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O desejo de transgredir uma norma ou uma ordem pré-estabelecida advinda de uma autoridade, persegue o homem desde os seus primórdios. Foi assim que aconteceu com nossos primeiros pais (Adão e Eva), que no jardim do Éden foram invadidos por este irresistível anseio de experimentar algo que não deveria ser tocado. A vontade de conhecer foi mais forte que o argumento da proibição legalizada. O primeiro casal da história bíblica não resistiu e cometeu o que seria a primeira transgressão.
A sede de investigar, de procurar a razão de tudo, passou a reger o homem, agora mortal e nu. O paraíso do deleite absoluto contrasta agora com a maldição do sofrimento, conseqüência de sua própria escolha. O viver agora passou a ser sinônimo de sofrer. Para amenizar a crueza de ser livre, restou-lhe uma lembrança daquele lugar de gozo, que como uma sombra o leva agora à utopia, à saudade e a esperança de que um dia seja restaurado aquilo que se perdeu. Daí por diante o desejo de transgressão, da ruptura dos contratos sociais, estimula esse homem a desafiar as tradições. Abraão na concepção de sua família e cultura, deve ter sido considerado um “transgressor”, por ter rompido laços de amizade, partindo para uma terra estranha a sua.
A transgressão no sentido de “transcender” foi se multiplicando dentro da História. Jacó transgrediu contra Esaú, Raquel transgrediu contra Lia e José transgrediu contra Judá. Jesus na concepção Judaica foi um transgressor, por ter traído a tradição religiosa. Já do ponto de vista do cristianismo, foram os seguidores do Judaísmo que traíram o Mestre. A questão: “traidor-traído” depende de onde se olha e de que lado se está. Deste modo, Cristo foi o Grande Herói do Cristianismo e ao mesmo tempo ─, transgressor dos valores culturais e religiosos do seu tempo. Aqui, o desejo transgressivo de romper com o “status quo” foi benéfico, pois ocasionou uma ruptura da tradição dos conceitos farisaicos da época, tido como imutáveis. As “boas novas” trazidas por Cristo, permitem no presente que nos transformemos constantemente pela renovação do nosso entendimento, de maneira que o “ser” de hoje não é mais o “ser” de ontem. Nessa renovação para entender o nosso próprio ser (evolutivo que é), transgredimos aquilo que considerávamos correto no passado.
O irresistível desejo de transgredir, em função de um bem maior, aconteceu com as filhas de Ló, que acreditavam que o mundo todo havia sido destruído com a hecatombe que ocorrera em Sodoma e Gomorra. Criam que não havia homens para dar continuidade à sua linhagem (Gênesis19:31); tiveram então a lucidez de embriagar o pai e manter com ele relações sexuais. Assim, as duas filhas de Ló engravidaram e deram a luz aos pais dos Moabitas e Amonitas. A transgressão aqui, não se configura como algo “imoral”, pois as suas filhas agiram daquela forma por se sentirem responsáveis pela continuidade da espécie. A semente da imortalidade, de certa forma, estava ali sendo transferida para os filhos vindouros, numa espécie de compensação para a maior das angústias, que é a “finitude humana”.
Estas duas mulheres da Bíblia (Tamar e Rute), conseguiram através de atos transgressivos restaurar a semente de Israel. Trajando-se de prostituta, Tamar, nora de Judá, o seduziu, gerando a Perez. Boaz que veio da descendência de Perez, foi por sua vez atraído pela moabita Rute (descendente da relação incestuosa de Ló com a filha). Dessa descendência, mais tarde, veio Davi. E assim, de transgressão em transgressão, a mulher tomou sobre si a responsabilidade pela preservação da linhagem da qual viria o Messias.
Passemos a tratar de outro tipo de transgressão, que tem como essência, o desejo de PODER conhecer o que era expressamente proibido ou intocável, numa reedição do que acontecera no Éden. O homem não mais atribui o que acontece em seu próprio ser, a uma força ou entidade vinda de fora, e assume os riscos e as conseqüências de extrair de si mesmo, a verdade científica. Agora, com o “status” de homem-científico, passa a investigar as suas próprias entranhas, ao penetrar no âmbito do sagrado templo feito pelas mãos de Deus. O que era sagrado e intangível passa doravante a ser esmiuçado em seus mínimos detalhes. O homem transgride aquilo que se tinha como “certezas prontas” e “verdades permanentes”, e, em seu lugar abre um novo campo de visão para substituir os dogmatismos ultrapassados.
