29 fevereiro 2008

O MARAVILHOSO DESPERTAR DA SEXUALIDADE




Lembro-me bem, era um meninote magro muito introspectivo, apelidado pelos adultos de casa como o “sonso” ─, aquele que dava o bote e escondia as unhas. Tinha então meus nove ou dez anos de idade, quando certas noites, era invadido por sonhos libidinosos. No dia seguinte, acordava então com um misto de deslumbrado prazer e ao mesmo tempo, sentimento de culpa. Toda aquela gama de sentimentos provinha do fato de ter experimentado algo que, para mim e para os meus pais, se revestia de um sentido impudico, luxurioso, pecaminoso e imundo. Cedinho, levantava-me do leito rápido em direção ao banheiro, ruborizadamente envergonhado, escondendo com as mãos tímidas, as marcas da descarga seminal instintiva e inocente, derramadas em brumas inculpadas que marcavam indelevelmente o velho e surrado pijama. Lá no antiquado e escorregadio banheiro de paredes lodosas tentava com muito esforço apagar as manchas endurecidas no tecido, usando água e um pequeno pedaço de sabão.

Naqueles sonhos estava a minha verdade oculta. Através deles aprendi a me conhecer tal como era, a despeito de todos os disfarces que usava perante os que me cercavam de cuidados.

Os sonhos eram tão reais e nítidos que me deixavam com o coração batendo apressado, como a querer sair pela boca, rolando pelas calhas do corpo, numa procura ingrata por algo que deixasse espaçar os arquejos mais arfantes. Sentia-me vil, sentenciado a uma culpa eterna, pois no meio em que vivia, os conceitos sobre um menino da minha idade, era de que deveria comportar-se como uma criança devota e crente exemplar. Perguntava para mim mesmo, quando das noites tórridas vividas sob meus tenros lençóis: “O que me levava a sentir tanta coisa junta, saindo aos borbotões, sem que eu tivesse o mínimo domínio?” Era como uma enxurrada de verão, levando de roldão a parede sólida que represava o grande e profundo lago dos desejos mais selvagens e inconfessos.
Naquela época eu já vinha treinando inutilmente reprimir certos desejos tidos como ilícitos, isto, nos momentos de vigília, enquanto os guardas do porão do meu pueril cérebro, não dormitavam. Porém, nos momentos de sono em que a consciência encontrava-se entorpecida e embalada pelos sopros cálidos de Morfeu, o sonolento e truculento vigia encarregado da “censura”, deixava de barrar os impulsos vindo do inconsciente, e os desejos mais recônditos escapavam como que se escoando pelas frestas das portas, derramando e inundando meu mundo dos desejos. O guarda temível que guarnecia a consciência, e que durante o dia oferecia uma brutal e ferrenha resistência, admitia nas trevas da noite, em sua sala de visitas, impulsos ocultos, antes inaceitáveis. E, à medida que a “censura” relaxava durante o sono, os desejos sexuais buscavam expressão através dos prazerosos sonhos. E que sonhos eram aqueles!
Após os inconfessáveis sonhos, me sentia uma espécie de lixo humano, matéria descartável, resto de algum detrito que algum dia foi gente. E nestes momentos me perguntava: “Será que o mesmo acontecia com os meninos do meu círculo de amizade?”. Apesar de tentar várias vezes, nunca tive a coragem de tratar desse assunto com os meus coleguinhas, sempre vencido pelo “pathos” virulento do tabu inculcado pelos meus pais.
Os conselhos de minha mãe estavam bem vivos em minha memória: “Não se junte com os moleques de rua!”. “Não brinque com essa ‘catrevagem’!”
Um belo dia, tive a oportunidade de ouvir um sujeito que fazia parte dos excluídos do nosso meio. Eu estava à cerca de uns cinco metros de distância do grupo dos supostos “moleques”. Um deles descrevia um sonho parecido com o meu. Eu entendia perfeitamente ele designar os termos para aquilo que eu teria sentido na noite do meu sonho. Cheguei-me mais um pouco, ávido por reconhecer ali um “igual”, um menino que como eu, padecia daquele mal noturno tão torturosamente humilhante, e escondendo-me atrás de uma palmeira, esbugalhando os olhos famintos e abrindo bem os ouvidos, pude escutar termos que para mim eram uma novidade, como: “tesão”, “esperma”, “gozo” ─ expressões essas que os meus pais com certeza reprovariam, mas lá no fundo eu sabia que eles não conseguiriam explicar de uma outra maneira.
O doloroso dilema entre abdicar do maior prazer carnal ou satisfazê-lo, me dilacerava, ante a ameaça de punição. Cambaleava assim entre estes dois elementos importantes: a culpa e a lei moral. Nos sonhos a autoridade maior era contestada, dando-me a liberdade subjetiva de deixar fluir o gozo pulsional contido. Com o tempo passei a desenvolver o que se chama na psicanálise, de REPRESSÃO dos desejos. Algumas vezes, o impulso era tão agressivo, que não tinha mecanismo de repressão que desse conta. A luta descomunal entre a moral e o mundo dos sentidos acabava pendendo sempre para o lado deste, como mais tarde pude aprender em Paulo, “o mal que não quero, este faço”. O desejo engatilhava a pólvora dos instintos mais passionais, e uma vez acionados não havia água que apagasse aquela fogueira, os ventos somente a atiçavam mais. Aliás, Machado de Assis disse certa vez que, assim como o vento apaga as velas, e açoita as fogueiras, assim acontece aos instintos aminalescos do homem.

