O
Bispo empalideceu instantaneamente ao tomar consciência que o
Tema do Congresso religioso seria baseado na Carta que o apóstolo
Paulo deixou aos Romanos ―,
exatamente a parte que considerava a mais difícil e truncada da
Bíblia ― Rom. 7:19
Com
antecedência, já tinha enviado passagem de avião e uma boa ajuda
de custo para o famoso preletor. Mas não teve outra decisão, que a
de rapidamente enviar uma mensagem curta e certeira pelo WhatsApp ao
renomado pregador, implorando para que abdicasse de tocar nessa
passagem tão polêmica da epístola de Paulo aos Romanos, tema que
já lhe custara muitos meses de estudo e reflexão sem que até agora
encontrasse lógica nenhuma na dúbia citação paulina.
Em
sua agonia, tivera até sonhos em que anjos apareciam informando-lhe
que aquilo que Paulo escrevera teria sido na época em que sua fé
ainda estava imatura. Lembrou-se de que certa vez, ouviu um colega de
ministério dizer que o apóstolo Paulo escrevera o capítulo 7 de
Romanos não para ser tema de sermões em cultos públicos, e sim
para ser ventilado em reuniões secretas da igreja.
Pediu
a opinião de seu vice, o qual, de imediato, concordou que seria um
perigo ou um balde de água fria no Congresso discorrer para
pecadores ou novos convertidos sobre um tema inflamável e até mesmo
contraditório, como se a contradição não fosse a característica
maior do ser humano.
O
bispo viajou de urgência à Brasília, a fim de consultar o Setor de
Aconselhamento da igreja
matriz a qual pertencia, por sinal, muito frequentada por
autoridades da república, além de grande parcela de mestres e
doutores em Ciências Humanas da Capital Federal.
Não
gostou, ou para falar a verdade nua e crua, saiu altamente
decepcionado com o que ouvira de alguns sabichões da cúpula de
comando de sua instituição religiosa.
Chegou
até a exclamar para si: “Meu Deus, a Igreja da qual sou um
simples bispo, está mundanizada!” Nem notou que o
aparente paradoxo da passagem paulina se fez presente nele mesmo, ou
em seu inconsciente, ao pedir, no mesmo instante, perdão pelo pecado
de “blasfêmia” ao considerar a santa Igreja desviada dos
caminhos do Senhor.
Não
entendera nada do que o psicólogo, teólogo e doutor Ph.D. em “Carta
aos Romanos” tinha exposto sobre a essência da ambiguidade dos
afetos humanos tão bem sintetizada pelo apóstolo Paulo naquele
emblemático versículo. Como gravara em seu smartphone tudo
que ouvira na reunião, na viagem de volta para sua cidade natal foi
revendo o que os estudiosos conselheiros tinham lhe explicado a
respeito do polêmico Romanos (7:19). Mas uma voz não cessava de
sussurrar aos seus ouvidos: “Isto é coisa do Diabo, bispo. Saia
dessa!”
Nunca
que vou concordar com tamanho absurdo que ouvi dos meus
superiores ―,
dizia o bispo de si para si.
Lá atrás em uma das últimas poltronas do avião que o levava a sua
terra natal, a curiosidade, tal qual prurido em lugar mais sensível
do corpo, estimulou-o a novamente ligar seu aparelho a fim de rever
toda a gravação que fizera da fala do seu superior hierárquico:
“Paulo
disse algo profundo, que ainda hoje é base de toda a Psicologia
individual e coletiva: Através da célebre afirmação de Saulo de
Tarso aos Romanos, hoje podemos compreender que a religião não é
uma espécie de luneta para observação de panoramas externos. Pelo
contrário, ela é um espelho que nos possibilita olhar para dentro
de nós mesmos, a fim de que entendamos que mesmo ao pregar o bem, o
mal está lá escondido nos recônditos mais profundos de nossa
psique ou alma”.
Torceu
o nariz quando o teólogo fez, no seu dizer, uma fiel analogia da
frase paradoxal de Paulo com um verso que Horácio, (65 a. C), grande
poeta da Roma antiga, deixou registrado em seus escritos: “Mais
na mente
que
no corpo jazem minhas dores/ Tudo que me prejudica, com alegria eu
busco/ Tudo que me faz bem, com horror eu vejo”.
