Apesar
de Sigmund
Freud ter resistido em associar a psicanálise ao judaísmo, o que
podemos notar, é que ressonâncias da educação fornecida por seu pai, Jacob
Freud ― profundo estudioso do Talmude ―, permeiam todo o seu pensamento
e suas idéias.
Mas
o que tem a ver o Talmude com a Psicanálise?
O
Talmude, tanto o de Jerusalém quanto o da Babilônia, tem um processo
interpretativo muito parecido com o usado por Freud. O psicanalista, Renato
Mezan, chega a afirmar em seu livro ―”Psicanálise,
Judaísmo, Ressonâncias” ― Editora Civilização Brasileira (pág. 153 -
154) ― que, “a psicanálise herdou do
judaísmo, nada mais nada menos do que a técnica de interpretação, simplesmente
transpondo o seu objeto do texto bíblico para o funcionamento psíquico. A
atenção prestada pelos talmudistas à letra do texto bíblico encontraria seu
correspondente na atenção prestada pelo psicanalista, nos mais íntimos detalhes
do discurso do seu paciente”.
A
maneira que o Talmude aborda o texto bíblico em seu nomadismo interpretativo
multifacetado, a psicanálise, igualmente, sem se deter na literalidade da
história do analisando, tem no vácuo do que não se encontrava dito na narrativa
do paciente o seu modus operandi.
Freud chocou
o mundo do seu tempo ao mostrar que o homem é interiormente ambíguo. Aquilo que
ele afirma como sua verdade consciente é paradoxal ao conteúdo do inconsciente
que jaz sob camadas profundas no seu aparelho psíquico. Enfim, a psicanálise, ao
explorar os sentimentos paradoxais que residem na alma humana, reflete o talmudismo
que, nas re-escrituras e re-interpretações dos sábios rabinos, revive um
movimento contínuo de desconstruções, onde o dito e o não dito aparentemente
contrários, coexistem harmonicamente.
A
escritora e professora de psicanálise da UFRJ, Betty B. Fuks, em seu
livro “Freud
e a Judeidade” ― Editora Zahar (pag 132 - 134), diz: “O Talmude, tanto quanto a Psicanálise, está
comprometido com a pluralidade de sentidos e a produção de pensamentos. [...] O que se vê, pois, é que a tradição
judaica de lembrar não consiste apenas e essencialmente na preservação de uma
herança ou em uma transmissão mecânica da memória, mesmo que, na aparência,
seja esta a impressão. Há uma dinâmica interpretativa no Talmude. A expressão
talmúdica, Zakhor significa fazer da
memória uma aventura de historicidade criativa
a partir de um conjunto de traços a serem re-escritos permanentemente a
cada geração, por todos os sujeitos, mas sempre individualmente e
diferencialmente. Em cada época, em cada geração, o leitor interpreta
subjetivamente aquilo que lhe é transmitido, preservando as estruturas
tradicionais da transmissão e assegurando-lhes continuidade”.
Tanto
o método talmúdico quanto o método psicanalítico comungam de um mesmo olhar:
ambas as instâncias reconhecem a relação do passado com o presente conjugadas
na história afetiva do indivíduo. Séculos
antes de Freud ler os sintomas, os
sonhos e os lapsos, os antigos talmudistas já praticavam o exercício de
permutar as letras do texto sagrado, segmentá-lo, introduzir espaçamentos, para
fazer emergir uma interpretação sempre outra, transformando por completo o
sentido do escrito ― Betty Fucs em
“Freud e a Judeidade” (pag. 132)
Na
observação dos seus pacientes, Sigmund Freud, fazia uma espécie de
exercício, em tudo, idêntico ao que faziam os estudiosos do Talmude, na medida
em que inter-relacionava de forma imbricada o tempo passado e o presente,
evidenciando que a escritura psíquica é composta de inscrições que se repetem e
se recriam durante o decorrer das épocas sucessivas da vida.
Segundo
Betty
Fucs, “foi na tradição da leitura
talmúdica que Lacan encontrou
referências para pensar o modelo de transmissão da descoberta freudiana. O Javé
de Lacan é um Deus habitado
pelas paixões humanas” ― escreveu o talmudista e psicanalista, Gérard
Haddad, em seu livro, “O Pecado Original da Psicanálise”.
Ao contrário do budismo, em que é
recomendado que se purifique das três paixões fundamentais ― o amor, o ódio e a
ignorância ― Javé não é desprovido
de nenhuma delas[...]. [...] A psicanálise, talvez não seja concebível como
nascida fora dessa tradição (hebraica). Freud
nasceu nela e, como sublinhei, insiste em que só tem propriamente confiança,
para fazer avançar as coisas no campo que descobriu, nesses judeus que sabem
ler há muitíssimo tempo, que vivem ― é o Talmude ― da referência a um texto,
afirmou Jacques Lacan, em seu seminário ― “O
Avesso da Psicanálise”.
O
fato é que ninguém pode negar que nessas duas instâncias (Talmude e
Psicanálise) sobrevivem o fascínio da escuta e a magia do falar contínuo de
palavras singulares aparentemente dúbias, mas percebidas como únicas para cada
ser humano. O Talmude e a Psicanálise apesar de possuir roupagens diferentes
têm em comum a genial arte de interpelar o presente do ser humano sem
descolá-lo do passado, como bem resumiu Renato Mezan, nessa frase:
“Trata-se
de abrir um espaço para pensar o lado obscuro e o terrível da natureza humana,
sem fazê-lo desaparecer, mas sem tampouco sucumbir a ele”.
Por Levi B.
Santos
Guarabira,
02 de outubro de 2013
3 comentários:
Muito bom o artigo, Levi!
Podemos dizer de certa forma que, em tempos antigos, fazia-se terapia na religião... Mas, de fato, como o conhecimento foi se ampliando e evoluindo, Freud e tantos outros pensadores judeus trouxeram para as ciências a maneira de pensar e de interpretar o mundo. Fantástico!
Abraços.
É isso aí, Rodrigão
No Talmudismo os contrários não se anulam. Antes, convivem harmonicamente.
Tal síntese no fundamentalismo religioso é impossível. (rsrs)
Concordo!
É uma pena que nos fundamentalismos religiosos, sejam cristãos ou até mesmo judaicos, haja intolerância ao contrário. Na ortodoxia cristã, há menos aceitação das posições contrárias quando tocam em determinados pontos que foram petrificados do que no judaísmo. Eis aí uma boa influência dos sábios do Talmude!
Abraços.
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