Na
medida em que evidencia um elemento comum às artes e à religião, uma recente afirmação do filósofo suíço, Alain de Botton, se presta
bem ao entendimento da fonte onde brotam os afetos paradoxais que
habitam a alma humana. Disse ele: “Tanto na religião como nas
artes há um elemento catártico”.
O
personagem Sócrates já definia o poeta como sagrado. Sagrado, por
ser incapaz de produzir se o entusiasmo não o arrastar e o fizer
sair de si mesmo. Paradoxalmente, é o mesmo Platão que distingue no
poeta um outro polo (o antagônico e demasiadamente humano), ao
declamar que o seu delírio é um sinal de posse demoníaca.
O
nosso poeta Olavo Bilac, por sua vez, fez uma síntese representativa
dos polos ambivalentes da alma. Num rasgo bem humano, descreveu
brilhantemente seu dualista coração:
“E
no perpétuo ideal que te devora/ residem juntamente no teu peito/ Um
demônio que ruge e um Deus que chora.”
O
poeta Ferreira Gullar que se definia como ateu, em seus versos, dizia
que em si existia uma parte desconhecida. Não importa o nome que se
dê a esse desconhecido. Mesmo que se venha nomear esse lado
desconhecido, ele será sempre um enigma. Não importa que, através
de uma racionalização defensiva, o poeta chegue a se declarar: “eu
sou
isso; ...sou aquilo”. Para além das respostas
racionais/reacionais, o que importa é que na ânsia de traduzir-se,
o poeta exprima em metáforas a dualidade de seus
sentimentos, como a que está presente nessa poética estrofe:
“Uma
parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente”
Em
outras palavras, Gullar talvez quisesse dizer: Uma parte de mim
é previsível. Outra parte de mim é desconhecida de
mim mesmo, por isso me surpreende.
Freud diria: uma parte de nós é consciente/ Outra parte de nós
é inconsciente. Jung diria: Uma parte de nós é
transparente/ Outra parte de nós é transcendente.
O
advento da psicanálise veio
demonstrar que a certeza de
que o homem é senhor de si
mesmo caiu por terra.
Abriu-se então o véu para
se ter acesso aos recônditos mais profundos da mente, e com isso, se
chegar a conclusão de que as ideias e pensamentos recalcados no
início de nossa formação biopsíquica continuam a participar de
nossa vida mental de adulto.
Hoje, sabe-se
perfeitamente que o homem das artes (principalmente
o poeta) em seus devaneios,
usa incessantemente o
material recalcado nas
profundezas abissais de sua
psique. As ideias que
passam pela cabeça do poeta
no
presente e levadas para o
porvir estão, na verdade,
atreladas a um passado indeletável.
Em vão, o artista consegue
tomar partido de um
dos lados ou pólos ambivalentes de sua alma. Ele será duplo
até o fim, pois grande parte do que fala e escreve e o motiva provêm
de um mundo ambíguo,
recalcado na infância.
Não
poderia deixar de aqui ressaltar que é
do poeta rotulado ateu, Fernando Pessoa, a mais humana e mais bela
narrativa que um cristão jamais ousou fazer sobre o menino Jesus,
digna de ser canonizada. (Vide
link: “A
Mais Bela História de Um Poeta Ateu”)
Conta-se
que o Poeta Mário Quintana não acreditava em Deus, mas não dizia
isso para não ofender a Nossa Senhora e ao Menino Jesus. Na verdade,
os versos de Quintana, com naturalidade e graça, mostram, mais que
tudo, elementos antagônicos de seu ser duplo: um mais vestido para
apresentação e outro simbolizado como o mais nu dos animais. No
poema ‒ “Crenças” ‒
ele explica o “por que” do
respeito aos sentimentos dos outros. Foi da lama de seus pensamentos
primevos ─ afetos adubados pelas
histórias religiosas contadas por seus pais ─,
que Quintana produziu preciosas metáforas sobre nossa natureza
dúbia. Afinal, é na poesia que a sujeira do barro e a pureza da
água que nos mata a sede, se juntam à elevada linguagem do “céu”.
O
religioso fundamentalista pode até se escandalizar com esse verso de
Quintana que reproduzo abaixo, mas duvido muito que cada um, lá
dentro, não perceba escondido ou quase em oculto, o tal porteiro
Glicínio ̶ personagem do
mundo pueril e mítico do poeta. Basta voltar a ser criança de novo
para, enfim, imbuído de coragem e humildade poder retirar do baú
das reminiscências infantis o material dissonante de que fomos
forjados. Depois, é só montar as peças, uma por uma, e estará
pronto, na imaginação, o reino encantado, onde heróis e vilões
coexistem, trocando de papéis ao sabor das circunstâncias.
“CRENÇAS”
Seu
Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.
É uma crença que ele traz da sua infância
Não o desiludas com teu vão saber,
Respeita-lhe os queridos enganos:
Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança
Tenha ela oito ou oitenta anos!
[Mário Quintana]
Levi
B. Santos
Guarabira,
07 de agosto de 2017
Um comentário:
Olá, Levi.
O que seria a poesia senão uma bela expressão do inconsciente humano sem que, na maioria das vezes, haja uma lógica racional capaz de conscientemente concluir sobre algo?
Penso que, apesar da ciência ter descoberto muito sobre o homem, talvez a experimentação poética seja algo que possa servir ainda de um maior aprendizado.
Abraço e ótima semana.
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