Giovanni era um oficial jovem que prestava serviço por horas a fio no posto de sentinela da velha fortaleza. Aquele local inóspito nunca fora invadido por tropas estrangeiras, no entanto, Giovanni armava-se como sempre à espera de um inimigo oculto, que poderia aparecer a qualquer momento. Durante anos viveu solitário, rodeado de pedras e terra seca esturricada. Doara a sua vida na vigilância contra um inimigo que nunca chegara a conhecer. Vivia enfim uma vida petrificada numa agenda monótona de dias terrivelmente iguais. Não se dava conta que ia envelhecendo dentro de uma concha silenciosa, numa espécie de obsessão disciplinar, castradora dos sentimentos mais puros e estranhamente reprimidos pelo medo imaginário que o deixava sempre à espreita de um estranho a invadir os seus domínios. Andava para lá e para cá, varando manhãs ensolaradas, tardes de ventania e noites gélidas, repetindo os mesmos gestos, marchando pelos mesmos caminhos, buscando com os olhos de assombração uma utópica imagem que pudesse afugentar com suas armas de guerreiro; que pudesse, afinal, demonstrar a sua valentia contra um inimigo que na relidade nunca veio. Vivia enfim numa esperança mórbida, na expectativa de uma batalha imaginária que poderia levá-lo a um destino de glórias.
Envelheceu o pobre Giovanni sem perceber que paulatinamente dissolvera os seus dias, os seus anos, numa repetição contínua de atos mecânicos, insossos, sem alegria, numa atmosfera de inexorável obsessão. E assim, congelado no tempo, não mais sabia se ainda estava vivendo ou se morrera. Renunciara a alegria de viver para obedecer de maneira fiel a um “rito” que o transformou em um autômato a serviço da Pátria.
Geovanni resumiu a sua vida na obediência cega a um traçado sem nexo, sem razão de ser. A profissão da eterna espreita de um inimigo o engessou num invólucro impermeável e estéril ao gozo, transformando a sua vida numa interminável expiação.
O que Geovanni não sabia, era que durante toda a sua infância se sentira culpado ao quebrar regras, sem que os pais soubessem. A culpa dentro dele assumira as feições de um monstro, de um inimigo. Erigiu então dentro do seu próprio ser uma FORTALEZA fundamentada sobre o “temor”, que se nutria das severas penitências pelas faltas cometidas. Passou toda a sua vida numa atmosfera austera e sinistra à espera de um inimigo, que nunca apareceu aos seus olhos, nem nunca poderia aparecer, pois era cego para ver dentro de si. Vivendo sempre uma expectativa de guerra, Geovanni envelheceu naquele posto, tentando expiar a sua culpa e, com obsessão inesgotável contra um ilusório inimigo, montava guarda, verificava diuturnamente as armas, preparava os canhões, limpava o telescópio, mantendo-se em vigília, arrebatado pelo que poderia aparecer no horizonte, sem nunca suspeitar que estivesse fiscalizando a sua própria sombra oculta nos porões do seu inconsciente.
Jó, o personagem bíblico, paradigma do sofrimento humano, quando abriu os olhos para dentro de si, entendeu que todo seu conflito e suas dores, não tinham Deus como causa. Enquanto era cego e não havia mergulhado no mar revolto e obscuro, que é o inconsciente, foi manipulado de toda forma nas mãos dos seus supostos amigos e “benfeitores”. Giovanni, em sua resistente indumentária, ao contrário de Jó, permaneceu refratário à luz que iria apontar uma outra fortaleza que deveria ser devassada. Na ânsia obsessiva em defender o Forte exterior, Giovanni inconscientemente estava protegendo um inimigo maior que se instalara nas profundezas de sua alma.
Ensaio por: Levi B. Santos. ( baseado em um personagem de Dino Buzzati)
Guarabira, 11 de Fevereiro de 2008
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