Um episódio emblemático na história bíblica do profeta Balaão ( Números 22), tem sido empregado de uma forma metafórica avessa no meio evangélico da ala mais fundamentalista, e ao que nos parece, merece uma análise minuciosa, a fim de que se possa colher algumas premissas reveladoras, resultantes da parcialidade do pensamento religioso grupal, nesse caso, revestido de matizes sutis de intolerância contra aqueles que são “estranhos no ninho”. O episódio a que remeto o leitor, diz respeito ao protesto da jumenta contra seu dono Balaão, uma passagem tão cantada e decantada exaustivamente por um número infindo de pregadores. A história conta que Balaão ia ao encontro do poderoso Balaque, negociar uma “profecia” de maldição sobre o povo de Israel. A certa altura da viagem o animal trava as patas e pára de andar, pois um anjo com uma espada na mão obstrue-lhe a passagem. Enquanto a burra via o anjo de Deus a sua frente a obstaculizar o caminho, o seu dono estava cego, ou noutra dimensão espiritual que o impedia de ver o óbvio, razão pela qual açoitava raivosamente o indigitado animal, forçando-o a quase se bater contra o mensageiro de Deus. Após ter sido espancado violentamente pela terceira vez, o quadrúpede deita-se debaixo do ignóbil e iracundo patrão, e é nesse instante que se dá o inusitado diálogo:
A jumenta reclama humildemente de Balaão ( Números 22 ; 28 à 33):
─ “Que fiz eu, que me espancaste estas três vezes?”
Balaão do alto de sua torpe e cega ignorância responde asperamente:
─ “Porque zombaste de mim; tomara que tivesse eu uma espada na mão, porque agora te mataria”!
Observando atentamente os fragmentos do texto até agora relatados, dá para imaginar que a jumenta foi tomada de um amor incomum pelo seu dono, quando assim falou:
─ “Porventura, não sou tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo em que fui tua até hoje? Costumei eu fazer alguma vez assim contigo?”
Balaão respondeu secamente: “Não”.
Pelo texto, depreende-se que só depois de ouvir e entender os sentimentos sinceros de sua incompreendida jumenta, é que Balaão abre os olhos e enxerga o anjo do Senhor com a espada desembainhada contra ele, forçando-o a prostrar-se sobre o chão.
A conversa que se segue agora, é sobre o acerto de contas do Anjo com Balaão.
─ “Por que já três vezes espancaste a tua jumenta? Eis que eu saí para ser teu adversário, porquanto o teu caminho é perverso diante de mim. Porém a jumenta me viu e já três vezes se desviou de diante de mim; se ela não se desviasse de mim, na verdade eu agora te mataria, e a ela deixaria com vida”.
Acredito que após esse inusitado acontecimento, Balaão saiu convicto de ter aprendido uma grande lição, a de respeitar e valorizar a sua “irracional” jumenta que o carregava nos lombos pela vida afora. De agora em diante, quando fosse realizar qualquer trabalho em nome de Deus, ele daria mais atenção às travadas de casco do seu animal, e não consideraria essa sua reação aparentemente rebelde, como sinal de menosprezo ou zombaria. Acredito, também, que depois dessa, ele passou a tratar os diferentes, os estranhos, os inferiores na escala hierárquica (simbolizado pela burra), com mais consideração e amor, ciente de que, apesar de serem portadores de uma outra linguagem, eram também criaturas de DEUS.
No processo analítico da metafora trazida pela história, toma-se como grande ensinamento, a cautela que o indivíduo deve ter quando ouvir algo diferente, incomum ou mesmo extraordinário na voz de um estranho aos seus costumes, para que não se incorra num erro grosseiramente recorrente, que é concluir veementemente o que já se tornou um jargão: DEUS ACABOU DE FALAR PELA BURRA DE BALAÃO!. A analogia nesse caso, vale a pena salientar, requer os significados simbólicos representativos dos três elementos terrenos, a saber: a jumenta, o profeta inconseqüente Balaão e o seu corruptor Balaque.
Demonstramos uma aversão inconsciente e atávica aos que estão fora do nosso estreito mundo metafísico, e quando achamos que esta pessoa estranha ao nosso meio falou algo divinamente inspirado, dizemos: A BURRA DE BALAÃO FALOU, sem atentar para o simbolismo dos outros personagens, Balaque e Balaão, cuja importância é fundamental no desenrolar do enredo histórico. O pré-conceito não permite que denominemos de “Burra”, aquele participante do mesmo grupo religioso que profetiza para nós, quando então dizemos em um outro tom: “Deus acaba de falar pelo nosso amado irmão”.
A dedução metafórica mais adequada para essa emblemática história não seria dar uma conotação pejorativa ao animal irracional, porque o irracional ali presente simbolizava simplesmente um estranho qualquer ao meio religioso do profeta, e que, apesar de servir apenas para levar cargas sobre os lombos, como um escravo, tinha mais sentimentos e entendimento que o seu violento e pegajoso dono.
A ambição extrema do insano profeta o elevou a uma altura tal que ele já não reconhecia os sentimentos dos que estavam sofrendo a sua volta. Levado pelo apetite da fama de ser oráculo do Senhor, terminou se bestializando, enquanto o animal irracional humanizou-se.
O que se passou nessa interessante história ainda é presente no mundo em que vivemos, quando num paradoxo chocante, as "burras" representadas pelos excluídos, surpreendem, livrando do extermínio os próprios encarregados de levar a palavra Divina. Os oráculos de ocasião, em virtude do envenenado olhar de empáfia, convertem-se em seres petrificados, sem afeição e sem alma.
O apóstolo Pedro em sua segunda epístola ( 2: 14 à16) fez esta interessante alusão, realçando a pertinente história do Velho Testamento para os dias atuais: “...engodando as almas inconstantes, tendo o coração exercitado na avareza, filhos da maldição; os quais deixando o caminho direito erraram seguindo o caminho de Balaão, filho de Beor, que amou o prêmio da injustiça, mas teve a repreensão da sua transgressão; o mudo jumento falando com voz humana impediu a loucura do profeta”.
Após refletir sobre esta incisiva declaração do apóstolo Pedro, ninguém em sã consciência vai querer ouvir a burra falar em nenhum recinto, até porque ela só fala para Balaões.
E. Lund, prestigiado professor de Hermenêutica, mundialmente conhecido no meio evangélico, no primeiro capítulo do seu livro (já na 19ª edição) assim se expressa sobre a laboriosa arte da interpretação de textos sagrados: “Qualquer pregador que ignorar essa importante ciência, se encontrará muitas vezes perplexo, e cairá facilmente no erro de Balaão.
Ensaio por: Levi B. Santos
Guarabira, 16 de Fevereiro de 2008
Um comentário:
Adorei o texto, de todos o que já li sobre o assunto foi o melhor!!
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