A religião, por sua vez, foi durante certo tempo uma arma poderosíssima, que fez nascer em mim um antagonismo aos meus próprios sentimentos. Porém, nessa batalha, eu me quedava encarcerado pelas grades e os pesados grilhões do desejo, dependente das terríveis forças sexuais que pulsavam dentro de mim, e dos exércitos incansáveis da luxúria, que combatiam incessantemente para me refestelar com a gratificação carnal fluidificada na forma de prazer, e, portanto, eu não achava meio ou caminhos para poder me controlar. Somente mais tarde me dei conta de que talvez Oscar Wilde tivesse mesmo razão ao dizer que “não há outro jeito de livrar-se de certas tentações a não ser sucumbindo a elas”. A despeito de tudo, nunca contei nada aos meus pais, até porque nada eles poderiam fazer. Lembro-me do que disseram para mim, quando minha mãe estava prestes a ter um filho: “Você vai passar dois dias na casa de seu tio, para que a CEGONHA possa trazer um bebezinho pelo telhado da casa”. Tinha vontade de ficar para ver a chegada do enorme pássaro com o meu irmão suspenso no enorme bico, mas meus desejos tinham que ser reprimidos em função da vontade dos meus pais.
Desejar algo contra a vontade superior, era como ser tentado a roubar uma barra de chocolate; o que eu não podia negar, era que gostava mesmo de chocolate.
A única forma que encontrei para não me sentir tão culpado quando experimentava a avalanche de desejos e as borrascas mais tenebrosas das paixões que me solapavam a alma e o coração no início da adolescência , era imaginar que o meu Deus não era tão violento e incompreensível, a ponto de não entender as minhas vicissitudes. O tempo me fez ver, que a guerra travada entre este instinto poderosíssimo e a voz da autoridade moral e religiosa, devia ser amenizada pela conscientização de que, afinal, eu não era um anjo, e sim uma frágil criatura humana, como bem frisou o Apóstolo Paulo aos Romanos(7; 14): “Porque bem sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado”.

Chico Buarque, o grande ourives da palavra, uma vez escreveu num felicíssimo verso, “ou será que o deus, que inventou nosso desejo é tão cruel, mostra os vales onde jorram o leite e o mel, e esses vales são de Deus”. Hoje vejo, quando me refiro à repressão, que a psicanálise faz um alerta importante para que possamos nos sair bem dessa peleja entre o desejo carnal e a ética moral religiosa: “Queres que a tua vida seja um eterno sacrifício? Tenhas um Deus (Superego) carrasco”.
Como tenra criança, não podia compreender que a “libido” era algo fisiológico e não imoral. Antes de aprender que tudo isso fazia parte normal da existência humana, fui chicoteado psicologicamente quando cedia aos impulsos mais intensos e prazerosos nas longas noites de inverno.
A supressão ou repressão desses instintos naturais, pode até nos proporcionar um aparente refinamento exterior, mas não impede de nos fazer sofrer por dentro, quando lá no íntimo de cada um, uma avalanche de desejos está à espera de um arrebatamento (não o do apóstolo Paulo), que por alguns instantes, pode nos envolver numa grande maravilha trêmula e tremenda.
Escritores da maior estirpe se debruçaram sobre a complexa e paradoxal natureza humana. Não acharam outra solução, a não ser, a de ter que conviver sabiamente com as forças antagônicas que engendram a nossa alma.
Rilke escreveu: “Se meus demônios me deixassem, temo que meus anjos também fugissem.” O Poeta Olavo Bilac assim se expressou na estrofe final de um de seus poemas: “E, no perpétuo ideal que te devora / Residem juntamente no teu peito / Um demônio que ruge e um Deus que chora.”

