26 maio 2008

PESCARIA DE UM SÓ LANCE



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.........Céu sem nuvens, e o sol das nove horas

.........Prateava o mar, as ondas e a areia.

.........Uma rede preta de arrasto, das maiores que havia,

.........Estrearia em Camboínha,

.........Praia ainda deserta.

.........Sentado na ribanceira, um velho ao longe observa

.........Um corcunda e uma gestante aprontando-se para o lance.

.........Estiraram a longa rede, a maré estava baixa.

.........Ele na parte profunda, e ela na mais rasante.

.........Contra o sentido das ondas,

.........Caminharam por um tempo.

.........Uma alegria indizível as suas faces estampavam.

.........Puxaram a pesada rede, de volta à beira da praia,

.........Encantaram-se com as agulhas,

.........Debatendo-se entre as malhas,

.........Que na incidência do sol, pareciam ser metálicas.

.........A abençoada rede, fizera ali um milagre,

.........Retirando do oceano vinte e sete belos peixes.

.........Mais quatro lances tentaram,

.........Nenhum peixinho arrastaram.

.........É que a bendita pescaria, estava escrito nesse dia:

.........De um lance apenas seria.


............Recordação poética, da primeira pescaria do casal Levi e Luza em Camboinha - (Verão de 1988)

09 maio 2008

O HINO CENSURADO



Na maioria das noites, na época dos meus verdes anos, freqüentava juntamente com os meus pais, a pequena igreja Assembléia de Deus em Alagoa Grande, situada no final da Rua São José ─, hoje no local funciona uma outra denominação protestante: a Igreja Batista.

O ritual dos cultos era quase o mesmo dos dias de hoje. Iniciava-se sempre com uma oração com todos de pé. Em seguida o pastor deixava a cargo dos membros, os pedidos dos hinos da “Harpa Cristã” a serem cantados. O mais rápido no pedido era atendido, e toda igreja era obrigada a cantar o hino correspondente ao número de ordem solicitado em voz alta. Cantava-se cerca de três a quatro hinos, antes da leitura bíblica devocional. Em seguida dois ou três pregadores usavam da palavra. A cada pregação seguia-se um hino, quase sempre da Harpa Cristã.

Havia um hino emblemático era o de número 17 (Pensando em Jesus), que quando cantado, levava os rapazes da igreja a esboçarem olhares capciosos uns para os outros. Os mais idosos cantavam esse hino com toda a pujança e inocência, sem reparar que em uma de suas estrofes havia duas palavras de duplo sentido: uma referia-se a um pequeno pássaro comum em nosso meio, denominado de “rola” (o mesmo que rolinha), que os caçadores ainda hoje apreciam a sua caça, devido sua saborosa carne. Mas, existia também um outro significado para a palavra “rola” ─ estava lá no dicionário escolar: “rola” era o apelido do órgão sexual masculino. A outra palavra que se seguia a essa era: “langor” que no dicionário significava: “choroso ou voluptuoso”. Lógico, que a maioria da moçada, no despertar da sexualidade, associava esse termo a algo sensual. Com o passar dos anos, eu notei que a terceira estrofe do hino que continha as mencionadas palavras, era cantada de uma forma dissimuladamente mais baixa que as demais estrofes. De modo que o hino, lá fora, já provocava risos entre os mais afoitos. Por pura brincadeira de alguns meninos (entre eles estava eu), esse hino era sempre pedido nos cultos, de modo que alguns dos irmãos mais velhos, já se sentiam constrangidos em cantá-lo.

A terceira e curiosa estrofe do hino 17 da Harpa Cristã era originalmente assim:


............“Do mar o bramido, da brisa o frescor;

..............Da 'rola' o carpido de doce 'langor';

..............Me falam sentidos, acordes dos céus,

..............Me trazem aos ouvidos os hinos de Deus".


Em alguns cultos de igreja cheia, eu me disfarçava escondendo-me entre os meus amigos e gritava: “O hino dezessete!...”

