17 abril 2015

A Mesclagem das Procissões Religiosas com o Carnaval de Rua no Brasil Colônia





O famoso pesquisador, historiador e crítico musical, José Ramos Tinhorão, no seu livro, As Festas no Brasil Colonial”, mostra como o cortejo sacro (as procissões católicas) no tempo do Brasil Colônia se misturou ao “profano” e influenciou enormemente o que hoje temos como, Festas Carnavalescas, ou tríduo momesco. Tinhorão descreve com riqueza de detalhes e farto material histórico como se processou a mesclagem dos valores sagrados ibero-europeus com os valores indígenas e africanos na Bahia, por volta do século XVI.

Segundo o historiador, em 1580, os alunos do colégio dos Jesuítas na Bahia, encontravam nas procissões uma oportunidade de extravasamento dos seus desejos carnais. Na data comemorativa do “Corpus Christus”, havia um bloco denominado, “O Mistério das Onze Mil Virgens”, uma procissão de oportunismo lúdico, que angariou a simpatia da maioria da população.
As festas carnavalescas de ruas e as diversões em ambientes fechados, como os bailes públicos, tiveram aí a sua origem.

Sobre o caráter de diversão da procissão dos alunos do colégio dos Jesuítas, o francês Le Gentil de La Barbinais quando passava por São Gonçalo, a convite do vice-rei Vasco Fernandes Cesar de Menezes, narra como se desenrolavam os desfiles lúdicos nos arredores de São Salvador:

“Partimos em companhia do Vice-Rei e de toda a Corte. Próximo a igreja de São Gonçalo nos deparamos com uma impressionante multidão que dançava e pulava ao som de violas e atabaques, que faziam tremer toda a nave da igreja. Tivemos, nós mesmos que entrar na dança, por bem ou por mal, e não deixou de ser interessante ver numa igreja padres, mulheres, frades, cavalheiros e escravos a dançar, misturados a gritos de ‘Viva São Gonçalo do Amarante!’.
Nas procissões do Espírito Santo, o padre Frei Antônio religioso do Carmo tocava viola publicamente com o Cônego de Angola – o padre Manoel de Bastos, e entre eles no mesmo carro alegórico, uma Vicência crioula forra de Ouro Preto, vestida de homem cantava o ‘Arromba’ e outras modas da terra. O bispo D. Antonio do Desterro era um folião inveterado e saia para farra na procissão usando como peruca a cabeleira da imagem de Cristo, isto em fins de 1759. Os lundus e os fados criados no século XVIII, mais tarde, se transformariam nas  precursoras da música popular moderna”.
“Os grupos de manifestantes barulhentos que desfilavam na semana da Quaresma tinham nomes muito parecidos com os blocos carnavalescos atuais: cornetadas, troças, chocalhadas, latadas e caçoadas”.

Tem mais: Os estandartes atuais dos blocos carnavalescos e escolas de samba continuam como cópias fiéis dos que eram içados pelos fiéis nas fogosas procissões do Brasil Colonial.

P.S.:
Perdoe-me o grande pesquisador José Ramos Tinhorão, mas eu vou ficar com o Almirante que, numa música carnavalesca escancarou toda a verdade: Tudo começou no dia 21 de Abril de 1500 com a descoberta, por acaso, do Brasil, exatamente dois meses após o carnaval, como mostra o vídeo abaixo:




Por Levi B. Santos
   Guarabira, 15 de fevereiro de 2012

Fonte de Referência: José Gomes Tinhorão“As Festas no Brasil Colonial” ― Editora 34

02 abril 2015

A Ceia Totêmica Cristã


"Tomai, comei; isto é o meu corpo" (Jesus)



Um ritual antropofágico dos tempos pré históricos, ainda hoje, continua sendo  reproduzido com toda sua grandeza simbólica na cerimônia da Eucaristia (igreja católica) e nas cerimônias da Santa Ceia (igrejas protestantes e evangélicas). Em tais rituais, os membros reconhecidos como irmãos são convidados a comer um pedaço do corpo de Cristo e a beber seu sangue, que no caso, são simbolizados pelo pão e pelo vinho, à semelhança da refeição totêmica que Freud narra em seu livro “Totem e Tabu”, a qual ele considera o mais antigo festival da humanidade. Para ele, a repetição desse ato memorável estaria encravada nas origens do pensamento religioso cristão.

“Quando o homem partilhava uma refeição com o seu deus, estava expressando a convicção de que eram partes de uma só substância; e nunca partilharia essa ceia com quem considerasse um estranho” (Freud – Totem e Tabu – pag 162)

Em “Totem e Tabu”, Freud utiliza o mito da morte do Pai primitivo para compreensão da gênese da religião cristã. Ele vê um paralelismo do mito cristão com o totemismo.

