17 outubro 2018

É Tempo de Revisitar Freud em ― “Psicologia das Massas e Análise do Eu”





Não havia ocasião mais propícia para Freud se debruçar sobre o comportamento das massas em face do eu individual, que a do fim da Primeira Grande Guerra Mundial. Só em 1921 é que o mundo acadêmico da Europa pode, afinal, conferir seu livro “Psicologia das Massas e Análise do Eu”. Sem dúvida, foi desse mega-conflito mundial que o velho barbudo, conseguiu obter material de sobra para sua extraordinária obra que, ainda hoje, repercute nas hostes psicanalíticas referência para quem deseja dar um mergulho com profundidade no mundo psíquico e no ativismo ideológico que dele se origina.

Freud recorre a Gustave Le Bon, que o antecedeu no estudo da alma coletiva das massas. Ele achou por bem ressaltar (entre aspas) o que seu antecessor deixou escrito, e que faço questão de replicar, por entender que é de crucial importância para a compreensão do que acontece no momento, aqui, nas terras de D. João VI:

Escreveu Freud
Agora passo a palavra a Le Bon. Ele diz:

O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, seja semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. [...]Para compreender esse fenômeno, é preciso ter em mente algumas descobertas recentes da fisiologia. Sabemos hoje que um indivíduo pode ser posto num estado tal que, tendo perdido a sua personalidade consciente, ele obedece a todas as sugestões do operador que a fez perdê-la, e comete os atos mais contrários a seu caráter e costume. Ora, observações atentas parecem provar que o indivíduo, mergulhado há algum tempo no seio de uma massa ativa, logo cai em consequência de eflúvios que dela emanam num estado particular, aproximando-se muito do estado de fascinação do hipnotizado nas mãos do hipnotizador. […] A personalidade consciente se foi, a vontade e o discernimento sumiram. Sentimentos e pensamentos são então orientados no sentido determinado pelo hipnotizador. [...]Portanto, pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos”.

O que me levou a empreender essa rápida revisitação a uma das mais interessantes obras de Freud, foi exatamente o clima de histeria coletiva que por ora, divide o país em duas tribos antagônicas a se insultarem mutuamente.

Por sinal, na Folha de São Paulo de ontem (dia 16), um artigo de Vera Iaconelli (mestre e doutora em Psicologia pela USP e membro do departamento de psicanálise da Sedes Sapientiae), não nego, concorreu para me instigar a revisitar Freud em sua fenomenal obra, editada em meio a Segunda Guerra Mundial. O Pai da Psicanálise sustentava que o analista não deveria se engajar em tribos partidárias em suas renhidas lutas políticas. Seguindo essa linha freudiana, diz a doutora, em um momento de seu ensaio, sob o título: “Posição Política de um Psicanalista”:

Para o psicanalista pouco importa em que seu paciente deve votar. […] o paciente só fala de si mesmo, em infinitas versões. […] Nesse ponto a ética do analista é não julgar e permitir que o paciente escolha o que fazer com o que descobre de si. A sessão trata menos do encontro entre o paciente e o analista do que do encontro do paciente consigo mesmo, sustentado pela abstinência do analista. Se nosso trabalho se baseia no exercício diário dessa abstinência, como podemos vir a público repudiar um candidato e declarar nossa intenção de voto?
[…] Qualquer proposta política que propagandeie o uso do outro como bode expiatório daquilo que não queremos reconhecer em nós é antipsicanalítica e deve ser combatida como tal”.

O momento atual do “Nós contra Eles” não difere muito do tempo em que viveu Freud, como estudioso e perseguido que foi pelas elites científicas , sofrendo os efeitos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Quanto a esse último duro conflito que, em sua essência, envolveu “semitas X antissemitas”, para não ser morto, o fundador da psicanálise teve que fugir para Londres, onde, em exílio, viveu seus últimos dias. Foi lá na Inglaterra que, já cansado e gravemente enfermo, sem antes fazer algumas correções, traduziu para o inglês sua magistral obra, ainda hoje em evidência nos círculos científicos e universitários “O Futuro de Uma Ilusão”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 17 de outubro de 2018

3 comentários:

Rodrigo Phanardzis Ancora da Luz disse...

Boa tarde, Levi. Pode ser que, nesses mutáveis tempos de aplicativos de smartphones e achatamento do conhecimento, estejamos vivendo um outro tipo de tendência massificaste dentro da política. Porém, tenho minhas resistências a essa análise visto que, diferentemente do período entre guerras, temos hoje um enfoque maior no indivíduo. Haja vista as políticas de vendas das empresas quando se voltam para gostos personalizados. O que pode estar havendo seria um breve momento de identificação com o discurso teatral de um candidato que se apresenta como novo salvador da pátria, um filme que nós já assistimos nos anos de 1989 a 1992. Sem a solução dos principais problemas que afligem o cidadão, entre eles os da economia, é alta a possibilidade de haver uma decepção profunda em 2020

Rodrigo Phanardzis Ancora da disse...

Corrigindo, quero dizer massificante e não massificastes.

Concordo quanto a análise do nos contra eles já que a tribo dominante fez do PT o inimigo comum enquanto o Bolsonaro virou o fascista. Porém, independentemente da questão da massificação, há uma visão voltada mais para fora do que para dentro. Ninguém quer se perceber no outro

Levi B. Santos disse...

A parábola do JOIO e do TRIGO, que deveria ser interpretada como metáfora dos dois afetos antagônicos que existem dentro de cada ser humano, é levada para atacar o outro. Ao considerar que em seu coração só reside o TRIGO(o Bem), o JOIO (o mal), por um mecanismo psíquico de defesa, automaticamente, é projetado no OUTRO.
Está aí a raiz de todos os fenômenos reolucionários de massa, caro Rodrigo.