Não se pode negar, que hoje, a humanidade não consegue sobreviver sem usufruir o néctar desse fruto proibido. A medicina desvendou mistérios e postulados considerados antes imutáveis. O “leproso” que estava amaldiçoado e sentenciado a morrer de forma lenta, perdendo aos poucos partes de suas carnes, numa mutilação macabra, hoje tem a sua cura efetuada em um ou dois anos de tratamento. Nos tempos de Abraão e Davi, quem em sã consciência poderia imaginar que um dia, os olhos, os rins, o fígado, o coração seriam trocados como simples peças de reposição? Aonde chegará esse insuperável desejo de conhecimento daquilo que está encoberto?
Há alguns meses admirei-me ao assistir um “vídeo”, que mostrava um homem com o seu crânio revestido por uma parafernália de fios e “sensores”, ligados a um monitor. Uma voz dizia para este homem que se encontrava deitado em uma espécie de túnel: “PENSE AGORA EM UMA LETRA DO ALFABETO”! Imediatamente aparecia no visor do monitor a letra pensada pelo paciente. Fiquei pasmo, perguntando a mim mesmo: será que a ciência está levando este insano “desejo transgressor” aos extremos de um dia poder ler os pensamentos?
Vemos tudo isso com um misto de temor e sobressalto. Será que à medida que a ciência evolui, os milagres tendem a ficar em segundo plano?
A verdade, é que todos nós, homens religiosos ou não, desfrutamos dos resultados colhidos pelo desejo transgressivo da ciência. Hoje estamos funcionando como uma balança: em um dos pratos colocamos o livro sagrado como regra de fé e no outro prato, colocamos nossas mezinhas e comprimidos, que nos vão aliviando o sofrimento pela vida afora.
Dizem: “a clonagem humana, hoje, é questão de tempo”; e os postulados éticos e morais vão sendo bombardeados pelo invencível desejo transgressivo de um dia criar o homem-robô, um ser sem o sopro de Deus ─, insensível e sem alma. Bancos de órgãos estão sendo montados. Já se pode escolher o filho que se quer ter: a cor dos olhos, a cor da pele, o tipo de cabelo. Doenças que iriam aparecer em idade avançada, hoje, são evidenciadas no feto, sendo convenientemente tratadas no interior do útero, através da manipulação dos genes afetados. As “células-tronco” –, que podem evoluir e dar origem a partes do nosso organismo, já são uma realidade. O mapeamento genético humano através do Projeto Genoma já foi seqüenciado. A próxima transgressão, talvez, seja o mapeamento da alma. A sobrevivência da nossa espécie está, como nunca, ao sabor das impensáveis e presunçosas descobertas científicas, que tanto podem beneficiar a preservação da raça humana, como podem acarretar perigos para o futuro da humanidade.
Lá de cima e em silêncio, o Grande Oleiro contempla este embate entre a razão e a fé, sabendo de antemão que a Ciência jamais vai restaurar a IMORTALIDADE PERDIDA.
O homem seduzido pelo poder do conhecimento ilimitado, luta e sofre, na tentativa de prolongar ao máximo sua vida de pobre mortal aqui na terra. Uma coisa ele não pode negar: lá no fundo do seu coração geme um desejo profundo de retornar ao PARAÍSO PERDIDO. A rebeldia do espírito da Ciência, mesmo rompendo as normas, padrões e paradigmas tidos por nós como sagrados, não consegue apagar a SAUDADE do Éden ─, sentimento este, que tem um efeito moderador no desenfreado ímpeto humano em desvendar mistérios acumulados por milhares de anos.
Ao levantar o véu que encobre o que se encontra oculto, o “homem científico” acaba nos deixando mais céticos. Sentimos, que ao transgredir determinadas tradições arraigadas em nosso ser, uma parte de nós se evapora, deixando-nos menos utópicos, nus e mais transparentes, é quando nos assoma o temor de que um dia a ciência revele com clareza as vilezas do nosso inconsciente.
Não devemos esquecer, que enquanto os mistérios alimentadores de nossa fé vão sendo paulatinamente desnudados, a vida vai perdendo o seu sentido e a sua graça, transformando-se em uma “novela”, cujo final previamente se conhece.
Ao ver os valores tradicionais postos em dúvida e sob investigação de modo irreversível, não posso esquecer de uma tia, que ainda hoje não acredita que o homem foi à lua. Demonstrando felicidade e fé inabalável, ela diz que é tudo “enrolada” ou propaganda enganosa, pois, Deus jamais iria permitir que o homem realizasse tamanha TRANSGRESSÃO. Sobre este tal “desejo transgressor” nem de longe ela quer ouvir falar.
Ensaio: por Levi B. Santos
Guarabira, 26 de Novembro de 2007