29 maio 2015

Um Passado Escondido no Presente



Em todos os níveis de relações do nosso dia a dia tendemos a repetir velhas situações, talvez esquecidas na poeira do tempo. Ou seja, os desejos que uma vez nos alimentaram na tenra infância continuam, hoje, em nossos mais obscuros recônditos psíquicos a emitir suas ressonâncias. Por um curtíssimo espaço de tempo chegamos a nos identificar com um efêmero objeto, mas logo logo esse desejo transferencial tende a se apegar a novos objetos, de uma maneira sucessiva. “A repetição de um ato que sem querer encetamos é uma transferência de um passado esquecido” diria Freud.

Enquanto vivemos e desejamos não fazemos outra coisa senão trocar uma presa por outra, senão mudar de influência. Não renunciamos a nada, só fazemos trocar umas coisas por outras. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto. Uma vez adulto, o ser humano, no lugar de brincar, vai recorrer à fantasia.” disse o fundador da psicanálise, certa vez, discorrendo sobre o “Desejo Transferencial” no ato analítico.

Para evidenciar tal fato, o velho barbudo gostava sempre de se reportar a um conto dos irmãos Grimm, intitulado “João Sortudo”. Reproduzo aqui uma sinopse dessa historieta infantil, da qual o cientista, na sua incursão pelo mundo analítico da psique, retirou significativas metáforas:

João sortudo estava sempre trocando seu objeto de desejo por um novo, mais vantajoso. Como a moeda de ouro era muito pesada de carregar, foi convencido a trocá-la por um cavalo que o conduziria sem o esforço de caminhar a pé. Em seguida trocou o cavalo, que o deixava com o traseiro dolorido, por uma vaca aparentemente dócil. Depois agradou-se de um porco dando em troca sua vaca. Mais na frente cedeu o porco por um majestoso ganso, para finalmente trocá-lo por duas pedras de amolar que caíram por acaso dentro de um poço. João, agora, livre das pesadas pedras recomeçou seu caminho à casa da mãe.

Esse conto, na verdade, quer mostrar que o homem na sua luta inglória para aliviar seu sofrimento sucumbe sempre ao poder do objeto. O curioso da história de João é que após várias tentativas na esperança de encontrar algo melhor para satisfazer seus desejos, ele se vê retornando ao oco da primeira forma que o moldou. Não foi à toa que o pai da psicanálise chegou a constatação de que “em um número grande de nossos relacionamentos, por mais superficiais que sejam, têm em seu bojo, a repetição de algum aspecto de nossa vida primitiva. Isso ocorre no âmbito das nossas amizades, das relações profissionais, dos casos amorosos e particularmente dos nossos relacionamentos com figuras de autoridade”.(Transferência na Vida Cotidiana Michael Kahn).

Em cada troca que fazia, João Sortudo desejava alienar-se ao objeto de seus primeiros prazeres, a exemplo das sinfonias e sonatas clássicas, cujos movimentos sonoros que se desenvolvem harmonicamente no decorrer do concerto sempre acabam voltando ao tema melódico inicial. O êxtase final nada mais é que uma variação do tema executado no início da sinfonia. João Sortudo, escravo de um desejo impossível de se realizar, retorna não ao colo idílico da mãe, mas a casa vazia dos primeiros aconchegos e consolos maternos. Dentro da “casa vazia de mãe”, a alma vazia de João sonha com a completude vivenciada nos primórdios, quando se via como uma extensão apendicular daquela que lhe trouxe ao mundo.

Navegando em sentido contrário, facilmente compreenderemos que traços do nosso caráter foram impressos em nossa remota infância. O Desejo de recuperar a completude perdida ainda se esconde sob as camadas estratificadas da psique. Aqui ou acolá, extratos de nosso passado se fazem aflorar em nossas atitudes e racionalizações. Certo é que não existe regressão, mas sim repetição ou transferência de anseios e emoções profundamente entranhadas no inconsciente. Quantas vezes em nosso agir e reagir não somos apanhados de calças curtas? Quantas vezes escolhemos sem saber que por trás de nossa escolha algo nos influencia a agir daquela forma? Talvez isso queira demonstrar que somos seres condicionados pela aproximação de um inusitado passado composto de lembranças fragmentárias que teimam em se intrometer em nosso presente pelas brechas ou rachaduras de um frágil muro protetor de nosso opaco modus vivendi.

