Fragmentos
de cerâmica Ateniense – usadas para contar votos nos processos
democráticos
Em
sua fenomenal obra “A Era do Imprevisto ─ A
Grande Transição do Século XXI”, Sérgio Abranches faz
referências a trechos de um emblemático diálogo entre dois
personagens míticos da Grécia antiga (berço da democracia).
Édipo e Creonte funcionam como elementos basilares
para compreensão e sustentação dos argumentos que o autor delineia
e aplica às formas de governo do mundo atual, em face de um futuro
de incertezas; não deixando, inclusive, de enfatizar que todo o
mandante, sem o contraponto da oposição, pode se transformar em um
tirano.
Uma
pequena parte do diálogo do excepcional dramaturgo grego, Sófocles,
abaixo replicada, retrata bem o antagonismo entre o detentor do poder
e aquele que se encontra sob o seu mando. O primeiro age imbuído do
desejo célere de fazer justiça, sem a profunda e devida reflexão.
Enquanto o segundo (subalterno), de forma mais argumentativa, tenta
buscar uma compreensão sobre a parte que lhe afeta de perto, sem
perceber que, inconscientemente, também anseia pelo populismo do
qual o outro é detentor.
Édipo
Rei inconformado ao perceber que seus desejos foram contrariados
por Creonte, exaure sua sentença:
― Não
quero teu exílio, quero a tua morte.
Creonte:
― Seria
justo se provasses a minha culpa. A retidão falta em tuas
decisões
Édipo:
― Quando
se trata de meus interesses, não.
Creonte:
― O
meu interesse também mereceria igual cuidado.
Édipo:
― Deves-me,
da mesma forma, obediência.
Creonte:
― Se
mandas mal, não devo.
Édipo,
apelando à turba, responde:
― Meu
povo! Meu povo!
Creonte
contesta, de imediato:
― Também
pertenço ao povo que não é só teu.
O
povo, que antes exaltava o Rei Édipo, aplaude agora o astucioso
Creonte, que lhe usurpou o trono, passando-lhe essa reprimenda:
― Não
queiras ser mais o mestre de todas as coisas. O poder que ganhastes
em outros tempos deixou agora de existir.
Uma
vez no Poder, Creonte age da mesma forma que o rei Édipo,
usando dos mesmos métodos de tirania. Ao invadir a esfera
do privado em um suposto nome do estado, de forma desastrada, Creonte
se corrompe ao interpretar a lei segundo seus interesses
particulares, abusando do poder ao condenar injustamente Antígona.
Na nascente Democracia Grega tudo funcionava como se cada eleito para
o posto máximo do Governo tivesse um tirano latente dentro de si, coberto por uma capa exterior (falsa) de virtuosismo. A psicologia,
depois de Freud, desnudou esse homem ao explicitar com clareza todo o
mecanismo psíquico de fundo paradoxal, que ainda hoje o escraviza na
pós-modernidade. Os poderosos, no entanto, continuam cegos para
aquilo que a psicanálise na modernidade conseguiu dissecar. Desde a
Grécia antiga os governantes no Poder estabelecem normas de conduta
a ser seguidas por todos do andar de baixo, mas na surdina, eles
mesmos, se consideram exceção à regra. Sob o manto da “igualdade
– fraternidade e justiça”, na atualidade, nunca exteriorizaram
de forma escancaradamente maléfica seus monstros interiores, que
destroem ou inutiizam toda retórica discursiva de cunho virtuoso.
O
dramaturgo Sófocles, antevendo o destino da capenga
democracia de Atenas, coloca palavras lapidares na boca de Creonte,
palavras que ressoam de forma mais dolorida em nosso sombrio tempo,
travando nossa língua de um amargor muito mais forte e cruel do que
aquele experimentado pelos filósofos no sonho democrático abortado
na Grécia antiga. Creonte, ao abrir os olhos para o óbvio
ululante, do fundo de seu ser, faz emergir uma insofismável verdade,
no final melancólico de seu enredo trágico:
― “Não
é possível conhecer perfeitamente um homem e o que vai no fundo de
sua alma, seus sentimentos e seus pensamentos mesmos, antes de o
vermos no exercício do poder”.
Para
mostrar que a democracia grega já nasceu capenga, o historiador
Luciano Cândido, em “O Mundo de Atenas”, cita
Tucídides: “O governo de Péricles foi democracia
apenas nas palavras. Há quem a chame de democracia e quem a chame de
outra maneira, cada qual de acordo com sua preferência, mas, na
verdade, é uma aristocracia com o apoio das massas”.
“Vejo
nessa ideia da força corruptora do poder não contestado, as duas
faces de Creonte na Trilogia de Tebas” (Sérgio Abranches)
Abranches,
em sua magistral obra, empreendeu uma profunda abordagem sobre a
Medida do Poder, trazendo para o presente o maniqueísmo da denúncia,
do impedimento, assim como do populismo que sempre grassou entre os
poderosos, desde os primórdios da civilização Grega. Na realidade,
esse sonho democrático (repleto de maquinações) ensaiado pelos
personagens míticos do dramaturgo Sófocles (400 a.C), ainda hoje,
se faz plenamente presente em todos seus aspectos. As profundas
mudanças e transições históricas globais (retrocessos) que
estamos a experimentar na atualidade, não nos deixam mentir.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
13 de dezembro de 2018
2 comentários:
Excelente texto e bem atual. Mostra o quanto oposição e situação são controladas pelos mesmos afetos fazendo com que os erros se repitam. Difícil haver mudanças enquanto não olharmos para dentro de nós. Um abraço e feliz Natal.
Que seria de nós se não existisse o outro para fazer o contraponto aos nossos argumentos?
Viva a Dialética que nos anima, Não é Rodrigão?
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