24 dezembro 2016

Reminiscências De Uma Noite de Dezembro

Teatro Santa Ignês – Alagoa Grande - Pb


          De quando em vez me surpreendo assoviando uma estrofe de uma cantiga dos meus tempos de estudante ginasial. A melodia dessa canção faz a minha mente viajar para trás, suscitando-me uma regressão aos tempos do meu paraíso edênico.

Lá se vai a minha velha embarcação caminhando em sentido contrário à corrente do rio, que é a vida, corrente essa que teima em se nutrir mais do olhar para frente, do que o andar para trás. Sinto lá nos recônditos da alma, o rumor das águas do rio de minha vida pueril. Vejo dentro de mim, cenas do turbilhonar dessas águas. Elas estão represadas não sei onde, e de vez em quando, extravasam através das comportas estanques da memória, sob a forma de reminiscências. É especialmente na época do Natal, que as águas do meu passado distante transmitem um sentimento de nostalgia de algo prazeroso que vivenciei nos tempos em que o meu “eu” não conhecia a Lei que mais tarde poria dentro do meu ser a inimizade entre o profano e o sagrado.

No convés de minha embarcação, navegando para trás, encontrei o menino de 13 anos de idade, cantando alegremente num grupo orfeônico, em uma festa natalina após as provas do final de ano letivo. Os olhos da alma insistiam em querer ver o que a embarcação já deteriorada pela ação do tempo não me permitia enxergar. A velha embarcação construída há sessenta e três anos, demorou demais no trajeto inverso, e eu só pude reter ou rever a segunda parte daquela canção que tanto marcou os meus Natais pela vida afora. Essa parte da melodia foi a que o barco de memórias conseguiu resgatar, e correspondia a uma dolente sinfonia em tom menor, que eu, por toda a vida de adulto assoviara. Sem a letra, hoje considerada profana, só restou o assovio da metade da bela modinha reverberando nas cordas do meu violão.

O cérebro, esse antiquado computador, deletou a primeira estrofe da canção que cantei jubilosamente com os meus coleguinhas de classe, num salão imenso ornamentado de luzes multicores, e árvores carregadas de nacos de algodão, que mais tarde eu viria saber que eram para imitar a neve que naturalmente decoravam as árvores no natal dos países frios. Que bons tempos aqueles do coral orfeônico de minha saudosa escola. Era sob a batuta do experiente e paciente maestro que a música transformava-me em um corpo coletivo. As notas musicais transportavam-me a outro mundo, e eu me identificava com os outros, meus colegas, meus irmãos, numa efusão prazerosa de felicidade e êxtase. O que mais me interessava não era a letra da canção e sim a beleza extra-subjetiva dos acordes que mergulhava o meu coração na atmosfera harmônica indescritível carregada de uma inefável serenidade.

Essa máquina maravilhosa ─ o computador ligado a rede mundial de informação, como um poderoso cérebro, foi buscar, nos seus antigos e raros arquivos, essa obra musical monumental de autoria do nosso grande compositor Heitor Villa Lobos, intitulada "Canto do Pajé

Através do vídeo abaixo, pude adentrar de novo a Catedral do mundo estrutural e espiritual dos meus verdes anos, quando o maniqueísmo do bem e do mal, do sagrado e do profano não tinha ainda se entranhado em meu ser.

A emoção que como adulto sinto no momento, nada mais é que a REPETIÇÃO de minha primeira experiência no mundo sublime da música, refletida no meu imaginário.


Crônica por Levi B. Santos
Guarabira, 14 de dezembro de 2009

13 dezembro 2016

Um Tenebroso Sonho com a República



Não raramente tenho tido sonhos angustiantes. Mas esse que tive recentemente, pela gravidade do momento que ora atravessamos, talvez tenha sido o mais estarrecedor. Não obstante, os antigos acreditarem que sonhos podem prever o futuro, na minha cética compreensão, acompanho Freud, quando ele diz que “todos os sonhos se originam do passado em todos os sentidos”. Mesmo projetado num futuro, o sonho do tempo presente tem, em seu bojo, conteúdos já experimentados e recalcados no subsolo obscuro da mente.


Sonhei que estava no início de julho três meses antes da eleição presidencial de 2018 , época em que a operação Lava-Jato, como nunca tinha ocorrido antes, vinha funcionando de forma temerária e avassaladora. Lembro bem da voz tonitruante que fez estremecer todo meu corpo: “já contamos com mais de trezentos congressistas denunciados como réus”. Manchetes dos principais jornais do país passavam por minha mente dando conta de que nossos seis principais partidos políticos estavam sem pré-candidatos à presidência da república. Ninguém estava em condições de assumir o posto maior da nação, provocando, em consequência, uma crise sem precedentes desde que o mundo é mundo.