As crianças de ontem, pais e avós de hoje, quer nas igrejas, quer nas escolas ou nos lares, ao que parece, ainda não acordaram para a necessidade de encarar como coisa absolutamente normal o desabrochar da sexualidade na criança. Ao invés de oferecerem suporte científico aos ávidos adolescentes, elucidando de uma forma não preconceituosa os sintomas da libido no seu nascedouro, permanecem calados (é mais cômodo), deixando este assunto “tabu” ser explorado pela MÍDIA, de uma forma agressivamente deturpada, para gáudio dos interessados em transformar a manifestação mais natural e maravilhosa do ser humano, em um produto à serviço do erotismo comercial desenfreado e sem nexo.



Crônica de Levi B. Santos, com adaptações de George Bronzeado
Guarabira, 29 de fevereiro de 2008







17 fevereiro 2008

ACERCA DE BALAÃO E SUA JUMENTA FALANTE



Um episódio emblemático na história bíblica do profeta Balaão ( Números 22), tem sido empregado de uma forma metafórica avessa no meio evangélico da ala mais fundamentalista, e ao que nos parece, merece uma análise minuciosa, a fim de que se possa colher algumas premissas reveladoras, resultantes da parcialidade do pensamento religioso grupal, nesse caso, revestido de matizes sutis de intolerância contra aqueles que são “estranhos no ninho”. O episódio a que remeto o leitor, diz respeito ao protesto da jumenta contra seu dono Balaão, uma passagem tão cantada e decantada exaustivamente por um número infindo de pregadores. A história conta que Balaão ia ao encontro do poderoso Balaque, negociar uma “profecia” de maldição sobre o povo de Israel. A certa altura da viagem o animal trava as patas e pára de andar, pois um anjo com uma espada na mão obstrue-lhe a passagem. Enquanto a burra via o anjo de Deus a sua frente a obstaculizar o caminho, o seu dono estava cego, ou noutra dimensão espiritual que o impedia de ver o óbvio, razão pela qual açoitava raivosamente o indigitado animal, forçando-o a quase se bater contra o mensageiro de Deus. Após ter sido espancado violentamente pela terceira vez, o quadrúpede deita-se debaixo do ignóbil e iracundo patrão, e é nesse instante que se dá o inusitado diálogo:

A jumenta reclama humildemente de Balaão ( Números 22 ; 28 à 33):

─ “Que fiz eu, que me espancaste estas três vezes?”

Balaão do alto de sua torpe e cega ignorância responde asperamente:

─ “Porque zombaste de mim; tomara que tivesse eu uma espada na mão, porque agora te mataria”!

Observando atentamente os fragmentos do texto até agora relatados, dá para imaginar que a jumenta foi tomada de um amor incomum pelo seu dono, quando assim falou:

─ “Porventura, não sou tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo em que fui tua até hoje? Costumei eu fazer alguma vez assim contigo?”

Balaão respondeu secamente: “Não”.

Pelo texto, depreende-se que só depois de ouvir e entender os sentimentos sinceros de sua incompreendida jumenta, é que Balaão abre os olhos e enxerga o anjo do Senhor com a espada desembainhada contra ele, forçando-o a prostrar-se sobre o chão.

A conversa que se segue agora, é sobre o acerto de contas do Anjo com Balaão.

─ “Por que já três vezes espancaste a tua jumenta? Eis que eu saí para ser teu adversário, porquanto o teu caminho é perverso diante de mim. Porém a jumenta me viu e já três vezes se desviou de diante de mim; se ela não se desviasse de mim, na verdade eu agora te mataria, e a ela deixaria com vida”.

Acredito que após esse inusitado acontecimento, Balaão saiu convicto de ter aprendido uma grande lição, a de respeitar e valorizar a sua “irracional” jumenta que o carregava nos lombos pela vida afora. De agora em diante, quando fosse realizar qualquer trabalho em nome de Deus, ele daria mais atenção às travadas de casco do seu animal, e não consideraria essa sua reação aparentemente rebelde, como sinal de menosprezo ou zombaria. Acredito, também, que depois dessa, ele passou a tratar os diferentes, os estranhos, os inferiores na escala hierárquica (simbolizado pela burra), com mais consideração e amor, ciente de que, apesar de serem portadores de uma outra linguagem, eram também criaturas de DEUS.

