Era sempre naquele intervalo de tempo, entre o final do almoço e o início da sesta que, assim meio a esmo, surgia um tema para ele e sua velha e cansada mãe discutirem juntos, enquanto palitavam os dentes. Ultimamente, ele vinha sempre perguntando sobre fatos relevantes da história pregressa de seus pais, no intuito de estabelecer um paralelo entre a mentalidade das duas gerações. Porém, nesse dia foi ela quem lhe dirigiu os velhos e surrados conselhos que costumava desfiar em ocasiões de dificuldades no meio da família: “olhe meu filho, está na hora de você voltar para a igreja, e se entregar a Jesus. Esse mundo não tem nada mais a lhe oferecer. De uma hora para outra a gente vai embora dessa terra, e o que será de você, sem a certeza da salvação?”.
Nesse dia ele resolvera explorar o tema “salvação”, em conversa com a sua mãe. Após alguns segundos em silêncio, resolveu fazer a primeira pergunta, enquanto molhava a língua com a colherinha cheia do caldo grosso da salada de frutas grudada no fundo da taça. Respirou fundo e perguntou:
─ Como foi a sua salvação mãe, ou melhor, o que fez a senhora procurar a igreja?
─Ah, meu filho. Eu morava no sítio Várzea Grande, quando mais ou menos lá para as três e tanto da tarde, o mundo começou a escurecer. De repente, em pleno dia, as galinhas e os galos começaram a subir nos poleiros. Anoiteceu rapidamente, e eu ouvia os crentes todos alegres orando alto e dizendo que era o fim do mundo, era a vinda de Cristo, e quem não fosse salvo não iria para o céu. Meu filho, eu disse “perna pra que te quero”, e corri desabaladamente para o local onde os crentes estavam reunidos, gritando: “eu também quero ir com vocês, quero ser crente”. Fui me proteger debaixo do teto onde todos estavam unidos de mãos para cima em um só pensamento, aguardando só a hora de ser arrebatada. Depois de alguns minutos o dia foi se tornando claro de novo, e tudo ficou normal. Depois fiquei sabendo que tudo tinha sido obra do tal de “eclipse”.
O filho, no entanto, insiste diante da mãe, dizendo que ela não tinha ainda revelado o sentimento cristão que ocasionara a sua conversão, e ouve dela a frase óbvia:
─ Meu filho, não se faça de burro! É claro que foi o “medo”, que me fez tomar a decisão de ser crente. Eu nem precisei ouvir palavra nenhuma, para me tornar uma pessoa "salva". O medo do fim do mundo me fez correr para a igreja. Chegando lá eu disse: eu também quero ir para o céu junto com vocês. E estou aqui até hoje, graças a Deus.
O filho querendo suscitar na mãe uma maior reflexão acerca dos detalhes narrados em sua conversão, inquiriu-a dessa forma:
─ Quer dizer que o “eclipse” lhe salvou? E onde fica Jesus nessa história toda?
A mãe antevendo aonde o filho queria chegar, muda de assunto e fala em tom de repreensão:
─ Olhe meu filho, aí é onde está todo o seu 'atrapalho'. Você nesses seus estudos, tudo quer saber. - Sabe do que eu tenho medo?
─ Medo de que mãe?
─ De tanto tu estudar, ficar como o filho de Olegário, que leu demais e ficou doido.
A essa altura, ele sabia que não adiantava ir mais além. Afinal, sua mãe além dos 82 anos de idade, era hipertensa e cardíaca e, ele não devia puxar muito pelo seu juízo. Terminou a entrevista para evitar uma dor de cabeça na velha, e saíu para a “sesta” na velha rede do quarto de visita. Lá ele continuou com os seus botões a refletir sobre o tema “salvação”. Deu asas a imaginação, chegando à conclusão de que cada pessoa tem a sua maneira peculiar de relacionamento com Deus. As “boas novas” de salvação da sua mãe, a seu ver, tinha sido o aterrorizante “eclipse”, que a fez decidir-se através do medo. Ainda tão moça, passou a viver em função do seu maior anseio: a vida após a morte, o “céu” de delícias, sem dores, sem eclipses e sem medo.
