27 dezembro 2015

Desejo de Estar em Casa





Às vésperas de 2016 ano em que completo sete décadas de vida nunca desejei tanto ficar em casa, em família. Não sei o que reside por trás da onipotência desse desejo que, por ora, me consome.

Há poucos momentos, ouvia minha esposa comentar sobre dois amigos nossos que realizaram o sonho de passar as festas de final de ano na bela, colorida e fosforescente Gramado RS. E fiquei a pensar: quem pode entrar na subjetividade do outro para concluir que, pelo simples fato dele se encontrar longe do seu torrão, esteja impedido de se perceber como se estivesse em sua própria casa? O papa Francisco, recentemente, em visita a Cuba, mesmo longe de sua terra (a Argentina), deu vazão a um sentimento aparentemente paradoxal, mas profundamente humano, quando em uma entrevista a uma emissora cubana, assim se expressou: “me senti em casa, em família”.

Esse desejo de ficar em casa não seria, no fundo, uma vontade de ficar a sós, uma espécie de fuga do ambiente daqueles que nessa época promovem o barulho festivo e ensurdecedor lá fora?
Aos sedentários, dirão os mais jovens: em final de ano, ficar numa rede grudado em um livro é coisa para quem atingiu a idade provecta. Não tiro a razão deles. Dou mão à palmatória. Já não tenho a mesma vitalidade de duas ou três décadas atrás quando, imbuído de um jovial espírito aventureiro, fazia mil estripulias sem demonstrar nenhum cansaço. Como um velho cheio de limitações pode acompanhar as diabruras da juventude errante e esfuziante da pós modernidade? É o caso de se dizer que em uma idade mais avançada, o espírito pode até desejar a errância da juventude, mas o corpo entravado não o acompanha.

Tão nova, minha neta com apenas cinco anos de idade já absorveu o espírito espetaculoso do Natal. Ao mergulhar na rede onde me encontrava absorto na leitura de um livro, disparou com olhos arregalados: “Ô vovô, livro de adulto é tão chato!”. “Por que?” perguntei de imediato. Manu, tomando o livro de minhas mãos, não demorou para dar seu veredicto: “Olha como é chato livro de adulto!: Só tem palavras, só tem palavras!” concluiu, me arrebatando o livro para, de forma rápida e incisiva, folheá-lo bem pertinho de meu nariz. Eu entendi tudo, e lhe dei os parabéns pela tirada inteligente. Natal de velho é muito chato mesmo, não tem a dinâmica alegre e irresistível da meninada, nem as luzes multicoloridas e cintilantes que nessa época tanto prazer dão aos olhos.

Aqui em minha rede tendo um livro a tiracolo, sob um clima meio abafado por dois dias de chuva, com o sol teimoso de verão querendo mostrar de novo a sua cara por entre restos de escuras nuvens, me vejo a pensar, como a vida em um país de dimensões continentais como o nosso é cheia de contrastes. Enquanto muitos longe de casa se sentem em casa, lá no Rio Grande do Sul, bem pertinho da festiva Gramado, mais de mil famílias de trinta e dois municípios passaram o Natal fora de casa: tudo o que tinham obtido com sacrifício foi levado violentamente pelas águas.

A enxurrada, por certo, nesse triste Natal deve ter levado consigo muitos sonhos, até presépios natalinos com seus personagens característicos erigidos em um canto especial das residências das mais de trinta cidades gaúchas atingidas pelo vendaval.

Que pena, ver tantos contrastes em um período tão intensamente desejado pela comunidade cristã. Como a vida continua, volto a minha rede, para continuar a leitura que vinha fazendo quando fui interrompido pela agudeza de espírito de minha neta mais nova. Eu e a “imatura” Manu vivenciamos, em questão de poucos minutos, os polos ambivalentes da indestrutível natureza humana. Plagiando Pascal eu diria: “no coração da criança há razões que a própria razão de um velho avô desconhece”. Como numa época de grande espetáculo, uma tenra criança poderia suportar a chatice das palavras, que naquele momento me entretinha?