“A força ética da refeição sacrificatória pública repousava em idéias muito antigas da significação de comer e beber juntos. Comer e beber com um homem constituía um símbolo e uma confirmação de companheirismo e obrigações sociais mútuas” (Totem e Tabu – pág 161)

Na ceia totêmica, cada um dos participantes ao ingerir simbolicamente um pedaço do corpo do Totem adquire a sua santidade. Pelo ato de devorá-Lo realizavam a identificação com Ele, adquirindo sua força. A refeição totêmica surge como uma forma e um esforço de apaziguar o Pai, e mitigar o sentimento de culpa por se ter entronizado o Filho no lugar de Deus-Pai. O próprio ato pelo qual o Filho oferecia a maior expiação ao Pai conduzia-o ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o Pai. Cristo, Ele próprio, tornava-se Deus em lugar do Pai, deslocando a religião paterna (Judaísmo) para a religião filial (cristianismo)

Nesse sentido, Philippe Julien, psicanalista Francês, no seu livro “Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe” — página 79 (Editora Comp. de Freud), diz o seguinte: “O cristianismo começa com a morte do Pai Todo poderoso, por que Ele se esvaziando do seu poder, deixa de intervir na história, fazendo, para o bem ou para o mal, nascer o desejo do outro”.

Freud vê aspectos do paradoxo humano no totemismo, em que o fato do crime e do sentimento de culpa dos filhos da horda primitiva que matam o pai primevo, tanto pode gerar a concretização do desejo como a negação dele, constituindo aquilo que denominamos em psicanálise: “ambivalência emocional”.

Mircea Eliade, em seu livro Aspectos do Mito” (pág. 93) — diz que “as cerimônias religiosas são festas de recordação, com um significante — o de apreender o mito central, ou seja, o assassínio da divindade e suas conseqüências”.

“Na psicologia de Jung, ao celebrar a última ceia, o crente estaria comendo a sua própria carne e bebendo o seu próprio sangue; isso tinha um significado: o de que ele devia reconhecer e aceitar o outro que há em si mesmo” — escreveu Edward Edinger no seu livro, “Arquétipo Cristão” (página 63)

O aspecto da “refeição do Totem”, que recobre a última ceia, mostra Cristo representando o “Anthropos” — o homem total original.

Na iconografia primitiva, a Última Ceia era representada por uma refeição à base de peixe, e remonta ao Banquete Messiânico da lenda judaica, na qual a carne do Leviatã — o monstro marinho —, é servida aos devotos. O Leviatã habitava as profundezas obscuras do oceano, e isso em psicanálise tem um paralelo — “o Inconsciente”, que analogicamente, representa as profundezas abissais e temerosas da psique. Esse mesmo monstro aquático — símbolo das forças poderosas do inconsciente — aparece na epopéia poética e mítica do personagem, Jó: “Se puseres a mão sobre ele (o Leviatã), lembrar-te-ás da peleja e nunca mais o intentarás. Toda a esperança de apanhá-lo é vã; o homem será derrubado só em vê-lo.” (Jó 41:8-9).

A tradição mítica cristã diz que, na aparição de Cristo na Galiléia depois de sua morte, Ele comeu peixe com favo de mel junto aos seus discípulos. Tanto o peixe dessa refeição sobrenatural ou intra-psíquica de Cristo como o grande peixe Leviatã da lenda judaica, representam os conteúdos da psique primordial e seus reflexos percebidos na consciência. A ceia é o processo “revelatio” em que o “o imenso tesouro” que jaz oculto em nós, passa a ser observado no outro, nosso irmão, num processo que Jung denominou individuação” (vide - O Mito do Significado de Anniela Jaffé — editora Cultrix — página 82)

A ceia totêmica de Cristo fez nascer na religião a “função fraternal”, sugerindo que o semelhante, o “irmão”, tem um impacto estruturante/desestruturante, entretanto, necessário na constituição da nossa individualidade, desde que cada um faça o seu mergulho, para provar do estrangeiro que há em si, na figura de um Leviatã que habita nas profundezas do obscuro e temível mar do inconsciente.

P.S.:

A psicanálise preocupa-se apenas em analisar o conteúdo da psique expresso no mito. A existência psicológica é subjetiva e verdadeira, porque o conceito de verdade não está ligado ao palpável e ao que é demonstrável racionalmente, mas ao que é percebido sensorialmente, de forma individual ou em grupo”. (Erich Fromm — Psicanálise e Religião – página 21)

O mito é considerado como o maior patrimônio espiritual da humanidade. “Os mitos resultam de experiências humanas coletivas, sem que seus produtores tenham consciência da autoria deles, pois são projeções das interpretações do mundo interior e exterior transformadas em imagens, metáforas ou representações e expressões da própria realidade”. (Ernest Cassirer Mito e Linguagem – Editora Perspectiva)




Por Levi B. Santos

Guarabira 13 de dezembro de 2010



FONTES:

1.    Freud, Totem e Tabu — Editora Imago

2.    Philippe Julien, Não Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe — Editora Companhia de Freud

3.    Mircea Eliade, Aspectos do Mito Editora Edições 70 (Portugal)

4.    Edward Edinger, Arquétipo Cristão  Editora Cultrix

5.    Anniella Jaffé, O Mito do Significado — Editora Cultrix

6.    Erich Fromm, Psicanálise e Religião — Editora Zahar

7.    Ernest Cassirer, Mito e Linguagem    Editora Perspectiva

8.    Bíblia Sagrada, Livro de Jó.


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http://levibronze.blogspot.com.br/2010/12/ceia-totemica-crista.html