28 maio 2017

Clarice, Caetano e Marília Pera ― Entrelaçamentos





Na atualidade não há como negar a existência de um forte entrelaçamento entre a Literatura e a Psicanálise. Uma instância não vive sem a outra, pois a matéria prima que manejam é a mesma: a letra, que vem da fala ou do dito, dos lapsos, das crônicas, dos contos, dos sonhos, da poesia, dos desejos não realizados, enfim, da imaginação. Não foi à toa que a psicologia foi buscar na literatura os principais elementos metafóricos para formulação da Teoria do Inconsciente. As grandes obras de Freud, sem nenhuma dúvida, foram frutos da leitura reflexiva de um épico clássico ― “Édipo Rei” ― de Sófocles, especialmente destinado ao teatro.

A psicanálise parte da fala e da ausculta do sujeito, no intento de que afetos escondidos a sete chaves possam vir à tona. De maneira análoga, a literatura ou o ato de escrever, por sua vez, permite a vazão dos conteúdos latentes do inconsciente. Tudo isso demonstra com clareza que essas duas misteriosas instâncias são, na verdade, irmãs siamesas.

Comentando o conto “Mineirinho” “Clarice na Cabeceira” (Editora Rocco) escreveu Caetano Veloso: “Clarice Lispector teve um enorme impacto sobre mim”. Em 1959, quando ainda era um imberbe jovem de Santo Amaro na Bahia, ficara profundamente impressionado após ler o conto de Clarice,A Imitação da Rosa”.

Em 1968, um dos anos mais turbulentos da ditadura militar, Caetano e outros artistas exigiam do governador do Rio uma posição sobre o estudante Edson Luís assassinado de maneira covarde no restaurante universitário (Calabouço), ocasião em que, sorrateiramente, foi abordado por uma mulher: Sou eu, Caetano!” ― anunciou, Clarice Lispector, diante de um ainda tímido poeta, cantor e compositor da MPB.

O certo é que por essa época, as obras de cunho profundamente psicanalítico de Clarice Lispector inundaram as mentes dos artistas brasileiros, e serviram de fonte de inspiração para muitos, como foi o caso de Marília Pêra.

Segundo a psicologia de Carl Gustav Jung, “a Persona (máscara em latim) opera como mediadora entre o ego e o mundo externo; é um meio termo entre o indivíduo e aquilo que ele deveria ser”. No seu ensaio “Persona” Clarice, se reportando ao uso de nossas primeiras máscaras, em uma perspicaz auto-análise, assim escreve:

...os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara”. [...]Mesmo sem ser atriz nem ter pertencido ao teatro grego uso uma máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível.”

Bem lá no final de seu ensaio psicanalítico a autora conclui de forma magistral:

Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar. É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra ouvida de repente a máscara de guerra da vida cresta-se toda no rosto como lama seca, e os pedaços irregulares caem com um ruído oco no chão. Eis o rosto, agora nu, maduro, sensível quando não era para ser. E ele chora em silêncio para não morrer”.

O sujeito escolhe a sua máscara (ou sua máscara vem mesmo sem que ele a tenha escolhido?). É com ela que o indivíduo se apresenta no meio social; ela representa o que a pessoa é, não para si, mas para os outros. A coisa funciona de forma tão imperceptível que, às vezes, o sujeito chega a se confundir com o personagem que está representando.

Marília Pêra, a premiadíssima estrela do Teatro Brasileiro, fazendo a apresentação da antológica crônica “Persona” de Clarice Lispector, num texto profundamente analítico diz, bem ao estilo Junguiano:

É muito difícil ser o que se é. O que se é? Onde começa o fio dessa meada? Esse é um mistério da vida.
Somos o que papai e mamãe fizeram de nós. Ou vovô e vovó, titia, babá, professor e irmãos.
Depois livros, filmes, peças, melodias, novelas, hoje internet, nos moldam.
Cores que outros artistas pintaram em nós, eis o que se é.
Nunca outra vez nossa tela em branco?
Atores também são seres cheios de emoções e carências banais.
Por isso talvez fosse aconselhável que atores usassem máscaras, como no teatro antigo.
Porque, sem as máscaras, há o risco de mostrarmos ao público sentimentos que talvez não pertençam aos personagens, mas ao nosso cotidiano mundo, sem transcendência universal.”

A antológica letra de SAMPA mostra, mais do que tudo, a influência de Clarice Lispector nas composições de Caetano Veloso: Quando eu encarei frente a frente não vi o meu rosto” (Caetano). Como era de se esperar, no espelho da fria e cinzenta São Paulo, Caetano jamais poderia reconhecer o seu rosto primitivamente refletido no espelho de sua “terra-mãe”. Quem sabe se restos de um passado emitido pelos arquivos psíquicos secretos, do tempo em que o cantor e compositor baiano lia e refletia sobre os textos de Clarice, não estavam ali emitindo ressonâncias ante a nova e feia megalópole paulista? É que a mente apavora o que não é mesmo velho” diria Caetano, de forma metafórica e auto-biográfica, em sua imortal canção, antes de se tornar “Mutante”.

A letra de SAMPA, explicita que mais tarde, sem perder suas identidades, os novos baianos, num processo de lenta adaptação, passeariam no cruzamento da Ypiranga com a avenida São João, curtindo numa boa sua agradável garoa. No Ensaio “Os Espelhos”, Clarice, disserta sobre o espelhamento de um itinerante que mesmo diante de uma nova realidade, deixa transparecer “vestígios de sua própria imagem narcísica”.

O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem não percebeu o seu mistério”.

É que Narciso acha feio o que não é espelho” ― reagiria Caetano. O Mito de Narciso” remete essa expressão de Caetano em Sampa à sua mãe Liríope. “Por desconhecer a própria individualidade, Liríope não pode refletir seu filho Narciso, e este será carente em relação a seu próprio reflexo” (O Mito de Narciso Raíssa Cavalcanti Babel da Psicanálise)

É num pequeno trecho do profundo ensaio “Os Espelhos” que Clarice, numa veia analítica incomum, parece denunciar o “por quê” da estranheza de Caetano frente a fria selva de pedra paulista, tão diferente de sua “cidade-mãe” Santo Amaro da Purificação Bahia:

Vi o espelho propriamente dito. E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo”. “Não existe a palavra espelho (a velha Santo Amaro de Caetano – grifo meu) só espelhos”.

Por fim, em SAMPA, Caetano chega a percepção de que a “feia São Paulo” é mais um espelho entre outros, “com suas oficinas de florestas e seus deuses da chuva”.



Por Levi B. Santos
Guarabira, 28 de maio de 2017

2 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Ainda no primeiro grau, numa das séries correspondentes aos anos do segundo segmento do ensino fundamental, cheguei a ter contato com alguns textos de Clarice. Sem dúvida, foi uma escritora que muito me chamou s atenção por sua personalidade, observância da vida e história pessoal. Hoje vive-se na literatura um novo momento de redescoberta sobre ela, despertando o interesse de gerações que não a conheceram.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Quanto ao uso das máscaras, realmente há situações de sofrimento quando vivemos com elas ou sem. No fundo, fazemos escolhas por ocultar quem somos porque há uma necessidade por trás. Problema é quando não há uma justificativa para usá-las e ainda assim há uma insistência da pessoa em não querer assumir que é.