Em minha visão, um senhor de longa beca preta, parecendo um dos ministros do Supremo, saiu-se com essa: “Eu avisei! Eu avisei que a Lava-Jato, com seu ímpeto puritano, terminaria por inviabilizar o país!” No desenrolar do sonho veio a minha percepção que o vaticínio do ministro teria começado a se concretizar em uma reunião secreta, por ocasião da recusa de um membro do Senado em assinar uma intimação enviada pelo próprio STF, nos idos de dezembro de 2016. Um detalhe do sonho, nunca vou esquecer: O senhor de preto, usando da ironia, cantarolava (baixinho, para ninguém ouvir) o último verso de ― ”FESTA” ―, música funk muito conhecida, na voz da grande intérprete baiana, Ivete Sangalo: “...Vai rolar a festa/Vai rolar/O povo no gueto/Mandou avisar.”

De repente, me vi em um grande salão ricamente condecorado. Um guarda com vestes imperiais, dirigindo-se a mim, detonou: aqui você não pode entrar, os três poderes estão se reunindo para descascar um grande abacaxi! Depois de vários jantares secretos nesse belíssimo salão nobre, as autoridades levantaram-se cabisbaixas e, tomando seus valiosos automóveis, desapareceram com destino incerto, como fantasmas evaporando no ar. Foi quando vi uma fumaça branca subindo no céu do planalto central brasileiro, indicando que haveria eleição para presidente da república: Do lado de fora do prédio vi uma grande faixa branca onde estava escrita, em letras vermelhas reluzentes, a inscrição: “A fórmula encontrada foi uma intervenção vinda do Céu!”. Por falar em Céu, pude escutar uma voz cavernosa a imitar a célebre e sábia decisão de Cristo diante dos apedrejadores da prostituta, narrada nos Evangelhos: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”

Perguntei ao guarda sobre o motivo dessa reunião secreta. Após olhar para frente, para trás e para os lados e não vendo ninguém por perto, segredou-me ao ouvido: Pelo placar de 9X1, ficou decidido que só os réus com até três processos é que poderiam se candidatar ao posto máximo do país. Pelo mesmo escore, também decidiram que a Lava Jato seria controlada por um Conselho, aos moldes do CNJ. Diante do caráter urgente prevalecera o bom senso de que não se deveria retardar o veredicto. Imediatamente, após a fala do guarda, vi uma enorme pomba falante passar em voo rasante sobre minha cabeça. Em todo seu esplendor, ela estava alí, bem evidente a grasnar em latim: “Periculum in mora!”


Em minha mente, eu tinha a nítida percepção de que a decisão tomada de urgência pela alta cúpula dos poderes não tinha agradado aqueles presidenciáveis que, apesar dos fardos pesados que carregavam nos ombros e em outros recantos, estavam na crista da onda midiática.

Como é comum em sonhos se pular em frações de segundo de um ambiente para outro completamente diferente, de repente estava eu deitado no sofá de minha sala assistindo ao Jornal da GloboNews (edição da meia-noite), do qual, só retive na memória a última fala do comentarista de plantão, especialista em política e economia:

...Talvez tenha sido por isso que o dólar subiu e a Bolsa despencou. O Mercado, as empresas nacionais/internacionais e os banqueiros não gostaram da solução acordada pelos três poderes. Os que estavam de corpo e alma envolvidos em muitas denúncias na Lava-Jato eram os preferidos do Mercado. O Mercado temia os mais puros de coração(os com menos de três processos): é que os imaturos, devido a falta de traquejo político-econômico, poderiam por tudo a perder ao assumir o cargo de presidente da república. Os barões, administradores dos bancos e das grandes empresas, apesar de confiarem no espírito poderosamente inflamável do Neo-Liberalismo, temiam que o presidente eleito, imbuído de um idealismo edênico, interferisse em suas futuras e obscuras negociatas com o poder público”.

O desfecho do sonho foi tremendamente assustador. Lembro que estiquei-me todo, ficando nas pontas dos pés sobre o assoalho de madeira de lei, a fim de me debater com mais vigor contra a água turva de odor irrespirável que inundava o salão nobre. Quando me encontrava no momento de maior agonia, lutando para que a água turva não entrasse em minhas narinas, nauseado e completamente sem forças, acordei do meu tenebroso sonho republicano.