Enquanto esperava o sono, balançando-se em sua rede na penumbra do quarto, o filho lembrara-se de um trecho do que dissera Cristo na sua filosófica e sábia oração, descrita assim no livro do evangelista S. João: “Ora, a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Ele entendia que nessa emblemática parte da prece dos Mestres dos Mestres, estava todo o esteio das “Boas Novas” do evangelho. Dessa forma, o gozo da “salvação” ─ a “vida eterna” ─ já seria experimentada “aqui e agora”, não se restringindo apenas a uma vida sem fim, após a morte.
Enquanto a sua mãe cantarolava na cozinha lavando os pratos e talheres, ele chegara à conclusão de que o mais enriquecedor seria, em vida, conhecer a mensagem salvadora, cuja essência não está atrelada a cataclismos como eclipses, terremotos e outros vendavais. A condenação eterna, essa sim, seria ter que continuar nas trevas da ignorância, ou seja, continuar cego para o conhecimento da Luz que está em Cristo.
Entre um cochilo e outro, forçando um pouco o ouvido, dava para ele ouvir o estribilho do hino que a sua mãe continuava a cantar, navegando num mar de louças e caçarolas em sua cozinha. Ele ouvia a sua vozinha fraca e um pouco desafinada dizendo assim bem no final da estrofe: "Aqui na terra nada mais almejo. A vida eterna eu terei lá no céu".
Ao escutar o estribilho do saudoso hino repetidas vezes, chegara a pensar que sua mãe ainda continuava a viver na escuridão do eclipse solar de sua mocidade, mas depois entendeu que "Salvação", "Vida Eterna" e "Condenação Eterna" tinham conceituações que realmente não encaixavam no entendimento dela.
Pressentindo que a linguagem de sua mãe era outra, ele decidiu sensatamente não tocar mais no assunto. Sabia de antemão que ela tinha outros valores diferentes dos seus; certamente, em sua relação simbólica com o Divino, o medo do fim do mundo transmutado no fatídico "eclipse" fora a causa de sua "redenção". Onde entraria aí a "salvação pela graça" , ele não tinha a menor idéia. Refletindo melhor, entendeu que não adiantava questioná-la, ainda mais sabendo-se que a multiface de Deus é infinita, e cada um tem o céu que imagina, em conformidade com o velho ditado: "em cada cabeça um mundo".
Ensaio por: Levi B. Santos
Guarabira, 24 de Outubro de 2008
Nesse dia ele resolvera explorar o tema “salvação”, em conversa com a sua mãe. Após alguns segundos em silêncio, resolveu fazer a primeira pergunta, enquanto molhava a língua com a colherinha cheia do caldo grosso da salada de frutas grudada no fundo da taça. Respirou fundo e perguntou:
─ Como foi a sua salvação mãe, ou melhor, o que fez a senhora procurar a igreja?
─Ah, meu filho. Eu morava no sítio Várzea Grande, quando mais ou menos lá para as três e tanto da tarde, o mundo começou a escurecer. De repente, em pleno dia, as galinhas e os galos começaram a subir nos poleiros. Anoiteceu rapidamente, e eu ouvia os crentes todos alegres orando alto e dizendo que era o fim do mundo, era a vinda de Cristo, e quem não fosse salvo não iria para o céu. Meu filho, eu disse “perna pra que te quero”, e corri desabaladamente para o local onde os crentes estavam reunidos, gritando: “eu também quero ir com vocês, quero ser crente”. Fui me proteger debaixo do teto onde todos estavam unidos de mãos para cima em um só pensamento, aguardando só a hora de ser arrebatada. Depois de alguns minutos o dia foi se tornando claro de novo, e tudo ficou normal. Depois fiquei sabendo que tudo tinha sido obra do tal de “eclipse”.
O filho, no entanto, insiste diante da mãe, dizendo que ela não tinha ainda revelado o sentimento cristão que ocasionara a sua conversão, e ouve dela a frase óbvia:
─ Meu filho, não se faça de burro! É claro que foi o “medo”, que me fez tomar a decisão de ser crente. Eu nem precisei ouvir palavra nenhuma, para me tornar uma pessoa "salva". O medo do fim do mundo me fez correr para a igreja. Chegando lá eu disse: eu também quero ir para o céu junto com vocês. E estou aqui até hoje, graças a Deus.