Como na dolente canção “Xote da Navegação” de Chico Buarque e Dominguinhos, reproduzida abaixo, às vezes eu me pego em sonho, paramentado de capataz, em um velho barco a navegar para trás.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 29 de maio de 2015

23 maio 2015

UM MOSQUITO BEM BRASILEIRO




Um mosquito, originário do Egito (África) tem, desde os primórdios, feito do Brasil a sua morada predileta. Muito bem conhecido dos habitantes do Brasil Colonial e Republicano, o “Aedes Aegypti” adaptou-se definitivamente ao nosso clima e nosso sangue. Segundo cientistas do Instituto Oswaldo Cruz – Rio de Janeiro, esse mosquitinho de pernas listradas aportou em nossas terras no século XVII, trazido por navegadores e seus navios negreiros. Na sua primeira versão, em 1906, o pequenino inseto foi o transmissor da febre amarela, que tanta celeuma causou na capital da recente república.

O sanitarista Oswaldo Cruz, não conseguiu banir o mosquito das terras de Dom João VI, mas teve o grande mérito de descobrir e administrar nos colonos a vacina contra a febre que grassava de forma epidêmica fazendo muitas vítimas. Enfim, esse incansável médico bacteriologista, enfrentou e venceu a resistência da população que porfiava contra a sua fatal vacina. Querendo ou não querendo foram todos imunizados, inclusive, com o uso da Força Policial. Ficamos, dessa forma, livre de Febre Amarela.

Até 1980 não se conhecia casos de Dengue no Brasil, tanto é, que nas Faculdades de Medicina essa doença não fazia parte da grade curricular de estudos por parte de professores e estudantes.
A OMS em 1958 chegou a afirmar que o Brasil estava livre do Aedes Aegypti. Em um país com dimensão continental como o nosso, não seria muita ousadia ou temeridade afirmar que o fatídico mosquito teria sido exterminado por completo?

Para surpresa nossa, em 1981, foi confirmado a presença de uma muriçoca de pernas listadas no norte do país, precisamente, em Roraima. Lá estava o mosquitinho tão conhecido e estudado por Oswaldo Cruz hibernando na maior floresta do mundo, a amazônica. E aí, foi fácil descobrir que a febre epidêmica que fazia muitas vítimas, a partir do Pará, estava sendo transmitida pelo inarredável pernilongo de bandeira “verde-amarelo-anil”, transmissor da extinta Febre Amarela.

Quem diria que, hoje, apesar dos vastos recursos tecnológicos e científicos existentes, esse mosquitinho de pernas alvi-negras (corinthiano ?, santista?) iria atormentar os paulistanos? Plagiando a letra da canção “Teresinha” de Chico Buarque, o Aedes chegou sorrateiro e se instalou feito um posseiro dentro dos lares . Após infectar todo o norte e nordeste, o Aedes se enfastiou da região árida e quente, mudando a sua Central de atuação para a “cidade-coração” do país São Paulo (quarta maior metrópole do mundo). Por enquanto, o mosquito bem abrasileirado vai repassando para o homem quatro tipos de Dengue, um deles fatal: o hemorrágico. Como na antológica canção paulista, “SAMPA”, de Caetano Veloso, o mosquito vive cruzando diariamente a Ypiranga e a avenida São João com a maior naturalidade. Plagiando o começo de umas das estrofes de “Sampa”, o sem-vergonha do mosquito que se naturou brasileiro, ataca, sem dó e sem piedade, o povo oprimido nas filas, vilas e favelas.

O rei Salomão, que a Bíblia considera o ícone da sabedoria, já dizia: “nada há nada de novo debaixo do sol”. O mosquitinho que resolveu fazer seu ninho no Brasil, obrigando Oswaldo Cruz a pedir auxílio das forças policiais para combater a Febre Amarela nos idos de 1907 é o mesmo que, hoje, tem as Forças do Exército no seu encalço. Há cerca de quinze dias, a Secretaria Municipal de São Paulo reconheceu que vive uma epidemia de Dengue, pedindo urgentemente ajuda das Forças Armadas Federais.

Pelos parâmetros da OMS o índice de 300 casos por 100.000 habitantes configura uma epidemia. A taxa de incidência de Dengue na capital Paulista, chegou neste início de maio a 340 casos por 100.000 habitantes.

Para embananar mais a cabeça dos infectologistas, o Aedes acaba de fazer uma parceria com o vírus, Chikungunya, originário de Angola e Tanzânia. Por enquanto esse tipo de infecção viral, com sintomas parecidos com os da Dengue, porém menos intensos, grassa no nordeste do país.

O arrocho fiscal recentemente promovido pelo governo federal, com cortes de verbas nos já combalidos serviços de saúde, com certeza, deixará o “mosquito bem brasileiro” leve e solto. Sem ser incomodado, em pouco tempo, poderá reinar absoluto do Oiapoque ao Chuí.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 23 de maio de 2015

Link da Imagem: Blognapilha.wordpress,com

11 maio 2015

No Tempo das Histórias de Trancoso





Registram os livros de História que o português, Gonçalo Fernandes Trancoso, com seu livro - “Contos e Histórias de Proveito e Exemplo” - escrito no século XVI, foi quem entre nós, pais e avós da geração antiga, inspirou as mirabolantes histórias sobrenaturais e aterrorizantes contadas nas calçadas das casas após o jantar, quando nem rede elétrica existia.