Por Levi B. Santos
Guarabira, 13 de dezembro de 2016

05 dezembro 2016

“Nossa Contraditória Natureza” ─ Um Tema Inconveniente em Congresso Festivo





O Bispo empalideceu instantaneamente ao tomar consciência que o Tema do Congresso religioso seria baseado na Carta que o apóstolo Paulo deixou aos Romanos , exatamente a parte que considerava a mais difícil e truncada da Bíblia Rom. 7:19

Com antecedência, já tinha enviado passagem de avião e uma boa ajuda de custo para o famoso preletor. Mas não teve outra decisão, que a de rapidamente enviar uma mensagem curta e certeira pelo WhatsApp ao renomado pregador, implorando para que abdicasse de tocar nessa passagem tão polêmica da epístola de Paulo aos Romanos, tema que já lhe custara muitos meses de estudo e reflexão sem que até agora encontrasse lógica nenhuma na dúbia citação paulina.

Em sua agonia, tivera até sonhos em que anjos apareciam informando-lhe que aquilo que Paulo escrevera teria sido na época em que sua fé ainda estava imatura. Lembrou-se de que certa vez, ouviu um colega de ministério dizer que o apóstolo Paulo escrevera o capítulo 7 de Romanos não para ser tema de sermões em cultos públicos, e sim para ser ventilado em reuniões secretas da igreja.

Pediu a opinião de seu vice, o qual, de imediato, concordou que seria um perigo ou um balde de água fria no Congresso discorrer para pecadores ou novos convertidos sobre um tema inflamável e até mesmo contraditório, como se a contradição não fosse a característica maior do ser humano.

O bispo viajou de urgência à Brasília, a fim de consultar o Setor de Aconselhamento da igreja matriz a qual pertencia, por sinal, muito frequentada por autoridades da república, além de grande parcela de mestres e doutores em Ciências Humanas da Capital Federal.

Não gostou, ou para falar a verdade nua e crua, saiu altamente decepcionado com o que ouvira de alguns sabichões da cúpula de comando de sua instituição religiosa.
Chegou até a exclamar para si: “Meu Deus, a Igreja da qual sou um simples bispo, está mundanizada!” Nem notou que o aparente paradoxo da passagem paulina se fez presente nele mesmo, ou em seu inconsciente, ao pedir, no mesmo instante, perdão pelo pecado de “blasfêmia” ao considerar a santa Igreja desviada dos caminhos do Senhor.

Não entendera nada do que o psicólogo, teólogo e doutor Ph.D. em “Carta aos Romanos” tinha exposto sobre a essência da ambiguidade dos afetos humanos tão bem sintetizada pelo apóstolo Paulo naquele emblemático versículo. Como gravara em seu smartphone tudo que ouvira na reunião, na viagem de volta para sua cidade natal foi revendo o que os estudiosos conselheiros tinham lhe explicado a respeito do polêmico Romanos (7:19). Mas uma voz não cessava de sussurrar aos seus ouvidos: “Isto é coisa do Diabo, bispo. Saia dessa!”

Nunca que vou concordar com tamanho absurdo que ouvi dos meus superiores , dizia o bispo de si para si. Lá atrás em uma das últimas poltronas do avião que o levava a sua terra natal, a curiosidade, tal qual prurido em lugar mais sensível do corpo, estimulou-o a novamente ligar seu aparelho a fim de rever toda a gravação que fizera da fala do seu superior hierárquico:

Paulo disse algo profundo, que ainda hoje é base de toda a Psicologia individual e coletiva: Através da célebre afirmação de Saulo de Tarso aos Romanos, hoje podemos compreender que a religião não é uma espécie de luneta para observação de panoramas externos. Pelo contrário, ela é um espelho que nos possibilita olhar para dentro de nós mesmos, a fim de que entendamos que mesmo ao pregar o bem, o mal está lá escondido nos recônditos mais profundos de nossa psique ou alma”.

Torceu o nariz quando o teólogo fez, no seu dizer, uma fiel analogia da frase paradoxal de Paulo com um verso que Horácio, (65 a. C), grande poeta da Roma antiga, deixou registrado em seus escritos: “Mais na mente que no corpo jazem minhas dores/ Tudo que me prejudica, com alegria eu busco/ Tudo que me faz bem, com horror eu vejo”.

Sentiu-se mal e desejou até apagar esse trecho horripilante da totalidade do que gravara na “Clínica da Alma”, situada numa dependência da grande catedral de sua Instituição em Brasília, ocasião em que tivera a oportunidade de ouvir o Mestre-Conselheiro explicando o “porquê” da emblemática frase de Paulo “O querer bem está em mim, porém não consigo efetuá-lo”.