Por infelicidade, em um desses cultos, minha mãe me pegou em flagrante delito. Quando cheguei a minha casa, além de levar umas boas “puxadas” de orelhas, fui ameaçado de um castigo maior ─ que eu não quero aqui revelar ─, se eu tivesse o atrevimento de pedir para ser cantado esse hino novamente na igreja.

Eu, já no meu quarto, deitado, após ter apanhado de minha mãe uma sonora surra, imaginava com os meus botões: ora, o autor desse hino foi movido por boas intenções, ao colocar aquele representativo pássaro no seu poema musicado. Essa ave tinha um cantar choroso e saudoso, e sua carne era muito apreciada, principalmente na região nordeste. Penso que não passou pela cabeça do autor, a associação nominal do passarinho ao que os jovens do meu tempo tencionavam. O autor, quem sabe, deve ter esquecido de procurar no dicionário os outros significados para as emblemáticas palavras: “ROLA E LANGOR”. Porém, de uma coisa eu estou certo: o hino estava ali escrito e não poderia ser mudado. Seria um pecado imperdoável, se modificar ao bel prazer, um hino inspirado por Deus, ainda mais se sabendo que o mesmo fazia parte do rol dos hinos irrepreensíveis, como eram considerados os da “Harpa Cristã”.

Para minha surpresa, hoje, folheando um exemplar da “Harpa Cristã da atualidade”, deparei-me com o hino vergonhosamente censurado. Mancharam o nome do criador do melódico hino, ao retirarem sem o seu consentimento àquelas palavras carregadas de um sentido profundamente metafórico. Desonraram a memória do autor, que se pudesse, a essas alturas, teria se revirado de indignação no túmulo. Não sei se foi o espírito da ditadura militar dos anos de chumbo, ou se foi o preconceito revestido de uma forte dose de audácia que desfiguraram o hino de número 17. Não sabiam os censores, que ao fazer esses lamentáveis cortes de forma ignominiosa, simplesmente estavam confirmando os seus próprios recalques. Retirando a palavra “rola” do hinário, eles imaginavam que estavam depurando o hino, de algo que em suas concepções, poderia soar como coisa imunda.

Num flagrante desrespeito aos direitos autorais da obra, no lugar de “rola”, hoje está escrito: “ave”. Em lugar de “langor” puseram “amor”.

Não seríamos muito mais verdadeiros, se pudéssemos dar um basta na hipocrisia que alimenta os nossos enraizados preconceitos? Nunca é demais lembrar, o que faziam os responsáveis pela “santa inquisição” nos primórdios da igreja: perseguiam, prendiam, queimavam e matavam os seus opositores em nome de um “suposto” Deus. A inquisição de hoje, com ares de uma quase imperceptível sutileza, trabalha minando paulatinamente as consciências com sua intransigente e dogmática doutrina: através de manipulações, de retirada ou modificação de trechos e palavras do Livro Sagrado e dos Hinários Cristãos, sempre no propósito espúrio de esconder verdades dolorosas. Verdades essas, que em sua essência, vão de encontro às representações utópicas que os inquisidores exibem às multidões.

Tenho um velho volume da “Harpa Cristã” original (edição de 1967). Nele, continuo ainda a cantar o hino 17 da forma como o autor escreveu, e como os irmãos caçadores e apreciadores das rolinhas assadas e apetitosas daquele saudoso tempo, cantavam com água na boca. Menos a minha desconfiada mãe.




Crônica por Levi B. Santos

Guarabira, 09 de Maio de 2008

06 maio 2008

DA "BUCHEIRA" AO PAPEL HIGIÊNICO




Não me lembro bem da festiva chegada do “papel higiênico” entre nós, provavelmente, deve ter sido lá pelos idos de 1960, quando tinha 14 anos de idade. Porém, de uma coisa eu me recordo com cores muito vivas: da “privada”, também denominada de “aparelho” ou de “casinha”, quase sempre localizada no fundo do quintal. Hoje, temos em seu lugar os modernos e aconchegantes sanitários. Naquele tempo, era realmente impensável ter um recanto para deposições fisiológicas no interior da própria residência.