No processo analítico da metafora trazida pela história, toma-se como grande ensinamento, a cautela que o indivíduo deve ter quando ouvir algo diferente, incomum ou mesmo extraordinário na voz de um estranho aos seus costumes, para que não se incorra num erro grosseiramente recorrente, que é concluir veementemente o que já se tornou um jargão: DEUS ACABOU DE FALAR PELA BURRA DE BALAÃO!. A analogia nesse caso, vale a pena salientar, requer os significados simbólicos representativos dos três elementos terrenos, a saber: a jumenta, o profeta inconseqüente Balaão e o seu corruptor Balaque.

Demonstramos uma aversão inconsciente e atávica aos que estão fora do nosso estreito mundo metafísico, e quando achamos que esta pessoa estranha ao nosso meio falou algo divinamente inspirado, dizemos: A BURRA DE BALAÃO FALOU, sem atentar para o simbolismo dos outros personagens, Balaque e Balaão, cuja importância é fundamental no desenrolar do enredo histórico. O pré-conceito não permite que denominemos de “Burra”, aquele participante do mesmo grupo religioso que profetiza para nós, quando então dizemos em um outro tom: “Deus acaba de falar pelo nosso amado irmão”.

A dedução metafórica mais adequada para essa emblemática história não seria dar uma conotação pejorativa ao animal irracional, porque o irracional ali presente simbolizava simplesmente um estranho qualquer ao meio religioso do profeta, e que, apesar de servir apenas para levar cargas sobre os lombos, como um escravo, tinha mais sentimentos e entendimento que o seu violento e pegajoso dono.

A ambição extrema do insano profeta o elevou a uma altura tal que ele já não reconhecia os sentimentos dos que estavam sofrendo a sua volta. Levado pelo apetite da fama de ser oráculo do Senhor, terminou se bestializando, enquanto o animal irracional humanizou-se.

O que se passou nessa interessante história ainda é presente no mundo em que vivemos, quando num paradoxo chocante, as "burras" representadas pelos excluídos, surpreendem, livrando do extermínio os próprios encarregados de levar a palavra Divina. Os oráculos de ocasião, em virtude do envenenado olhar de empáfia, convertem-se em seres petrificados, sem afeição e sem alma.

O apóstolo Pedro em sua segunda epístola ( 2: 14 à16) fez esta interessante alusão, realçando a pertinente história do Velho Testamento para os dias atuais: “...engodando as almas inconstantes, tendo o coração exercitado na avareza, filhos da maldição; os quais deixando o caminho direito erraram seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que amou o prêmio da injustiça, mas teve a repreensão da sua transgressão; o mudo jumento falando com voz humana impediu a loucura do profeta”.

Após refletir sobre esta incisiva declaração do apóstolo Pedro, ninguém em sã consciência vai querer ouvir a burra falar em nenhum recinto, até porque ela só fala para Balaões.

E. Lund, prestigiado professor de Hermenêutica, mundialmente conhecido no meio evangélico, no primeiro capítulo do seu livro (já na 19ª edição) assim se expressa sobre a laboriosa arte da interpretação de textos sagrados: “Qualquer pregador que ignorar essa importante ciência, se encontrará muitas vezes perplexo, e cairá facilmente no erro de Balaão.


Ensaio por: Levi B. Santos

Guarabira, 16 de Fevereiro de 2008

11 fevereiro 2008

A FORTALEZA DE GIOVANNI



Giovanni era um oficial jovem que prestava serviço por horas a fio no posto de sentinela da velha fortaleza. Aquele local inóspito nunca fora invadido por tropas estrangeiras, no entanto, Giovanni armava-se como sempre à espera de um inimigo oculto, que poderia aparecer a qualquer momento. Durante anos viveu solitário, rodeado de pedras e terra seca esturricada. Doara a sua vida na vigilância contra um inimigo que nunca chegara a conhecer. Vivia enfim uma vida petrificada numa agenda monótona de dias terrivelmente iguais. Não se dava conta que ia envelhecendo dentro de uma concha silenciosa, numa espécie de obsessão disciplinar, castradora dos sentimentos mais puros e estranhamente reprimidos pelo medo imaginário que o deixava sempre à espreita de um estranho a invadir os seus domínios. Andava para lá e para cá, varando manhãs ensolaradas, tardes de ventania e noites gélidas, repetindo os mesmos gestos, marchando pelos mesmos caminhos, buscando com os olhos de assombração uma utópica imagem que pudesse afugentar com suas armas de guerreiro; que pudesse, afinal, demonstrar a sua valentia contra um inimigo que na relidade nunca veio. Vivia enfim numa esperança mórbida, na expectativa de uma batalha imaginária que poderia levá-lo a um destino de glórias.

