Recentemente,
li vagarosamente o capítulo “O Homem Cordial” do clássico
“Raízes
do Brasil” ―
Companhia das Letras ―
edição
histórica
(2016)
comemorativa
dos 80 anos do
primeiro
lançamento (1936),
de Sérgio Buarque de Holanda. A leitura reflexiva
sobre a cordialidade dos nossos antepassados evocou em mim o tempo em
que a única forma de comunicação à longa distância se dava
através das inesquecíveis cartas escritas à pena, com um tinteiro
e um mata borrão ao lado. Bons tempos aqueles em que todo mundo,
pelo menos nas correspondências, se mostrava cordial: é que a
expressão “saudações cordiais”
era por todos colocada automaticamente no fecho ou final da
carta. Existia, também, uma frase cliché ou modelo que erigíamos
no começo da carta, antes de se entrar com todo o gás no assunto a
ser tratado: “Espero que estas mal traçadas linhas a
encontre gozando paz e saúde...”.
Hoje,
dirigindo um olhar crítico para o passado, tenho a nítida impressão
de que, por vezes, em minhas cartas, usei o termo “cordialmente...”
de forma mecânica, como mecânico é todo o bordão que usamos sem
nos deter sobre a etimologia ou o significado profundo e bipolar da
palavra.
Segundo
o escritor Cassiano Ricardo, um dos críticos do grande
clássico da literatura brasileira que trata de nossas raízes
culturais, o termo cordial não exprime só a polidez na
abordagem do outro. O termo pode se referir a outro tipo de polidez
ou bondade: “aquela outra bondade do 'faça o favor de entrar' a
que se poderia chamar de bondade de sala de visitas: que encanta, mas
brilha falso'” (“Raízes do
Brasil” ―
edição crítica)
Parece
ter razão o crítico do conceito de “Homem cordial” da
obra de Sérgio Buarque de Holanda. Na ótica de
Cassiano o termo “cordial”, como aquilo que
parte do coração, tanto poderia revelar sentimentos de concórdia
como os de inimizade.
“O
brasileiro quanto mais polido sabe tirar partido da própria bondade,
e que esse seu recurso se poderia chamar de 'técnica da
bondade'. Que essa bondade, no plano social, é o primeiro
fundamento de nossa democracia. […]O emprego dessa técnica
de bondade data do início de nossa formação biodemocrática. A
catequese é, toda, o emprego da bondade como arma política” ―
enfatiza Cassiano Ricardo.
No
prefácio à terceira edição de “Raízes do Brasil”
(1966), o crítico Antonio Cândido discorre sobre a
mentalidade cordial do brasileiro descrita por Sérgio Buarque
de Holanda:
“O
homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos
comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações
externas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem
aos ritualismos da polidez”.
O autor de “Raízes do Brasil”
acentua o perigo que ronda o nosso “homem cordial”
quando, ultrapassando os umbrais de seu círculo familiar, transfere
seu “modus vivendi” para a esfera política do
estado, por ele compreendida como uma extensão afetiva de seu
aconchegante lar:
“Estado
não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma
integração de certos agrupamentos, de certas vontades
particularistas, de que a família é o melhor exemplo.
Sobre a nossa suposta “cordialidade
democrática”, afirma Sérgio Buarque de Holanda em
seu antológico clássico:
“A
democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. […]
Nossa independência, as conquistas liberais que fizemos durante o
decurso de nossa evolução política vieram quase de surpresa; a
grande massa do povo recebeu-as com displicência ou hostilidade”.
O cientista político e
ex-presidente do IPEA, Jessé de Souza, em uma
entrevista à Folha de São Paulo do dia 07 de agosto de 2016, quando
inquirido sobre como avaliava o legado de Sérgio Buarque de
Holanda por ocasião do aniversário de 80 anos de “Raízes
do Brasil”, assim se expressou:
“Sérgio
Buarque construiu a interpretação do Brasil mais
influente até hoje. Em grande medida ela advém de Gilberto
Freire (1900 ―
1987), como a noção de identidade nacional baseada nos afetos e
sentimentos supostamente trazida de Portugal. Cientificamente, a
validade dessa interpretação é, no entanto, nula. E sua celebração
até hoje mostra apenas a miséria de nosso debate acadêmico e, por
consequência, de nosso debate político”.
Deitando um olhar pelo viés
sócio-político-psicológico, alguns críticos entendem que o Homem
Cordial, em pleno Brasil moderno de 2016, continua mais vivo do
que nunca. Os espetáculos encenados nos últimos anos em nossa
vilipendiada república confirmam os paradoxos da cordialidade
sergiobuarqueana descrita há exatamente 80 anos. De tão
atual, há quem advogue a mudança do título do clássico de nossa
formação ─ “Raízes
do Brasil” ─ para
“Jeitinho Brasileiro”.
Como o arcabouço social dos novos
tempos é o mesmo dos velhos tempos (sem tirar nem pôr), só nos
resta repetir o famoso chavão que, inocentemente, usávamos para
encerrar as cartinhas da década de 1960:
Cordiais
Saudações,
Levi B. Santos
Guarabira, 22 de setembro de 2016
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