Passemos agora a uma sucinta história dos elementos que antigamente usávamos na higiene pós-evacuações. Aliás, o termo “higiene”, aqui não cai bem, porque o que fazíamos era apenas uma mal feita limpeza anal, com pedaços recortados de jornais velhos ou com partes de papeis ásperos e duros, destinados ao embrulho das compras em mercearias.

Antes da chegada do papel de jornal, a limpeza era realizada com “bucheira seca” ─ espécie de fruto oblongo, da família das “Cucurbitáceas” (o nome popular do ânus está na primeira sílaba desta palavra). No seu interior continha um tecido fibroso muito resistente, que além de servir para a higiene anal, tinha também a função de limpar panelas, algo parecido com as buchas de pia de cozinha que se vendem hoje em supermercados. Em relação aos papéis que usávamos, as "bucheiras" tinham lá as suas vantagens: arrastavam o grosso das fezes em sua rede intricada de fibras com melhor precisão que o papel, porém, para as fezes líquidas e pastosas levavam desvantagem por escorregarem muito no contato com a pele; afinal, eram ideais para as fezes mais sólidas.

Conforme a ocasião, tínhamos duas opções dependuradas em dois arames presos por pregos na parede de nossas latrinas: um arame para pendurar as bucheiras, e outro para pendurar os pedaços de papéis velhos.

Como gostava muito de ler, descobri que os fragmentos de papéis lá no “aparelho” de minha casa eram quase sempre restos do “Diário de Pernambuco” e do “Jornal do Comércio” do Recife. Após o tradicional “esvaziamento”, e antes de passar a folha de jornal no “escape” dos produtos expelidos pelos intestinos, eu me deliciava com as notícias esportivas que ali estavam escritas. Foi nesse recanto de descarga de dejetos, entre odores nauseabundos, porém entremeados por segundos de um paradoxal prazer, que eu aprendi a torcer pelo meu time: “o Leão da Ilha” ─ o Sport Club do Recife. Ali eu passava alguns minutos colando e lendo partes das páginas esportivas desses periódicos com inusitada avidez. Arrisco até a dizer, que talvez a minha obsessão pela leitura tenha nascido naquele lugar tão menosprezado da casa.

Quando chegava a metade do ano, época das festas juninas, da canjica e da pamonha feitas com o farto milho verde, aparecia um novo instrumento para limpeza anal: os “sabugos” ─ talos esponjosos das espigas de milho raladas, eram expostos ao sol no telhado para secar. Depois eram usadas por aqueles que tinham a pele anal mais resistente. Esses sabugos eram cuidadosamente passados entre as nádegas com movimentos de ida e vinda, à semelhança dos movimentos que os violinistas executam com o arco de fibras sobre as cordas da “rabeca” (nome antigo do violino atual).

No meu tempo de menino, a maioria da população usava mesmo era o papel de jornais velhos trazidos de Recife. O papel não era macio e cheiroso, nem tinha desenhos em alto relevo, como os de hoje. Amassávamos bem o pedaço liso do jornal, para que o mesmo ficasse cheio de vincos, a fim de que desse modo pudesse arrastar consigo uma maior quantidade de matéria fecal. Às vezes, mesmo dobrado várias vezes, o papel não resistia, e era fissurado pelos dedos. As unhas tinham que estar bastante cortadinhas para não permitir depósitos da substância dourada nas regiões sub-ungueais. Enfim, a privada dos meus tempos de menino não era nada agradável. A descarga do material em direção as fossas eram realizadas manualmente através de um ou dois baldes de cerca de dez litros de água, que eram jogados de maneira rápida, numa altura de mais ou menos um metro. Algumas vezes, quando a necessidade premente surgia e encontrávamos a bacia sanitária repleta de material antigo já escurecido, exalando um odor forte de cana fermentada de engenho, ficávamos enfurecidos, doidos para saber quem tinha sido o preguiçoso que deixara o sanitário naquele estado.

