generalizam, e o seminário termina ingloriamente, com a fuga desabalada dos mais tímidos pelas alamedas do parque. A própria coruja deixa algumas penas na refrega. [...]

Ela chega ao Rio. Ei-la no sambódromo. Há um grande desfile, um carro alegórico cheio de bananas e abacaxis, mães de santo girando com suas saias rodadas. Macunaíma fazendo gestos obscenos para as arquibancadas e um samba-enredo composto pelo modesto autor deste ensaio. O tema é  a emergência entre nós de um novo tipo de humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo em tudo diferente da humanidade gringa; o florescimento, em nosso meio,  de um saber próprio, de uma ciência ajustada às particularidades nacionais; e o surgimento de uma nova moral, que convenha ao nosso clima, à nossa formação multirracial e às nossas raízes históricas.

É demais para a coruja. Ela diz coisas sentenciosas que ninguém quer ouvir e voa, deprimida, em direção a um pouso incerto.

P.S.: Devido não só às discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente não são tão simples assim.” (Freud, em “Mal-Estar na Civilização” ― Editora Imago)     



Guarabira, 12 de setembro de 2013