22 setembro 2016

Esquadrinhando Nossa Histórica Cordialidade






Recentemente, li vagarosamente o capítulo “O Homem Cordial” do clássico “Raízes do Brasil” Companhia das Letras edição histórica (2016) comemorativa dos 80 anos do primeiro lançamento (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. A leitura reflexiva sobre a cordialidade dos nossos antepassados evocou em mim o tempo em que a única forma de comunicação à longa distância se dava através das inesquecíveis cartas escritas à pena, com um tinteiro e um mata borrão ao lado. Bons tempos aqueles em que todo mundo, pelo menos nas correspondências, se mostrava cordial: é que a expressão saudações cordiais” era por todos colocada automaticamente no fecho ou final da carta. Existia, também, uma frase cliché ou modelo que erigíamos no começo da carta, antes de se entrar com todo o gás no assunto a ser tratado: “Espero que estas mal traçadas linhas a encontre gozando paz e saúde...”.

Hoje, dirigindo um olhar crítico para o passado, tenho a nítida impressão de que, por vezes, em minhas cartas, usei o termo “cordialmente...” de forma mecânica, como mecânico é todo o bordão que usamos sem nos deter sobre a etimologia ou o significado profundo e bipolar da palavra.

Segundo o escritor Cassiano Ricardo, um dos críticos do grande clássico da literatura brasileira que trata de nossas raízes culturais, o termo cordial não exprime só a polidez na abordagem do outro. O termo pode se referir a outro tipo de polidez ou bondade: “aquela outra bondade do 'faça o favor de entrar' a que se poderia chamar de bondade de sala de visitas: que encanta, mas brilha falso'” (“Raízes do Brasil” edição crítica)

Parece ter razão o crítico do conceito de “Homem cordial” da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Na ótica de Cassiano o termo “cordial”, como aquilo que parte do coração, tanto poderia revelar sentimentos de concórdia como os de inimizade.

O brasileiro quanto mais polido sabe tirar partido da própria bondade, e que esse seu recurso se poderia chamar de 'técnica da bondade'. Que essa bondade, no plano social, é o primeiro fundamento de nossa democracia. […]O emprego dessa técnica de bondade data do início de nossa formação biodemocrática. A catequese é, toda, o emprego da bondade como arma política” enfatiza Cassiano Ricardo.

No prefácio à terceira edição de “Raízes do Brasil” (1966), o crítico Antonio Cândido discorre sobre a mentalidade cordial do brasileiro descrita por Sérgio Buarque de Holanda:

O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez”.

O autor de “Raízes do Brasil” acentua o perigo que ronda o nosso “homem cordial” quando, ultrapassando os umbrais de seu círculo familiar, transfere seu “modus vivendi” para a esfera política do estado, por ele compreendida como uma extensão afetiva de seu aconchegante lar:

Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo.

Sobre a nossa suposta “cordialidade democrática”, afirma Sérgio Buarque de Holanda em seu antológico clássico:

A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. […] Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a grande massa do povo recebeu-as com displicência ou hostilidade”.

O cientista político e ex-presidente do IPEA, Jessé de Souza, em uma entrevista à Folha de São Paulo do dia 07 de agosto de 2016, quando inquirido sobre como avaliava o legado de Sérgio Buarque de Holanda por ocasião do aniversário de 80 anos de “Raízes do Brasil”, assim se expressou:

Sérgio Buarque construiu a interpretação do Brasil mais influente até hoje. Em grande medida ela advém de Gilberto Freire (1900 ― 1987), como a noção de identidade nacional baseada nos afetos e sentimentos supostamente trazida de Portugal. Cientificamente, a validade dessa interpretação é, no entanto, nula. E sua celebração até hoje mostra apenas a miséria de nosso debate acadêmico e, por consequência, de nosso debate político”.

Deitando um olhar pelo viés sócio-político-psicológico, alguns críticos entendem que o Homem Cordial, em pleno Brasil moderno de 2016, continua mais vivo do que nunca. Os espetáculos encenados nos últimos anos em nossa vilipendiada república confirmam os paradoxos da cordialidade sergiobuarqueana descrita há exatamente 80 anos. De tão atual, há quem advogue a mudança do título do clássico de nossa formação Raízes do Brasil para “Jeitinho Brasileiro”.

Como o arcabouço social dos novos tempos é o mesmo dos velhos tempos (sem tirar nem pôr), só nos resta repetir o famoso chavão que, inocentemente, usávamos para encerrar as cartinhas da década de 1960:

Cordiais Saudações,



Levi B. Santos
Guarabira, 22 de setembro de 2016

Site da Imagem: blogarama.com/education