Rememorar é uma espécie de repetição para trás”, dizem, com sobrada razão, os poetas e filósofos. De início fiquei incomodado pelo fato de minha neta mais nova ter se jogado abruptamente na rede, sobre mim, atrapalhando a leitura que vinha fazendo. Nos dias atuais tenho ouvido muitas vezes a frase: “Hoje, quem ensina os pais e avós são os filhos e os netos.”
Aprendi que desejar estar em casa é também deixar-se ser incomodado pelo outro. Bem-aventurado incômodo, que me fez viajar em sentido contrário. Me vi criança de novo: Tinha sete anos a mais que Manu, quando ajudava minha mãe nas feiras das quartas e sábados em minha cidade Natal (Alagoa Grande – PB). Passávamos das seis da manhã as quatro horas da tarde vendendo confecções e tecidos em um grande banco de feira. Eu, era o caixa, cuidava de uma gaveta cheia de notas de cruzeiros: recebia o apurado e passava troco aos fregueses. Lá pelas duas horas as vendas escasseavam, e eu aproveitava para me esconder dentro do banco para apreciar e ler artigos da revista “O Cruzeiro” e “Manchete”. Essas revistas eram compradas por quilos para servir de papel de embrulho das roupas adquiridas pelos clientes. Naquele meu refúgio lia artigos de David Nasser, Carlos Lacerda, Mário Mascarenhas, Rachel de Queiroz e outros que não me vêm à lembrança no momento, além de coisas do mundo do futebol. Lembro que, de quando em vez, era despertado de minha concentração literária por reclamações vindas de minha mãe: “Que coisa mais chata, você se enfurna aí dentro banco, e não despacha o freguês que quer pagar a compra e receber seu troco!”. E voltava rápido para a realidade cruel da vida, como quem é arrancado do leito enquanto sonha um bom sonho.


A reprimenda “livro de adulto é tão chato, vovô!” feita por minha neta (terceira geração) a seu avô, foi a senha para que reminiscências de meu passado remoto aflorassem. O acontecimento de hoje, pelo avesso, abrira as portas dos obscuros porões de minha mente, fazendo-me reexperimentar cenas de um desencontro proveniente de uma mesma matriz, ocorrido entre as duas gerações primeiras: a minha e a de minha mãe. 

No livro que o senhor está lendo, vovô, só tem palavras, só palavras!”. Ela demorou só dois ou três minutos. Saiu da rede para, em outro recinto, extasiar-se com as imagens fantásticas de um Natal polarizado no “lado bom”, na telinha do computador. Enquanto me recomponho na rede para continuar a leitura do grosso livro que há um mês tento acabar e não consigo, os três netos se divertem no fantástico mundo digital, que também uso para expor meus textos. Isso é que é progresso: Meu neto mais novo, de 11 meses de idade, com o indicador da mão direita já mexe desajeitadamente na telinha do smartphone.

De tudo, aprendi que estar em casa é também ser testemunha e partícipe de todo avanço tecnológico indutor de desejos. Progresso que o mundo globalizado inventou para nos servir e também para nos desassossegar.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 25 de dezembro de 2015

13 dezembro 2015

Do Natal Ao Carnaval ― Um Recesso Bem Brasileiro





Pedro Álvares Cabral, não quis conversa, e bateu o pé: Só saio com minha esquadra pelo vasto mar até a Índia (confundida com as terras de Vera Cruz, que depois se chamaria Brasil), depois das festas do Natal e dos Entrudos em Portugal. Para quem não sabe, a festa do “entrudo” era um desfile de bonecos gigantes feitos de madeira e tecido colorido. A folia que tomava as principais ruas de Portugal, mais tarde, daria origem ao nosso Carnaval.

Quem se aventurar em explorar nossas raízes históricas ou culturais vai, com certeza, culpar Pedro Álvares Cabral pelo longo período de recesso festivo que vai do Natal ao Carnaval. É que o comandante maior que descobriu nossas terrasfoi iniciar suas atividades na colônia dois meses depois do carnaval de Portugal no ano de 1500, como bem diz a marchinha carnavalesca “Quem Foi Que Inventou o Brasil”, de autoria de Lamartine Babo (Cliquem aqui para ouvir essa pérola do carnaval de 1934). Daí então, o longo período de lazer sacro-profano que começa em dezembro e termina na folia momesca de fevereiro ou março, tornou-se intocável na Terra de Santa Cruz. Basta um rápido retrospecto sobre Nossa História para se constatar que as duas maiores datas cívicas ocorreram nos meses de setembro e novembro e não no período que vai de dezembro a fevereiro. Patriotismo (ou patriotada) nunca foi coisa para acontecer em períodos de descanso e lazer espiritual dionisíaco.

A discussão que, por ora, toma conta do país é se o processo turbulento de criação de uma comissão parlamentar para aprovação ou não do ritual de impeachment da presidenta da república, deve ser iniciado, ou não, às vésperas do Natal. Se aprovado, o prolongado trâmite descambará pelos meses de dezembro, janeiro e fevereiro. Para que tal façanha ocorra seria necessário o recesso do Congresso e do Judiciário coisa totalmente impensável. Ninguém, em sua santa consciência, tem força suficiente para romper com a tradição do oportunismo lúdico imbuído em nós pelos colonizadores portugueses d'além mar.

