Ao ler as memórias de Carl G.
Jung (1875 ― 1961),
ditadas por ele mesmo a Aniela Jaffé, cinco anos antes
de sua morte, cheguei a conclusão de que o lado mau do homo
sapiens anda triunfando nos tempos atuais, talvez de uma forma
mais perversa do que nos tempos primitivos. Liquidar os anseios da
idade média que habitam o homem de hoje é tarefa praticamente
impossível.
Apesar das brilhantes descobertas e das aquisições da ciência, as vãs promessas de harmonia
brandidas pelos povos poderosos aos mais humildes e marginalizados,
particularmente por parte daqueles que estão no topo da pirâmide em
matéria de riqueza terrena, têm sido, sem sombra de dúvida, a
causa principal de todo o mal estar na pós-modernidade.
Donald Trump ―
o magnata eleito recentemente para reger os destinos da nação mais
poderosa e rica do mundo, pasmem, promete fazer um muro de separação
entre seu país e o odiado México ─
prova evidente do triunfo do lado selvagem do homem, que
responsabiliza a coletividade estrangeira pelos seus próprios
preconceitos nacionais. Nunca é demais salientar que a América do
Norte sempre foi a sonhada Terra Prometida dos puritanos emigrantes
do Reino Unido(os novos filhos de Israel). A travessia tormentosa
dessa corrente do protestantismo pelo vasto mar, transformou-se em
uma reedição da odisseia do idolatrado líder Moisés e seu povo
através do infindável e inóspito deserto, rumo à invasão da
terra de Canaã.
Todo o mal secreto do colonizador puritano percebido no outro-estranho provoca em si desagrado ou
irritação. A expulsão do estrangeiro tem sido quase sempre a
solução doentia ou neurótica adotada para aplacar o ódio dos
poderosos aos deserdados e marginalizados. De maneira inconsciente,
esse idealismo retrógrado deve ter sido plantado no coração dos
que fugiram do Reino Unido para fundar nas terras da América do
Norte uma Nova Jerusalém só para eles. A Psicologia mostra que
esses recalques ficam submersos nas camadas mais profundas da psique
por décadas ou séculos. Mas, um dia, encontrando ocasiões
propícias, o que foi recalcado sai de sua latência e volta à tona
sob a forma sutil ou mesmo declarada de intolerância.
Carl Jung, depois dos
45 anos de idade, já enjoado de tanto estudar ou analisar os
meandros da alma humana, resolveu viajar por diversas regiões do
mundo a fim de conhecer profundamente os diversos povos e suas
culturas. Enfim, compreendera que para tomar consciência de suas
particularidades nacionais de homem europeu branco, necessitava olhar
outros povos do lado de fora de sua própria nação (Suíça). Ao
realizar uma viagem ao Novo México onde habitava os índios Pueblos,
confirmou “o quanto estava aprisionado ou fechado, mesmo na
América, na consciência do homem branco. […] Aprendeu de certo
modo a ver com outros olhos e a observar o que é o 'homem branco'
quando está fora de seu próprio medo”.
A narrativa do encontro de Jung
com Ochwiay Biano, chefe dos pueblos, diz muito sobre o
modo como os ancestrais dos mexicanos viam o homem branco americano
revestido de sua empáfia ou ar de superioridade. O psiquiatra suíço
pediu para Ochwiay fazer uma descrição do homem
branco que habitava a terra acima de sua fronteira —
a intitulada Nova Inglaterra:
“Veja”, disse o
índio pueblo, “como os brancos têm um ar cruel.
Têm lábios finos, nariz em ponta, os rostos sulcados de rugas e
deformados. Os olhos têm uma expressão fixa, estão sempre buscando
algo. O que procuram? Os brancos sempre desejam alguma coisa, estão
sempre inquietos, e não conhecem o repouso. Nós não sabemos o que
eles querem. Não os compreendemos e achamos que são loucos!”
Perguntou então o professor Jung
por que ele pensava que todos os brancos eram loucos. Ochwiay,
prontamente respondeu: “Eles dizem que pensam com suas cabeças.”
— “Mas naturalmente! Com o
que pensa você?” ─
retrucou Jung, admirado.
― “Nós pensamos aqui”
― disse ele, indicando o coração.
Pela primeira vez na minha vida,
disse o professor e psiquiatra (um dos fundadores da Psicanálise),
alguém me dera uma imagem do verdadeiro homem branco. Esse índio
encontrara nosso ponto vulnerável e pusera o dedo naquilo em que
somos cegos.
Jung, filho de pastor
protestante, se tornou um estudioso do fenômeno religioso. De sua
incursão pelo mundo da religião criou o conceito arquétipo,
presente em todos que praticam atos religiosos. Não resistindo a uma
abordagem do lado religioso do índio pueblo, perguntou-lhe:
― “O senhor acredita que suas
práticas religiosas sejam de proveito para todo o mundo?”. O
índio, com muita vivacidade, respondeu:
― “Naturalmente, se não o
fizéssemos o que seria do mundo?”. “E,
com um gesto carregado de sentido apontou o Sol”.
“Precisamos
sorrir, ainda que de puro ciúme, da ingenuidade dos índios e nos
vangloriarmos de nossa inteligência, a fim de não descobrirmos o
quanto nos empobrecemos e degeneramos. O saber não nos enriquece;
pelo contrário, afasta-nos cada vez mais do mundo mítico, no qual,
outrora, tínhamos direito da cidadania.” [Carl
G. Jung ― Memórias, Sonhos e Reflexões ― Editora Nova
Fronteira]
Por
Levi B. Santos
Um comentário:
Caro Levi,
Bem interessante as experiências e as conclusões do Jung.
Acredito que o "coração" e a "razão" precisam andar juntos. Se desenvolvemos somente um aspecto da inteligência, podemos nos desconectar de outros aspectos da realidade.
A grande dificuldade hoje é conciliar os compromissos do intelecto com o desenvolvimento de outras possibilidades. Tipo o homem abrir espaços em sua agenda para ter contatos com a natureza, as danças, atividades físicas saudáveis, espiritualidade, ter amigos, etc
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