O
Criador (Freud) e sua criatura (Jung)
Freud,
o criador da psicanálise, tinha a alma dividida entre as correntes
sionista e antissemita. Talvez, por isso, tenha se detido muito
sobre o termo “ambivalência”. Por ser um judeu da diáspora, foi
considerado um infiel pelos seus. Queria fazer de Carl Gustav Jung
seu sucessor, mas a criatura era filho de um pastor protestante.
Portanto, como cristão, acima de tudo, Jung não poderia deixar de
corroborar com o ideal bíblico de uma Terra Prometida só para os
judeus no caldeirão fervente da Palestina.
O
grande embate entre o Criador e sua
criatura se deu com o florescimento do hitlerismo. A historiadora da
psicanálise de origem francesa,
Elisabeth Roudinesco, no livro “Sigmund
Freud Na Sua Época e Em Nosso Tempo”, editado
na França em 2014 e aqui pela Zahar em 2016 ―
obra muito
aplaudida
pela crítica mundial ─,
relata que em
fevereiro de 1930, bem antes do início da segunda grande guerra, o
velho barbudo já
argumentava perante
o físico, Albert Einstein, sobre o
fanatismo irrealista de seus irmãos em criar um Estado Judeu na
Palestina. Portanto não partilhava da ideia sionista de recuperar os
lugares sagrados para si. Dizia ele: “Não
posso sentir qualquer simpatia por uma fé mal interpretada que faz
de um pedaço do muro de Herodes uma relíqua nacional e, por causa
dela desafiar os sentimentos dos habitantes do país. […]Teria sido
mais sensato fundar uma pátria judaica num solo não historicamente
carregado”.
Lógico
que, como todo judeu da Diáspora, Freud jamais poderia ser adepto do
sionismo. Sionismo, que depois mostrou a sua verdadeira cara: “um movimento
político cujo objetivo era um governo de influência mundial
controlado pelos banqueiros internacionais de orientação sionista”.
Por
outro lado, Jung, criatura freudiana, na época da ascensão de
Hitler ― principal
personagem da 2ª guerra mundial ─,
mantinha a concepção dúbia de que havia um arquétipo judaico no
inconsciente coletivo do povo judeu; ao mesmo tempo, percebia o
fulgor das massas em torno do Führer como uma resposta natural do
inconsciente cristão na psique da raça ariana. Em uma
correspondência de 1934 diz jung: “Freud já me acusou de
antissemitismo só porque me recusei a aprovar seu materialismo sem
alma. Com essa propensão a farejar antissemitismo em toda parte, os
judeus terminam efetivamente por gerar antissemitismo”.
(Elisabeth Roudinesco… ─
página 421). Na ótica de Freud e da elite judaica anti-semitismo
não era o mesmo que anti-sionismo.
A
Alemã de origem judaica,
Hannah Arendt (filósofa
política e ex-aluna de Heidegger),
ainda nos dias atuais é considerada
“persona non grata”
por, em seu
polêmico livro “Eichmann
em Jerusalém”, entender,
assim como Freud,
que o
sionismo, no fundo, era
uma ideologia racista e nacionalista.
Elisabeth
Roudinesco, sobre ambivalência refletida na dualidade
“sionismo-antissemitismo”, coloca Jung em um conflito idêntico
ao de Freud: “Ao mesmo tempo que recriminava os judeus por
forjar as condições de sua perseguição, Jung pretendia ajudá-los
a se tornarem melhores judeus. O que equivalia a dizer
que, em conformidade com sua teoria, Jung recusava o modelo freudiano
de judeu sem religião, do judeu do iluminismo. Condenava a figura
moderna do judeu desjudaizado e culpado, segundo ele, por haver
negado sua 'natureza' judaica. […] No
intuito de conduzir os judeus ao terreno da psicologia da diferença,
Jung passou a acompanhar a evolução de seus discípulos
judeus exilados na Palestina”. Contudo,
em uma de suas correspondências, deixou uma emblemática
pergunta no ar: “Seria
por estarem tão habituados a não serem judeus que os judeus
precisam concretamente do solo palestino para reconduzi-los à sua
judeidade?”
Olhando
bem, não se constitui um paradoxo o que Elisabeth Roudinesco aqui
afirma em seu memorável livro: “Jung era sionista por
antissemitismo, ao passo que Freud recusava o sionismo porque não
acreditava um só instante na ideia de que os judeus encontrariam uma
solução para o antissemitismo conquistando a Terra Prometida”.
Quando a
coisa nazista se acentuou, o Criador (Freud) fugiu para Paris, e de
lá para a Inglaterra, que o recebeu de braços abertos. Quanto a
criatura Jung, foi por Göring alçado a presidência do Instituto
Alemão de Pesquisa Psicológica e Psicoterapia. Nesse balaio de
gatos se agruparam dissidentes freudianos, junguianos e supostos
“independentes”.
Apesar de
sua biografia manchada pelo fato de
ter ficado durante grande parte do período bélico ao lado de
Hitler, há controvérsia se Jung foi realmente um colaborador
nazista. Como a ambiguidade é a marca essencial da psicanálise, a
história registra que a criatura no final da segunda guerra foi
recrutada pelo serviço secreto americano para servir como agente em
prol dos aliados. Em
1946, terminada a segunda grande guerra, um proeminente professor
judeu em visita a Suíça recusou-se a dialogar com Jung. Depois de
uma violenta discussão com o rabino, Jung rendeu-se: “Está
certo, eu vacilei.” (Jung
―
Uma Biografia ―
Frank McLynn ―
Record Editora)
Enquanto
isso, o
Criador (Freud),
agora bem
instalado no paraíso londrino que lhe serviu de asilo, longe do
inferno nazista, voltava-se para um tema polêmico
e ambíguo, como
é tudo que se refere aos
elementos míticos do campo religioso judaico-cristão,
pondo, aos
82 anos de idade, os retoques
finais em seu “Moisés
e o Monoteísmo”, publicado no ano
de sua morte (1939). Ficou lúcido até
a partida, no dia do Perdão (Yom
Kipur), em setembro de 1939, quando
o espectro da guerra caía por toda a cidade de Londres, em
meio a máscaras contra gases que
eram distribuídas para fazer face aos
intensos bombardeios que a Alemanha do demoníaco Hitler despejaria
naquele fatídico mês sobre seu último refúgio ―
a Inglaterra.
Por
Levi B. Santos