Envelheceu o pobre Giovanni sem perceber que paulatinamente dissolvera os seus dias, os seus anos, numa repetição contínua de atos mecânicos, insossos, sem alegria, numa atmosfera de inexorável obsessão. E assim, congelado no tempo, não mais sabia se ainda estava vivendo ou se morrera. Renunciara a alegria de viver para obedecer de maneira fiel a um “rito” que o transformou em um autômato a serviço da Pátria.

Geovanni resumiu a sua vida na obediência cega a um traçado sem nexo, sem razão de ser. A profissão da eterna espreita de um inimigo o engessou num invólucro impermeável e estéril ao gozo, transformando a sua vida numa interminável expiação.

O que Geovanni não sabia, era que durante toda a sua infância se sentira culpado ao quebrar regras, sem que os pais soubessem. A culpa dentro dele assumira as feições de um monstro, de um inimigo. Erigiu então dentro do seu próprio ser uma FORTALEZA fundamentada sobre o “temor”, que se nutria das severas penitências pelas faltas cometidas. Passou toda a sua vida numa atmosfera austera e sinistra à espera de um inimigo, que nunca apareceu aos seus olhos, nem nunca poderia aparecer, pois era cego para ver dentro de si. Vivendo sempre uma expectativa de guerra, Geovanni envelheceu naquele posto, tentando expiar a sua culpa e, com obsessão inesgotável contra um ilusório inimigo, montava guarda, verificava diuturnamente as armas, preparava os canhões, limpava o telescópio, mantendo-se em vigília, arrebatado pelo que poderia aparecer no horizonte, sem nunca suspeitar que estivesse fiscalizando a sua própria sombra oculta nos porões do seu inconsciente.

Jó, o personagem bíblico, paradigma do sofrimento humano, quando abriu os olhos para dentro de si, entendeu que todo seu conflito e suas dores, não tinham Deus como causa. Enquanto era cego e não havia mergulhado no mar revolto e obscuro, que é o inconsciente, foi manipulado de toda forma nas mãos dos seus supostos amigos e “benfeitores”. Giovanni, em sua resistente indumentária, ao contrário de Jó, permaneceu refratário à luz que iria apontar uma outra fortaleza que deveria ser devassada. Na ânsia obsessiva em defender o Forte exterior, Giovanni inconscientemente estava protegendo um inimigo maior que se instalara nas profundezas de sua alma.




Ensaio por: Levi B. Santos. ( baseado em um personagem de Dino Buzzati)

Guarabira, 11 de Fevereiro de 2008

03 fevereiro 2008

TIMÓTEO - UM DOENTE DE FÉ NÃO FINGIDA




Não acredito que a razão e a fé ou a Ciência e a Religião estejam fadadas a serem eternamente entidades antagônicas. Tem que haver um meio termo, temos que recriar um terreno propício para que estas duas irmãs (razão e fé) possam dialogar, sem que nenhuma delas venha perder a sua particularidade ou identidade.


A Ciência, cujo trabalho de pesquisa tem como desiderato o fato de que para cada efeito existe uma causa determinante, tem como elemento sempre presente, a “dúvida”. Sendo assim, ela suspeita sempre daquilo que o homem intuitivamente denomina de “mistério”. O mistério revelado, explicado ─ deixa de ser mistério. Alguns religiosos acham que à medida que a Ciência desvenda mistérios, o campo da fé vai sendo minado, e o crente acostumado a acreditar que um determinado fato é intocável, perderá o estímulo, ao tomar consciência de que foi encontrada a “causa” daquilo que antes, para ele, era inexplicável. O Cientista, mesmo ao descobrir um medicamento para cura de determinado mal, não pára de trabalhar, pois é de sua própria natureza estar sempre pensando que no futuro uma outra substância mais potente deverá desbancar a que está na moda hoje.