O ministro Fachin, em sua recente fala, já deu a entender que recesso no STF nos meses sagrados de descanso não é coisa para se mexer. Como dezembro marca o ritual sacro do nascimento de Cristo, caiu maravilhosamente bem a marcação para o próximo dia 16 (quarta feira oito dias antes do Natal), da palavra final de nossa Corte Máxima de Justiça, sobre como será o ritual do suposto impeachment. Para que o negócio não contamine o período de recesso, Fachin, já deu o tom de que quer começar e terminar tudo na quarta feira. Naturalmente, espera que seus colegas não inventem de pedir vistas ao processo interposto pelo PC do B.

Ninguém pediu para haver carnaval antecipado nos palcos do Congresso. Que se cuidem então os blocos partidários carnavalescos, pois, como diz a letra do samba, “Felicidade” de Tom Jobim: “De rei ou de pirata ou de jardineira/E(vai) tudo se acabar na quarta-feira”.

Acho muito difícil romper com o longo período festeiro que paralisa as atividades institucionais por dois ou três meses presente oferecido pela primeira autoridade a desembarcar em nossas plagas Pedro Álvares Cabral. O nosso povo nasceu tão lúdico que o historiador e pesquisador da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão, em seu livro, “As Festas no Brasil Colonial”, diz que apenas a Igreja contribuía com um terço dos 365 dias do ano, só para atividades fora do trabalho. Não foi à toa que Pero Vaz de Caminha, em sua antológica carta escrita de Porto Seguro de Vera Cruz dirigida ao rei D. Manuel de Portugal, assim se expressou: “Terra para conhecer e também para folgarmos”.

Tenham todos um bom recesso, e, até fevereiro de 2016 (depois do carnaval, é claro). Quem sabe lá se não voltaremos em março de 2016 com a cabeça fria para encerrar de vez mais um ato trágico-cômico da interminável Novela Luso-brasileira iniciada em 1500 que, por ora, nos faz rir e chorar ao mesmo tempo?


Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de dezembro de 2015

Site da Imagem: henriquembranco.blogspot.com.br

09 dezembro 2015

Carta a Mãe





Uma recente carta recheada de lamúrias e descontentamentos atribuída ao vice-presidente da República, Michel Temer, foi motivo de intensa repercussão, as mais humoradas, nas redes sociais. A carta está eivada de expressões daquilo que na psicanálise freudiana denomina-se “ressentimento”. E por falar nesse tipo de afeto, não poderia deixar de expor, aqui, o que diz a Psicanalista da PUC de São Paulo, Maria Rita Kehl, em seu preciosíssimo livro Ressentimento [Editora Casa do Psicólogo – página 19]:

O ressentimento é uma cobrança indireta de um bem cedido ao outro por submissão ou covardia. Instalado no lugar do queixoso o ressentido não se arrepende: acusa. Sua reivindicação não é clara: ele não luta para recuperar aquilo que cedeu e sim para que o outro reconheça o mal que lhe fez. No entanto, não espera obter reparação: o que ele quer é uma espécie de vingança.”

A Psicanalista austríaca, Melanie Klein, também da linha freudiana, dedicou-se de corpo e alma à análise psíquica de crianças, tirando muitas lições da ambivalência já presente no bebê esse pequeno ser que, totalmente dependente da mãe, se lambuza de prazer quando no seu colo é aconchegado e amamentado, e por vezes sente desprazer ou chora de raiva quando deseja mamar e não é prontamente atendido.

Nas redes sociais a carta de Temer refletiu, em suas tiradas carregadas de humor, exatamente o que a psicanálise fala sobre esse afeto, que tem início em nossa tenra infância, como bem demonstra o jornalista, Ricardo Pereira, em seu Twitter: “Já escrevi uma carta semelhante a do Temer. Tinha sete anos. Para o Papai que não trouxe o autorama que pedi”. [#CartaDoTemer]

Maria Rita kehl, em seu expressivo livro, vai mais fundo, evidenciando que esse afeto, mesmo em intelectuais adultos, já bem vividos no campo do relacionamento político, não deixa de pregar-lhes peças, até em público, como foi a missiva do vice de nossa República, que bem poderia ter por título, “Carta a Mãe”:

Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro supostamente poderoso a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser protegido ainda que prejudicado a ser livre, mas desamparado.” [“Ressentimento” página 14].


Por Levi B. Santos
Guarabira, 09 de dezembro de 2015