07 agosto 2017

A Alma Dúbia dos Poetas




Na medida em que evidencia um elemento comum às artes e à religião, uma recente afirmação do filósofo suíço, Alain de Botton, se presta bem ao entendimento da fonte onde brotam os afetos paradoxais que habitam a alma humana. Disse ele: “Tanto na religião como nas artes há um elemento catártico”.

O personagem Sócrates já definia o poeta como sagrado. Sagrado, por ser incapaz de produzir se o entusiasmo não o arrastar e o fizer sair de si mesmo. Paradoxalmente, é o mesmo Platão que distingue no poeta um outro polo (o antagônico e demasiadamente humano), ao declamar que o seu delírio é um sinal de posse demoníaca.

O nosso poeta Olavo Bilac, por sua vez, fez uma síntese representativa dos polos ambivalentes da alma. Num rasgo bem humano, descreveu brilhantemente seu dualista coração:

E no perpétuo ideal que te devora/ residem juntamente no teu peito/ Um demônio que ruge e um Deus que chora.”

O poeta Ferreira Gullar que se definia como ateu, em seus versos, dizia que em si existia uma parte desconhecida. Não importa o nome que se dê a esse desconhecido. Mesmo que se venha nomear esse lado desconhecido, ele será sempre um enigma. Não importa que, através de uma racionalização defensiva, o poeta chegue a se declarar: “eu sou isso; ...sou aquilo”. Para além das respostas racionais/reacionais, o que importa é que na ânsia de traduzir-se, o poeta exprima em metáforas a dualidade de seus sentimentos, como a que está presente nessa poética estrofe:

Uma parte de mim é permanente/ Outra parte se sabe de repente”

Em outras palavras, Gullar talvez quisesse dizer: Uma parte de mim é previsível. Outra parte de mim é desconhecida de mim mesmo, por isso me surpreende. Freud diria: uma parte de nós é consciente/ Outra parte de nós é inconsciente. Jung diria: Uma parte de nós é transparente/ Outra parte de nós é transcendente.

O advento da psicanálise veio demonstrar que a certeza de que o homem é senhor de si mesmo caiu por terra. Abriu-se então o véu para se ter acesso aos recônditos mais profundos da mente, e com isso, se chegar a conclusão de que as ideias e pensamentos recalcados no início de nossa formação biopsíquica continuam a participar de nossa vida mental de adulto. Hoje, sabe-se perfeitamente que o homem das artes (principalmente o poeta) em seus devaneios, usa incessantemente o material recalcado nas profundezas abissais de sua psique. As ideias que passam pela cabeça do poeta no presente e levadas para o porvir estão, na verdade, atreladas a um passado indeletável. Em vão, o artista consegue tomar partido de um dos lados ou pólos ambivalentes de sua alma. Ele será duplo até o fim, pois grande parte do que fala e escreve e o motiva provêm de um mundo ambíguo, recalcado na infância.

Não poderia deixar de aqui ressaltar que é do poeta rotulado ateu, Fernando Pessoa, a mais humana e mais bela narrativa que um cristão jamais ousou fazer sobre o menino Jesus, digna de ser canonizada. (Vide link: “A Mais Bela História de Um Poeta Ateu”)

Conta-se que o Poeta Mário Quintana não acreditava em Deus, mas não dizia isso para não ofender a Nossa Senhora e ao Menino Jesus. Na verdade, os versos de Quintana, com naturalidade e graça, mostram, mais que tudo, elementos antagônicos de seu ser duplo: um mais vestido para apresentação e outro simbolizado como o mais nu dos animais. No poema “Crenças” ele explica o por que” do respeito aos sentimentos dos outros. Foi da lama de seus pensamentos primevos afetos adubados pelas histórias religiosas contadas por seus pais , que Quintana produziu preciosas metáforas sobre nossa natureza dúbia. Afinal, é na poesia que a sujeira do barro e a pureza da água que nos mata a sede, se juntam à elevada linguagem do “céu”.

O religioso fundamentalista pode até se escandalizar com esse verso de Quintana que reproduzo abaixo, mas duvido muito que cada um, lá dentro, não perceba escondido ou quase em oculto, o tal porteiro Glicínio ̶ personagem do mundo pueril e mítico do poeta. Basta voltar a ser criança de novo para, enfim, imbuído de coragem e humildade poder retirar do baú das reminiscências infantis o material dissonante de que fomos forjados. Depois, é só montar as peças, uma por uma, e estará pronto, na imaginação, o reino encantado, onde heróis e vilões coexistem, trocando de papéis ao sabor das circunstâncias.

CRENÇAS”

Seu Glicínio porteiro acredita que rato, depois de velho, vira morcego.

É uma crença que ele traz da sua infância

Não o desiludas com teu vão saber,

Respeita-lhe os queridos enganos:

Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança

Tenha ela oito ou oitenta anos!
[Mário Quintana]
Levi B. Santos
Guarabira, 07 de agosto de 2017



Um comentário:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Olá, Levi.

O que seria a poesia senão uma bela expressão do inconsciente humano sem que, na maioria das vezes, haja uma lógica racional capaz de conscientemente concluir sobre algo?

Penso que, apesar da ciência ter descoberto muito sobre o homem, talvez a experimentação poética seja algo que possa servir ainda de um maior aprendizado.

Abraço e ótima semana.