Nos primórdios do Cristianismo em Alexandria, a primeira escola bíblica foi combatida com ferocidade, pois os partidários da fé e dos mistérios não admitiam em hipótese alguma a Santa Palavra ser objeto de estudo. O estudo, a investigação e o debate eram para eles coisas da vã filosofia, e não poderiam ser aplicadas às coisas “sagradas”. A História registra que Alexandria, sede da cultura da época, possuía o maior acervo de livros do mundo em sua majestosa biblioteca. Nos primeiros embates a razão foi à pique, pois os guerreiros da fé queimaram a quase totalidade dos livros ali existentes. Era para eles totalmente incompatível a convivência pacífica entre a fé e a razão.


A medicina do mundo antigo, muito rudimentar, estava a cargo dos feiticeiros, e as doenças eram em sua grande maioria consideradas como resultado de atuações demoníacas. Passados mais de dois mil anos do início da Era Cristã, os Psiquiatras e Psicanalistas que tratam as doenças da alma ou da mente, são ainda vistos como inimigos da religião. Tanto a religião como a Psiquiatria trabalham num mesmo campo, sendo os partidários da fé os mais renhidos e intolerantes guerreiros, os quais, não aceitam a análise científica das doenças da alma.


Dessa maneira foi criado um grande fosso que impediu, e ainda impede o intercâmbio entre as instâncias da Ciência e da Religião. O Apóstolo Paulo, falando sobre seu maior amigo e filho espiritual Timóteo, o definiu como sendo portador de uma Fé não fingida (II Timóteo 1: 05). Paulo não vacilou e nem se sentiu constrangido ou diminuído em sua fé, ao se fazer de médico, quando aconselhou Timóteo a não beber só água, mas, também um pouco de vinho devido as suas freqüentes enfermidades (I Timóteo 5: 23). Era assim que a Medicina daquela época tratava as doenças do Aparelho Digestivo, e Paulo vendo o sofrimento físico do seu mais amado amigo, não titubeou em ajudá-lo, fazendo-o da melhor maneira que estava a seu alcance naquele momento. É, portanto, inadmissível concluir que, só por esse fato, estes dois apóstolos tão dedicados na missão de expandir o Cristianismo tivessem fraquejado na fé, ao recorrer a este procedimento que para alguns era uma atitude pagã.


Na atualidade, deve soar estranho ao ouvido dos empedernidos defensores da fé, que o apóstolo da estirpe de Paulo tenha escrito essa parte do final da segunda carta a Timóteo: “[...] quanto a Trófimo deixei-o DOENTE em Mileto”. E a fé? ─ dirão os imediatistas dos espetaculosos milagres. Hoje, algumas seitas poderosas da mídia religiosa talvez diagnosticassem o caso de Timóteo, como de encostos ou maldições que deveriam ser urgentemente quebradas. Para estes, a fé não fingida que habitava em Timóteo não poderia ser a fé genuína que soluciona tudo num abrir e fechar de olhos ─ , de que se dizem autênticos representantes.


Parece-me que, o que falta para um frutífero diálogo entre Ciência e Religião é um pouco de bom senso e reflexão. Há pouco mais de setenta anos, dois grandes personagens da História faziam este intercâmbio de forma exemplar. Freud e o Pastor Pfister faziam parte do seleto grupo que fundou a Psicanálise. Trocaram maravilhosas correspondências durante trinta anos dentro de um clima de sincera amizade. As inúmeras cartas trocadas entre eles irradiavam um entusiasmo e um calor humano nunca visto entre um Pastor e um Cientista. O pastor Pfister assim descreveu sua passagem pela Psicanálise: “[...] Experimentei como a neurose altera a prática cristã do devoto. Os dogmas são monstruosamente ressaltados, transformando-se por vezes em fetichismo dogmático. Desta forma, de uma religião de amor, o Cristianismo transformou-se, talvez até na maioria das vezes em uma religião de angústia perante os dogmas”.


Que os modernos guias espirituais de hoje, sem querer arrefecer a fé de muitos, possam ter a humildade de proceder como o Apóstolo Paulo, que usou a medicina alternativa para aliviar as dores do seu maior amigo do peito, o qual, apesar de ser um homem de fé não fingida, convivia com enfermidades de natureza possivelmente gastroenterológicas. Doenças estas, diga-se de passagem, nunca consideradas como de origem demoníaca pela igreja primitiva.






Ensaio por: Levi B. Santos


Guarabira, 03 de Fevereiro de 2008