Uma
das razões do mal-estar na pós-modernidade, creio eu, reside na tentativa inócua
de se ver livre da tradição dos pais, ante o bombardeio intenso de modelos e
orientações dirigidas para o gozo e o consumo a qualquer preço. Sobre essa
realidade que alicerça a sociedade contemporânea, a psicanalista e escritora, Maria
Rita kehl, em seu livro − “Sobre
Ética e Psicanálise” (pág. 13) ―, tem algo irrefutável a dizer: “Cada geração se constitui pelo
rompimento com o que ainda teria restado de “tradição” para as gerações
anteriores. Cada indivíduo se crê pai de si mesmo, sem dívida nem compromisso
com os antepassados, incapaz de reconhecer o peso do laço com os semelhantes,
vivos e mortos na sustentação de sua posição subjetiva.”
Foi
a leitura reflexiva que fiz do artigo escrito na revista Veja da semana passada ― “Devo
Educar Meus Filhos Para Serem Éticos?” ― do ensaísta Gustavo
Ioschpe, que me levou a relembrar a vida esforçada de minha mãe, que se
consumia em passar para os filhos os valores éticos que considerava a coisa mais
sagrada da vida.
Senti-me
na pele desse escritor, quando no seu instigante e fenomenal artigo, descreveu
como era a sua própria infância, e o sofrimento despendido para ser um sujeito
ético. Disse ele: “Meu pai era um obcecado por retidão, palavra, ética,
pontualidade, honestidade, código de conduta, escala de valores, e outros que
eram repetitiva e exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu certo. Quer
dizer não sei. No Brasil atual eu me sinto deslocado”.
O
articulista da VEJA se reporta a um trecho emblemático de Hannah Arendt, em seu
livro “Responsabilidade e Julgamento”, que não poderia deixar de
replicá-lo aqui: “Tenho certeza de que os maiores males que conhecemos não se
devem àquele que tem de se confrontar-se consigo mesmo de novo, e cuja maldição
é não poder esquecer. Os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque
nunca pensaram na questão”.
O
velho dilema interno está também presente numa menção marcante de Kant:
“O desprezo
por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si próprio, muitas
vezes não funcionava, e a sua explicação era que o homem pode mentir para si
mesmo.”
O
desfecho desse antológico artigo publicado na revista VEJA, como o brado da letra no nosso Hino Nacional,
foi retumbante, e deve ficar muito
bem guardado por nós, pais e mães da
atualidade:
“Assim é que, criando
filhos brasileiros morando no Brasil, estou às voltas com um deprimente dilema.
Acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho para a vida. Essa é a
nossa responsabilidade: dar aos nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E acredito que a
ética e a honestidade são valores axiomáticos inquestionáveis. Eis aí o dilema: será que o melhor que poderia
fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na
cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a
serem escroques, mas poderia como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a
essas questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar com atrasos, não
insistir para que não colem na escola, não instruir para que devolvam o troco
recebido a mais...” [...]
O ceticismo
do jornalista chega a um ponto crítico, nesta citação: “Em última análise, decidi dar a meus filhos a mesma educação que
recebi de meu pai. Não porque ache que eles serão mais felizes assim ― pelo
contrário ―, nem porque acredite que, no fim, o bem compensa. Mas sim porque,
em primeiro lugar, não conseguiria conviver comigo mesmo, e com a memória de
meu pai, se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que ele me ensinou a
desprezar.”
As
palavras de Gustavo Ioschpe reverberaram profundamente em minha alma, ao
mostrar uma sociedade pós-moderna que de forma banalizada, evidencia um tipo de
“brasilidade” totalmente descolada do caráter ético.
Sabemos,
no entanto, que o dilema de ser ético em nossa colônia vem de longas datas. Rui
Barbosa, em um de seus maiores discursos no senado, já fazia ressoar esse
sintoma, que se tornou um paradigma em época de crises de credibilidade nas
relações dos homens com seus semelhantes:
“De tanto ver triunfar as nulidades; de
tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça; de tanto ver
agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a
rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”
Guarabira , 26 de setembro de 2013
Site da Imagem: lancesnuances.com
4 comentários:
Caro Levi,
Sou otimista quanto à ética. Nossa Marina Silva assim escreveu em seu artigo, conforme estou destacando:
"(...) a ética é base da sustentabilidade, espaço público e íntimo em que cada um encontra sua verdade e a segue ou a trai, ocultando-a sob uma consciência opaca." - Extraído de http://www.minhamarina.org.br/blog/2013/09/oficina-vazia/
Quando rompemos com a tradição, ficamos vulneráveis ao fracasso como sociedade e indivíduos. Podemos e devemos dialogar com a herança ética ancestral, dando a ela uma continuidade viva, atualizada, mais sensível às necessidades e à voz espiritual. Contudo, é perigoso quando um povo caminha pervertendo seus valores.
Mesmo num país como o Brasil, transmitir ensinamentos éticos aos nossos filhos seria a maior riqueza que um pai pode deixar. Significa preservar a sua vida, dar a ele condições de alcançar dias melhores e abrindo uma oportunidade para que a nossa descendência seja "cabeça" e não "cauda", como diz a Bíblia Sagrada. E aí, se ele se sentir "deslocado" será uma bênção. Melhor do que ser assimilado pela impiedade, não acha?
Vivemos dias difíceis com pais ensinando filhos a roubar e a usar droga. Tem crianças com menos de dez anos fumando o crack! Onde é que vamos parar? Entretanto, ama boa educação ética, principalmente se for de base bíblica, pode fazer grande diferença positiva.
Abraços.
A ética nessas terras de Dom João VI parece que é coisa rara, Rodrigo
Está bem vivo em minha mente o episódio dos PMs que conseguiram prender um traficante, e foram considerados heróis por não terem aceitado propinas para escondê-lo ou soltá-lo. A que ponto chegamos, de ser heroísmo recusar propina, quando isso deveria ser o normal entre nós!
Como bem disse Cristovam Buarque, em um discurso sobre a homenagem prestada nacionalmente aos policiais que não se corromperam:
Os céticos são os que passam a não acreditar mais, que é possível um país no qual ser honesto não seja um ato de heroísmo. Muitos estão céticos, e outros estão cínicos, são aqueles que antes diziam “rouba, mas faz; logo, é bom” e que hoje dizem “rouba, mas é um dos nossos; logo, não tem problema” ou aqueles que dizem “rouba, mas todos roubam, por que é que não vou roubar também?”. Isso é cinismo.
Interessante o posicionamento do Cristovam Buarque. Essa lógica do "rouba, mas é um dos nossos" parece ter viciado parte da esquerda brasileira.
Interessante o posicionamento do Cristovam Buarque. Essa lógica do "rouba, mas é um dos nossos" parece ter viciado parte da esquerda brasileira.
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