Sentiu-se
mal e desejou até apagar esse trecho horripilante da totalidade do
que gravara na “Clínica da Alma”, situada numa dependência da
grande catedral de sua Instituição em Brasília, ocasião em que
tivera a oportunidade de ouvir o Mestre-Conselheiro explicando o
“porquê” da emblemática frase de Paulo ―
“O querer bem está em
mim, porém não consigo efetuá-lo”.
Paulo
queria explicitar que “o desejo de
fazer o bem realmente habitava no homem regenerado,
naquela porção nova da natureza dupla do crente; mas visto que a
sua antiga e corrupta natureza mantinha o domínio, a
sua porção regenerada ficava tolhida… […] Por
conseguinte, o crente continuava a fazer o que odeia,
sendo incapaz de praticar o que ama.”
Sentiu
náuseas ao conferir a elucidação enfatizada pelo Teólogo
existencialista, cuja função precípua era a de dirimir dúvidas
sobre a interpretação de textos que versassem sobre a natureza
ambígua ou contraditória do homem em sua totalidade. O desejo de
externar o que pensava na cara do conselheiro veio à tona em seu
coração: ora, o velho Adão em si já morrera, por conseguinte, não
poderia admitir que continuava a fazer o que odeia. Poderia até
concordar com o teólogo e conselheiro-mor de sua igreja, se ele
tivesse explicitado que o "mal" podia aparecer em sonhos, pois no sono
profundo não se consegue controlar a mente. Para ele o que valia mais era o estado de vigília, estágio em que o sujeito tem a capacidade de reprimir as coisas da carne que vez por outra aflora na consciência.
Como,
admitir toda essa asneira meu Deus do Céu? Como, na condição
de Nova Criatura, além de mensageiro de Cristo,
vou afirmar para as minhas ovelhas que o mal que não quero para
elas, esse faço? ―
inquiria o bispo, meio desnorteado. Foi quando abandonou o seu
celular para retirar de sua pasta o grosso volume de 887 páginas do
livro “Romanos
interpretado versículo por versículo” ―,
grande coleção da Editora Candeia, composta de seis
grossos
volumes, totalizando nada mais nada menos que 4.336 páginas,
do autor, Russell Norman Champlin, Ph.D.
Além
de ser muito dispendioso adquirir todo o Novo Testamento explicado
versículo por versículo, sabia que nunca chegaria a ler tamanho
calhamaço. Contentou-se apenas com o volume correspondente a Carta
de Paulo aos Romanos.
Ao
abrir livro aleatoriamente, como quem puxa à guiza de revelações,
versículos bíblicos escritos em pequenos cartões coloridos da
velha conhecida “Caixa
de Promessas”,
o bispo surpreendeu-se com a analogia que o autor fez da célebre e
paradoxal frase de Romanos 7:19, com um verso do poeta considerado
por ele como um dos mais mundanos. Tremeu só ele, e não o avião,
ao ler o que considerava uma blasfêmia: tratava-se de uma poesia
existencialista de Olavo
Bilac, um dos maiores poetas de nosso país. E não é
que, repentinamente, arregalou os olhos ao se deparar com o trecho
final do poema, que dizia assim:
“E,
no perpétuo ideal que te devora/Residem, juntamente no teu peito/Um
demônio que ruge e um Deus que chora”.
Fechou
o volume de quase mil páginas e clamou tão alto pelo sangue de
Cristo, que acabou acordando muitos passageiros que estavam
cochilando nas poltronas do avião. Dali pra frente não conseguiu
ler mais nada daquele herético livro.
E
haja pensamentos e mais pensamentos a torturar
o bispo, que
com seus
botões racionalizava, agora
em um surdo silêncio.
Alguma coisa nele dizia: Não
sei, mas certas passagens bíblicas, só vamos entender na outra
vida. Para evitar contendas, enquanto estiver a frente da igreja,
esse tema
não será motivo de filosofices, seja
de quem
for, doutores ou não doutores. Ademais, o
Livro Sagrado não é
de particular interpretação, e ponto final.
Diante
de uma das mais
severas crises
da história recente da nação
brasileira, decorrente da falta
de credibilidade, a maioria
dos membros do corpo da
igreja em uma votação democrática, pediu mais leveza na escolha do
tema do Congresso: Em vez de
assunto tão terrível e complexo, que se falasse de
algo
mais
prazeroso,
como
“Vitória e Glória” ─
que deixa todo mundo
saltitante de contentamento
―, além de ser uma
espécie de compensação anestesiante
para o enfrentamento da
realidade tão angustiante
da vida que, bem diferente do
ambiente sagrado, naturalmente se leva
lá fora.
