11 maio 2015

No Tempo das Histórias de Trancoso





Registram os livros de História que o português, Gonçalo Fernandes Trancoso, com seu livro - “Contos e Histórias de Proveito e Exemplo” - escrito no século XVI, foi quem entre nós, pais e avós da geração antiga, inspirou as mirabolantes histórias sobrenaturais e aterrorizantes contadas nas calçadas das casas após o jantar, quando nem rede elétrica existia.

Os adultos e crianças nas noites enluaradas, sobre tamboretes rústicos de madeira comprados no meio da feira, participavam como atores/autores e ouvintes dos sensacionais contos. O progresso tecnológico responsável pelo aparecimento das novelas transmitidas pelo rádio, foi, aos poucos, afugentando os contadores das histórias de trancoso que antes se esparramavam pelo chão de tijolos a frente de suas residências. Engraçado é que naquela época ninguém sabia, nem se perguntava sobre a origem da palavra “trancoso”. Hoje, a televisão e a internet tomaram o espaço reservado ao criativo ato de contar histórias. As calçadas das casas, nas noites estreladas, agora, encontram-se praticamente vazias, quando muito, se veem dois ou três sentados em confortáveis cadeiras a dedilhar seu smartfone que, como dizem os cronistas atuais, tem o condão de aproximar os distantes e afastar os que estão perto.

Lembro de que naquele tempo, antes das dez horas da noite, já nos recolhíamos aos nossos leitos para esperar o sono chegar, ocasião em que o farto material das lendas e contos de arrepiar que absorvidos ouvíamos apresentava-se num louco intricado em nossos sonhos e pesadelos noturnos. Sonhávamos absurdidades, em tudo, parecidas com os contos de trancoso escutados no nosso pequeno teatro ao ar livre.

Tinha lá os meus dez ou doze anos de idade, quando formalizei a minha primeira biblioteca. Em casa, secretamente, em um canto fundo de um velho baú repleto de cortinados e toalhas cheirando a mofo, guardava com esmero muitos contos de trancoso escritos por Mário de Moraes na famosa revista da época – “O Cruzeiro”. Das edições velhas dessa famosa revista semanal, que eram usadas como papel de embrulho nas mercearias e bancos de feira, eu, disfarçadamente, arrancava a página de “A História Que Não Foi Contada”, de Mário de Moraes, para aumentar o meu acervo de contos fantásticos. O meu repertório de histórias de trancoso tinha sempre muita coisa tirada da pena de Mário de Moraes. Algumas histórias que eu recontava, por temor ou reverência, esforçava-me para não sair do script adotado pelo autor. Mas como quem conta um conto aumenta sempre um ponto, lá estava eu adicionando ou imiscuindo minhas fantasias, numa tentativa de tornar a estória mais cruel e risível para uma plateia sedenta de assombrações e “coisas do além”.

Tenham cuidado com a tal da reforma, pois na ânsia de jogar fora o que se considera imprestável, alguma coisa de importante pode parar no lixo. Foi o que aconteceu com uma reforma que inventaram de fazer em minha casa: visitando o velho baú de panos que cobriam os meus contos de trancoso, dei pela falta do acervo tão cuidadosamente escondido. Com certeza, o(a) reformador(a) dos cômodos do meu lar não deu o mínimo valor às tiras de papel que continham os maravilhosos contos de Mário de Moraes, destinando-as para outros inglórios fins. Minha já grande coleção de trancoso, com certeza, foi parar em algum
lugar menos nobre. É que naquela época, o papel higiênico era artigo de luxo. Nas cidades interioranas era comum o uso de pedaços de papel de revistas e jornais para a precária higiene pós-evacuação intestinal. O certo é que meu árduo trabalho de garimpagem nas revistas velhas já lidas e relidas de “O Cruzeiro” foi por água abaixo. Fiquei por um tempão fulo de raiva pela perda literária irreparável.

Quem sabe se ainda não recuperarei alguns contos de trancoso que foram raptados do meu esconderijo literário no fundo do velho baú de panos de minha mãe?

Uma alvissareira notícia: recentemente, vagando pela internet, descobri que Mário de Moraes (1925 2010) lançou seus melhores contos de trancoso pela Record, em 1968 com o mesmo título da página que assinava em “O CruzeiroA Reportagem Que não Foi Escrita”. Além deste livro (que se encontra esgotado nos sebos e livrarias do país) o exímio autor, que com seus causos estrambóticos sabia, como ninguém, deixar todos de cabelos em pé, publicou outras obras memoráveis, como: “Amor no Cemitério e Outras Histórias de Assombrações”(1968); “O mundo me Ensinou a Pecar” (1976); “História de Um Cachorro Contada por Ele Mesmo” (1977).

Tenho saudades daquelas nobres noites em que as histórias de trancoso reinavam de forma absoluta nas casas simples de gente humilde com tamboretes nas calçadas, como Chico Buarque, de forma poética, tão bem definiu em sua antológica canção.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 11 de maio de 2015

3 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Show de bola! Muito bom, Levi, trazer-nos essas preciosas lembranças do passado que as gerações novas quase sempre desconhecem.

Lembro que meu falecido avô paterno, nascido em 1917, viveu numa fazenda na região do Vale do Paraíba, mais especificamente próximo à localidade de Formoso (SP), perto da divisa com o Estado do Rio de Janeiro. Na roça, os matutos gostavam de contar as suas apavorantes histórias e para tanto não faltava a "marvada" pinga... E acredito que, em sua época, o rádio ainda não tinha chegado por lá.

Hoje a convivência entre as pessoas tornou-se mais restrita e quase todo mundo fica é no computador ou no celular. Infelizmente, estamos com essa tradição praticamente perdida porque até no campo já chegou a luz elétrica e a internet. Mas desejo que com a tecnologia saibamos preservar nossa memória cultural.

Um abraço.

Levi B. Santos disse...

É isso aí, Rodrigão.

Naquele tempo existia o calor humano entre os convivas. Tenho saudades das noites em que contadores de causos e ouvintes se revezavam no EXERCÍCIO das palavras trocadas, num tête-à-tête que o mundo cibernético, hoje, com as suas inegáveis utilidades, concorreu para torná-lo frio e impessoal.

Lembrei-me agora de Ataulfo Alves que, em sua antológica canção “Meus Tempos de Criança”, chegou a constatar “que era feliz e não sabia” (rsrs)

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Pois é, Levi. Até que ponto não nos tornamos reféns dessa tecnologia permitindo que esta virasse o instrumento de domínio de nossas terríveis compulsões?! O que antes pensávamos que fosse proporcionar mais rapidez nas tarefas laborais e, consequentemente, mais tempo de convivência com a família e com os amigos, agora rouba as nossas horas de descanso. O trabalhador é a qualquer momento acessado por seus chefes e clientes, sendo que vamos também substituindo os contatos pessoais-presenciais, pelos virtuais. Até o álbum de fotografias que antes era guardado com tanto valor hoje foi substituído por um banco de imagens que cada qual armazena em seu computador ou no feissebuque. Realmente éramos felizes e não sabíamos.