O filho querendo suscitar na mãe uma maior reflexão acerca dos detalhes narrados em sua conversão, inquiriu-a dessa forma:
─ Quer dizer que o “eclipse” lhe salvou? E onde fica Jesus nessa história toda?
A mãe antevendo aonde o filho queria chegar, muda de assunto e fala em tom de repreensão:
─ Olhe meu filho, aí é onde está todo o seu 'atrapalho'. Você nesses seus estudos, tudo quer saber. - Sabe do que eu tenho medo?
─ Medo de que mãe?
─ De tanto tu estudar, ficar como o filho de Olegário, que leu demais e ficou doido.
A essa altura, ele sabia que não adiantava ir mais além. Afinal, sua mãe além dos 82 anos de idade, era hipertensa e cardíaca e, ele não devia puxar muito pelo seu juízo. Terminou a entrevista para evitar uma dor de cabeça na velha, e saíu para a “sesta” na velha rede do quarto de visita. Lá ele continuou com os seus botões a refletir sobre o tema “salvação”. Deu asas a imaginação, chegando à conclusão de que cada pessoa tem a sua maneira peculiar de relacionamento com Deus. As “boas novas” de salvação da sua mãe, a seu ver, tinha sido o aterrorizante “eclipse”, que a fez decidir-se através do medo. Ainda tão moça, passou a viver em função do seu maior anseio: a vida após a morte, o “céu” de delícias, sem dores, sem eclipses e sem medo.
Enquanto esperava o sono, balançando-se em sua rede na penumbra do quarto, o filho lembrara-se de um trecho do que dissera Cristo na sua filosófica e sábia oração, descrita assim no livro do evangelista S. João: “Ora, a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Ele entendia que nessa emblemática parte da prece dos Mestres dos Mestres, estava todo o esteio das “Boas Novas” do evangelho. Dessa forma, o gozo da “salvação” ─ a “vida eterna” ─ já seria experimentada “aqui e agora”, não se restringindo apenas a uma vida sem fim, após a morte.
Enquanto a sua mãe cantarolava na cozinha lavando os pratos e talheres, ele chegara à conclusão de que o mais enriquecedor seria, em vida, conhecer a mensagem salvadora, cuja essência não está atrelada a cataclismos como eclipses, terremotos e outros vendavais. A condenação eterna, essa sim, seria ter que continuar nas trevas da ignorância, ou seja, continuar cego para o conhecimento da Luz que está em Cristo.
Entre um cochilo e outro, forçando um pouco o ouvido, dava para ele ouvir o estribilho do hino que a sua mãe continuava a cantar, navegando num mar de louças e caçarolas em sua cozinha. Ele ouvia a sua vozinha fraca e um pouco desafinada dizendo assim bem no final da estrofe: "Aqui na terra nada mais almejo. A vida eterna eu terei lá no céu".
Ao escutar o estribilho do saudoso hino repetidas vezes, chegara a pensar que sua mãe ainda continuava a viver na escuridão do eclipse solar de sua mocidade, mas depois entendeu que "Salvação", "Vida Eterna" e "Condenação Eterna" tinham conceituações que realmente não encaixavam no entendimento dela.
Pressentindo que a linguagem de sua mãe era outra, ele decidiu sensatamente não tocar mais no assunto. Sabia de antemão que ela tinha outros valores diferentes dos seus; certamente, em sua relação simbólica com o Divino, o medo do fim do mundo transmutado no fatídico "eclipse" fora a causa de sua "redenção". Onde entraria aí a "salvação pela graça" , ele não tinha a menor idéia. Refletindo melhor, entendeu que não adiantava questioná-la, ainda mais sabendo-se que a multiface de Deus é infinita, e cada um tem o céu que imagina, em conformidade com o velho ditado: "em cada cabeça um mundo".
Ensaio por: Levi B. Santos
Guarabira, 24 de Outubro de 2008