Ninguém
é de ferro, não é irmãos? A
vida, tal qual uma
rapadura, já é tão
dura!. Uma
semana de festa, já nos aliviaria
bastante — disse um
empolgado membro, fazendo uso da palavra —, e
isso foi o bastante para
obtenção de
calorosos aplausos e glórias a Deus.
NOTA:
Os
trechos em itálico na cor vermelho-tijolo
foram pinçados dos excertos e comentários ao capítulo 7 de
“Romanos
explicado versículo por versículo”, da grande coleção
do Novo Testamento, de Norman Champlin Ph.D.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
05 de dezembro de 2016
5 comentários:
É de dá um nó. E o bispo engavetou o problema?
Caro Levi,
Grato por mais uma abordagem sua a esse tema, o qual é um dos principais que costuma escrever em seu blogue.
De fato, esse ainda é um assunto que o meio religioso cristão tem dificuldades para debater. Não só porque desconstrói a ideia de que o convertido possui uma natureza distinta dos não crentes como também gera uma preocupação quanto à hipótese se alguém encontrar nessa passagem mais uma desculpa para "viver em pecado".
Se observarmos os comportamentos dos que costumam dar seus testemunhos de conversão, expondo na igreja que antes faziam isso e aquilo, mas agora estão regenerados (ao invés de se considerarem como pacientes em tratamento), entenderemos a dificuldade que há nas pessoas em admitirem a própria ambiguidade. Pois o ser humano, em sua necessidade de ser aceito dignamente por um grupo, buscando se adequar aos seus padrões de conduta, depois de certo tempo de crente/membro, resolve se enrijecer como um irmão de fé que subiu vários degraus na escada da santidade. Só que, ao agir assim, ele deixa de tratar melhor de suas chagas interiores e corre o risco de vir a enfrentar no futuro uma recaída. Aliás, não só uma como várias...
Bom seruacque essa passagem de Paulo fosse melhor trabalhada sendo possível harmoniza-la com outros escritos do NT. Inclusive com a primeira epístola de João quando o autor bíblico recomenda a confissao dos pecadis e a confiança na advocacia de Jesus perante o Pai (1:9-2:2)
Ao que me parece, segundo o texto, o bispo permaneceu com suas reflexões e a igreja resolveu enfrentar outro tema mais light.
Sobre a crise de credibilidade em nossa República, a qual mencionou brevemente no texto, Levi, eis aí um assunto a ser tratado. Sem querer defender os corruptos, percebo que boa parte da sociedade anda ignorando a corrupção que há nela mesma e tenho muita preocupação quanto a isso.
Se dependesse hoje de muitos internautas que descarregam suas emoções enraivecidas nas redes sociais, os políticos envolvidos com maracutaias deveriam sofrer pena de morte em julgamento sumário e há quem defenda até uma intervenção militar com fechamento do Congresso e prisão pela Polícia Federal de quem bastaria ser investigado pelo MPF.
Pois bem. Tudo isso pode representar uma profunda indignação de nosso sofrido povo com a situação do país. Porém, também é um posicionamento pouco refletido sobre as contradições de nós mesmos como seres humanos. Como se não fôssemos todos responsáveis em maior ou menor grau pelo que anda ocorrendo. Como se não compactuassemos com a eleição de muitos considerados fichas sujas! Como se fôssemos desprovidos das mesmas inclinações pecaminosas para se apropriar do bem comum. Como se, num ambiente de ditadura, não voltaríamos a absuar pelo retorno da democracia tão logo se instalasse um regime rígido. Como se militares, juízes, membros do MP ou delegados da PF não fossem também sujeitos às idênticas contradições que os atuais governantes e legisladores...
Infelizmente, tendemos a ignorar nossa própria inclinação para o erro e isto obscurece o entendimento a ponto de nos induzir a escolhas infelizes. Não que a política brasileira deva permanecer tal como é hoje, mas não podemos permitir que os acontecimentos noticiados sobre a Lava-Jato e outros casos de corrupção acabem prejudicando a correta percepção da realidade.
“Ao que me parece, segundo o texto, o bispo permaneceu com suas reflexões e a igreja resolveu enfrentar outro tema mais light” (Rodrigo)
Já dizia Freud, sobre esse tipo de solução light prazerosa:
“Na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade” (rsrs)
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