Paulo queria explicitar que o desejo de fazer o bem realmente habitava no homem regenerado, naquela porção nova da natureza dupla do crente; mas visto que a sua antiga e corrupta natureza mantinha o domínio, a sua porção regenerada ficava tolhida… […] Por conseguinte, o crente continuava a fazer o que odeia, sendo incapaz de praticar o que ama.”

Sentiu náuseas ao conferir a elucidação enfatizada pelo Teólogo existencialista, cuja função precípua era a de dirimir dúvidas sobre a interpretação de textos que versassem sobre a natureza ambígua ou contraditória do homem em sua totalidade. O desejo de externar o que pensava na cara do conselheiro veio à tona em seu coração: ora, o velho Adão em si já morrera, por conseguinte, não poderia admitir que continuava a fazer o que odeia. Poderia até concordar com o teólogo e conselheiro-mor de sua igreja, se ele tivesse explicitado que o "mal" podia aparecer em sonhos, pois no sono profundo não se consegue controlar a mente. Para ele o que valia mais era o estado de vigília, estágio em que o sujeito tem a capacidade de reprimir as coisas da carne que vez por outra aflora na consciência. 

Como, admitir toda essa asneira meu Deus do Céu? Como, na condição de Nova Criatura, além de mensageiro de Cristo, vou afirmar para as minhas ovelhas que o mal que não quero para elas, esse faço? inquiria o bispo, meio desnorteado. Foi quando abandonou o seu celular para retirar de sua pasta o grosso volume de 887 páginas do livro “Romanos interpretado versículo por versículo” , grande coleção da Editora Candeia, composta de seis grossos volumes, totalizando nada mais nada menos que 4.336 páginas, do autor, Russell Norman Champlin, Ph.D.
Além de ser muito dispendioso adquirir todo o Novo Testamento explicado versículo por versículo, sabia que nunca chegaria a ler tamanho calhamaço. Contentou-se apenas com o volume correspondente a Carta de Paulo aos Romanos.

Ao abrir livro aleatoriamente, como quem puxa à guiza de revelações, versículos bíblicos escritos em pequenos cartões coloridos da velha conhecida “Caixa de Promessas, o bispo surpreendeu-se com a analogia que o autor fez da célebre e paradoxal frase de Romanos 7:19, com um verso do poeta considerado por ele como um dos mais mundanos. Tremeu só ele, e não o avião, ao ler o que considerava uma blasfêmia: tratava-se de uma poesia existencialista de Olavo Bilac, um dos maiores poetas de nosso país. E não é que, repentinamente, arregalou os olhos ao se deparar com o trecho final do poema, que dizia assim:

E, no perpétuo ideal que te devora/Residem, juntamente no teu peito/Um demônio que ruge e um Deus que chora”.

Fechou o volume de quase mil páginas e clamou tão alto pelo sangue de Cristo, que acabou acordando muitos passageiros que estavam cochilando nas poltronas do avião. Dali pra frente não conseguiu ler mais nada daquele herético livro.

E haja pensamentos e mais pensamentos a torturar o bispo, que com seus botões racionalizava, agora em um surdo silêncio. Alguma coisa nele dizia: Não sei, mas certas passagens bíblicas, só vamos entender na outra vida. Para evitar contendas, enquanto estiver a frente da igreja, esse tema não será motivo de filosofices, seja de quem for, doutores ou não doutores. Ademais, o Livro Sagrado não é de particular interpretação, e ponto final.

Diante de uma das mais severas crises da história recente da nação brasileira, decorrente da falta de credibilidade, a maioria dos membros do corpo da igreja em uma votação democrática, pediu mais leveza na escolha do tema do Congresso: Em vez de assunto tão terrível e complexo, que se falasse de algo mais prazeroso, como “Vitória e Glória” que deixa todo mundo saltitante de contentamento ―, além de ser uma espécie de compensação anestesiante para o enfrentamento da realidade tão angustiante da vida que, bem diferente do ambiente sagrado, naturalmente se leva lá fora.

Ninguém é de ferro, não é irmãos? A vida, tal qual uma rapadura, já é tão dura!. Uma semana de festa, já nos aliviaria bastante — disse um empolgado membro, fazendo uso da palavra —, e isso foi o bastante para obtenção de calorosos aplausos e glórias a Deus.


NOTA:

Os trechos em itálico na cor vermelho-tijolo foram pinçados dos excertos e comentários ao capítulo 7 de “Romanos explicado versículo por versículo”, da grande coleção do Novo Testamento, de Norman Champlin Ph.D.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 05 de dezembro de 2016