Os adultos e crianças nas noites enluaradas, sobre tamboretes rústicos de madeira comprados no meio da feira, participavam como atores/autores e ouvintes dos sensacionais contos. O progresso tecnológico responsável pelo aparecimento das novelas transmitidas pelo rádio, foi, aos poucos, afugentando os contadores das histórias de trancoso que antes se esparramavam pelo chão de tijolos a frente de suas residências. Engraçado é que naquela época ninguém sabia, nem se perguntava sobre a origem da palavra “trancoso”. Hoje, a televisão e a internet tomaram o espaço reservado ao criativo ato de contar histórias. As calçadas das casas, nas noites estreladas, agora, encontram-se praticamente vazias, quando muito, se veem dois ou três sentados em confortáveis cadeiras a dedilhar seu smartfone que, como dizem os cronistas atuais, tem o condão de aproximar os distantes e afastar os que estão perto.

Lembro de que naquele tempo, antes das dez horas da noite, já nos recolhíamos aos nossos leitos para esperar o sono chegar, ocasião em que o farto material das lendas e contos de arrepiar que absorvidos ouvíamos apresentava-se num louco intricado em nossos sonhos e pesadelos noturnos. Sonhávamos absurdidades, em tudo, parecidas com os contos de trancoso escutados no nosso pequeno teatro ao ar livre.

Tinha lá os meus dez ou doze anos de idade, quando formalizei a minha primeira biblioteca. Em casa, secretamente, em um canto fundo de um velho baú repleto de cortinados e toalhas cheirando a mofo, guardava com esmero muitos contos de trancoso escritos por Mário de Moraes na famosa revista da época – “O Cruzeiro”. Das edições velhas dessa famosa revista semanal, que eram usadas como papel de embrulho nas mercearias e bancos de feira, eu, disfarçadamente, arrancava a página de “A História Que Não Foi Contada”, de Mário de Moraes, para aumentar o meu acervo de contos fantásticos. O meu repertório de histórias de trancoso tinha sempre muita coisa tirada da pena de Mário de Moraes. Algumas histórias que eu recontava, por temor ou reverência, esforçava-me para não sair do script adotado pelo autor. Mas como quem conta um conto aumenta sempre um ponto, lá estava eu adicionando ou imiscuindo minhas fantasias, numa tentativa de tornar a estória mais cruel e risível para uma plateia sedenta de assombrações e “coisas do além”.

Tenham cuidado com a tal da reforma, pois na ânsia de jogar fora o que se considera imprestável, alguma coisa de importante pode parar no lixo. Foi o que aconteceu com uma reforma que inventaram de fazer em minha casa: visitando o velho baú de panos que cobriam os meus contos de trancoso, dei pela falta do acervo tão cuidadosamente escondido. Com certeza, o(a) reformador(a) dos cômodos do meu lar não deu o mínimo valor às tiras de papel que continham os maravilhosos contos de Mário de Moraes, destinando-as para outros inglórios fins. Minha já grande coleção de trancoso, com certeza, foi parar em algum
lugar menos nobre. É que naquela época, o papel higiênico era artigo de luxo. Nas cidades interioranas era comum o uso de pedaços de papel de revistas e jornais para a precária higiene pós-evacuação intestinal. O certo é que meu árduo trabalho de garimpagem nas revistas velhas já lidas e relidas de “O Cruzeiro” foi por água abaixo. Fiquei por um tempão fulo de raiva pela perda literária irreparável.

Quem sabe se ainda não recuperarei alguns contos de trancoso que foram raptados do meu esconderijo literário no fundo do velho baú de panos de minha mãe?

Uma alvissareira notícia: recentemente, vagando pela internet, descobri que Mário de Moraes (1925 2010) lançou seus melhores contos de trancoso pela Record, em 1968 com o mesmo título da página que assinava em “O CruzeiroA Reportagem Que não Foi Escrita”. Além deste livro (que se encontra esgotado nos sebos e livrarias do país) o exímio autor, que com seus causos estrambóticos sabia, como ninguém, deixar todos de cabelos em pé, publicou outras obras memoráveis, como: “Amor no Cemitério e Outras Histórias de Assombrações”(1968); “O mundo me Ensinou a Pecar” (1976); “História de Um Cachorro Contada por Ele Mesmo” (1977).

Tenho saudades daquelas nobres noites em que as histórias de trancoso reinavam de forma absoluta nas casas simples de gente humilde com tamboretes nas calçadas, como Chico Buarque, de forma poética, tão bem definiu em sua antológica canção.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 11 de maio de 2015