Às vezes, a pressa era tão grande, que mal dava tempo de averiguar se havia papel pendurado no arame da parede. Só depois de satisfeita a necessidade era que notávamos a falta das tiras de papéis no interior da privada. Nessa ocasião, o jeito era sair com as calças à altura dos joelhos, pulando de pés juntos, como um burro com suas patas dianteiras amarradas por cordas, para não fugir. Era nessa situação trágico-cômica que saíamos à procura de uma folha de jornal, ou até de uma carteira de cigarros vazia, para depois de um arremedo de limpeza, sair caminhando com o pano das calças a colar na lambuzeira pegajosa entre os glúteos. Ressalte-se que naquele tempo, menino não usava cueca. Depois, a pobre da lavadeira é quem sofria para desfazer o cascão dos resíduos endurecidos nos fundilhos das calças.

Hoje, temos sanitários modernos com porta-rolo de papel fino, macio, alvo e perfumado, à altura da mão, tendo ao lado mais uns três rolos de reserva. Descargas que funcionam com um simples aperto de dedo. Paredes azulejadas em tons suaves, pias e armários embutidos com um ou dois espelhos. Chuveiro a dois passos, com água fria e morna. Assentos macios para uma leitura demorada, o bastante para dar início à formação das irritantes hemorróidas que naquele tempo não existia tanto. As residências têm hoje no mínimo três banheiros. No tempo da “bucheira” era um só para todo o mundo, com um agravante: nos fins de semana, com as visitas, formava-se fila na frente da “casinha”. E tínhamos que ser rápidos em nossas evacuações ─ com isso, sem ter nenhum conhecimento científico, estávamos fazendo a prevenção das fatídicas hemorróidas, que são o preço que pagamos hoje pela comodidade de uma leitura prolongada e amena pós-defecação.

As privadas da era pré-papel higiênico eram de aspecto sombrio e úmido, e para completar a lugubridade do local, além das paredes mofadas, existiam as pavorosas teias de aranha no telhado. Era enfim um lugar mais tenebroso do que prazeroso. Mas, mesmo assim, eu com as minhas raras leituras de restos de jornais, ali destinados a um outro fim, tinha os meus minutos de reflexão.

Tudo isso me fez lembrar de uma frase que era dita com muita freqüência naquela época. Dizia-se: “jornal lido só serve para embrulhar peixe, ou para limpar a bunda”. Mas, aí veio a grande revolução causada pelo papel higiênico, desbancando a velha e hoje extinta “bucheira” ─ trepadeira que nascia nos recantos dos muros e nas faxinas dos quintais; incorrendo também, na retirada de cena das velhas e encardidas folhas dos “diários de notícias”, que nos serviam de mata-borrão fecal, entre as quatro paredes do soturno cubículo chamado “privada”.

Considero hoje, uma grande injustiça o fato de não haver nas cidades (principalmente nas interioranas), nenhum monumento em homenagem aos precursores do revolucionário papel higiênico. Mas quem sabe, um dia, as autoridades políticas do país ainda não vão despertar para prestar um ato, mínimo que seja, de consideração aos nossos antigos instrumentos de limpeza dessa porção essencial do corpo humano tão negligenciada. Comumente relegado a uma categoria inferior, o ânus tem na verdade, a relevante função de permitiir o escoamento de todo material imprestável resultante da decomposição dos nossos tão apetitosos alimentos.

Entre todas as nossas partes, o ânus é considerado a porção mais indigna. Apesar de sua importante função, nunca temos com ele o cuidado que tanto dedicamos aos outros órgãos irmãos. Temos nojo do mesmo. No entanto, mal sabemos o quanto ele é poderoso, e não imaginamos as conseqüências terríveis que poderiam advir sobre nós, caso ele realizasse uma greve de algumas semanas seguidas.

Em contraposição a rude “bucheira”, os atuais rolos de papéis higiênicos perfumados, macios ou aveludados, vieram fazer justiça, proporcionando um pouco de conforto a esta tão esquecida e desgastada região vital de nosso corpo.




Crônica por: Levi B. Santos

Guarabira, 03 de Maio de 2008