Em minhas conversas com meu amigo “X”, tenho sempre batido numa tecla: a de que aquilo que se pensava no passado como parte da própria vida mental humana constituída por percepções e sentimentos considerados ou como coisas sobrenaturais e estranhas ao EGO, hoje, não mais são atribuídas ao mundo externo, mas entendidos como fenômenos que se originaram na própria psique.
O meu amigo “X”, em uma das cartas a mim endereçadas falou-me de sua vivência de igrejeiro, e a conclusão a que tinha chegado recentemente, é a de que a religião é uma ilusão, ao mesmo tempo em que fazia uma ressalva: a de que não chegara a assimilar essa coisa de “sentimento oceânico” ou sensação de algo ilimitado que eu lhe havia falado tempos atrás. Certa vez, lembro-me bem, ele falou veementemente que, “o crente só é crente devido a promessa de uma recompensa”.
Uma vez, cheguei a refletir silenciosamente, ante o argumento muito forte que ele usou, quando me disse: “talvez o crente seja um mercenário, ‘amando’ e ‘servindo’ a Deus só para ser recompensado por Ele”. Intuitivamente, talvez, estivesse querendo que eu compreendesse que o “amor” cristão não era desinteressado; ainda reforçou dizendo: “Não se ama a Deus, se ama o que ele tem para nos dar”.
E não é que cheguei a aplaudi-lo quando ele, numa tirada sensacional, falou-me que “eram os desejos do crente que talhavam um deus correspondente a sua vontade”. Quando o seu rosto cobria-se de rubor, eu já sabia o que ia sair de sua boca: “Deus não existe!” —, dizia de punho cerrado. Eu entendia a sua linguagem: durante o verdor dos seus melhores anos ele vivera deslocando o seu sentimento religioso para uma figura paterna antropomórfica, que na sua concepção habitava um outro mundo de paz e harmonia — um sucedâneo de seu pai natural, que nunca chegou a realizar por completo os seus desejos e suas fantasias de criança.
Numa ocasião em que dialogava sobre o “sentimento saudoso” de ansiarmos pela completude perdida, ele ficou bastante contrariado quando eu repeli as suas racionalizações, dizendo que, “embora uma pessoa rejeite toda a crença, dogma e ilusão religiosa, não significa que ela tenha anulado o sentimento nobre de ‘re-ligar-se’ a um éden utópico”. Mas o meu amigo não se dando por vencido retrucou imediatamente: “Não consigo identificar em mim esse tal ‘sentimento sublime!”.
O meu amigo demonstrava dificuldade em assimilar o que eu entendia como “sentimento religioso”. No entanto, esse afeto estava bem presente ali, nos momentos idílicos que passávamos trocando ideias. Eu sabia que o vazio ou “buraco” decorrente do primeiro desamparo experimentado, é que fazia surgir em nós o desejo de RE-LIGAÇÃO, que a instituição eclesiástica a qual ele antigamente pertencia, prometia para o fim dos tempos, desde que se submetesse a carregar fardos pesados da subserviência, sem questionamentos, geralmente apresentados como lei divina.
Tentei convencê-lo de que, às vezes, as pessoas esquecem que esse afeto de natureza primária existe, por exemplo, quando se está escrevendo ou lendo um romance, apreciando um quadro de um pintor famoso, ou ouvindo uma música preferida.
Quando ele me falou que, “esse sentimento nobre, ou desejo de se religar a algo perdido na nossa gênese era uma espécie de droga, que deixava o sujeito dependente”, eu retruquei, argumentando que, “a dependência psicológica não só se reflete naquele que não pode viver sem praticar seus rituais religiosos regularmente”.
O meu amigo “X” ficou de cenho franzido, quando fiz a seguinte afirmação: “Às vezes, as pessoas procuram a independência e acabam caindo em uma outra forma de dependência”.
“Pense bem no que vou dizer-lhe” —, falei de uma maneira pausada e enfática: “Nos vínculos afetivos familiares ou virtuais, caro amigo, estamos na verdade exercitando o ‘sentimento religioso’, mesmo que de forma inconsciente”.
Não sei o que se passou em sua cabeça quando cabisbaixo e silencioso ficou por alguns segundos.
Lembro-me que, numa noite fria, regada a cafezinhos com biscoitos, ele riu até não querer mais, quando falei que a primeira recompensa, suficiente para que pudéssemos vencer a dor da renúncia e do desamparo, ocorreu quando nos deram a primeira “chupeta” em substituição às tetas verdadeiras de nossa mãe, quando éramos bebês. Demonstrando desapontamento, ele disparou: “isso tudo é presunção!”. Fez cara feia por não concordar comigo no momento em que fiz ver que “o passado de nossa tenra infância, quando ainda não tínhamos consciência, ainda hoje interferia no agir de nós, adultos”.
Em uma de nossas conversações, ele chegou a torcer o nariz quando falei: “Ao longo da vida adulta, mesmo em pessoas intelectualmente sofisticadas esse sentimento nobre não abandona o homem, antes estabelece novos e fortes vínculos buscando atenuar o desamparo metafísico, que à maneira da antiga chupeta, nos transmite uma sensação apaziguante”.
Recordo-me de um de nossos efusivos encontros, em que citei trecho de um autor que o meu amigo adorava ler antes de dormir — Khalil Gibran: “Homem algum poderá revelar-nos senão o que já se encontra meio adormecido na aurora de nosso entendimento”. Pela reação esboçada, pude perceber que ele tinha entendido onde eu queria chegar.
Nessa noite, ficamos até altas horas divagando pelos caminhos tortuosos e enigmáticos da psique.
Despediu-se rapidamente de mim, prometendo voltar na próxima temporada de verão. Deu para ouvir os seus passos se afastando pelo corredor, e, não pude conter a emoção quando percebi que ele assoviava suavemente e com uma perfeição rara, a canção de Chico Buarque — “João e Maria”, sem saber que aquilo era uma espécie de “prece”, uma forma inconsciente de expressar o seu sentimento de RE-LIGAÇÃO com o poço profundo das coisas passadas, dos desejos rotos e desfeitos do tempo de menino.
Não sei o “por quê” de ter ficado por completo gravado em mim, só a última estrofe dessa emblemática música:
“Agora era fatal/ que o faz de conta terminasse assim/ Pra lá desse quintal era uma noite que não tem mais fim/ Pois você sumiu do mundo sem me avisar/ E agora eu era um louco a perguntar/ O que é que a vida vai fazer de mim?”.
Por Levi B. Santos
Guarabira, 09 de outubro de 2011
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