Enquanto
lia o ensaio de Luiz Felipe Pondé ―
“O Lado B da Democracia” ―
no caderno “Ilustrada” da Folha de São Paulo de 12 de
junho de 2017, veio a mente os discos de vinil que nos anos sessenta
comprava na famosa Loja Olacanti em Campina Grande – PB, a 60 km de
minha terra natal (Alagoa Grande – PB). Como no local onde morava
não havia lojas de produtos musicais, era para a cidade denominada "Rainha da Borborema" que me dirigia a
procura dos últimos lançamentos da MPB.
Aprendemos
que era no lado A do disco de vinil que, geralmente, se concentravam
os melhores ou mais populares sucessos dos artistas/cantores. Para
que escolhêssemos o disco dos nossos desejos, o vendedor, de tão
acostumado, passava pela agulha da radiola apenas duas ou três
faixas musicais do lado A, as quais, ouvíamos com sofreguidão. O
lado B, de um modo geral, era relegado a um segundo plano, por conter
canções não muitos tocadas no mundo midiático das emissoras de
rádio. A mídia muito poderosa punha no lado A do disco as músicas
“carros-chefe”, anteriormente propagadas com intensidade, com a
finalidade de atrair a nossa percepção psíquico/auditiva. Aqui ou
acolá, nos surpreendíamos com uma melodia feia mas com letra
fenomenal no lado B do disco. Mas isso era uma exceção.
Para
um melhor entendimento da analogia que faço dos fantásticos discos
de radiola do tempo de minha mocidade com a democracia atual, uma
inversão se faz necessária: o lado B do disco metafórico da
democracia analisada por Pondé, corresponderia ao lado A do
vinil que tanto esforço demandava para comprá-lo.
O
filósofo e ensaísta da Folha, em seu profundo e maravilhoso artigo,
vai ao âmago daquilo que provoca nossas escolhas, ao citar uma frase
do cineasta Woody Allen, em “Crimes
e Pecados”: “o que buscamos na maior parte das
vezes são racionalizações que justifiquem
nossos desejos”.
Nunca
se falou tanto em democracia, ética e moral quanto nos tempos
sombrios e conflituosos de nossa atual e conturbada república. O
ensaísta Pondé, com sobejada razão, mostra que é num lado
de nosso frágil e utópico regime, que se concentra um populismo
altamente contagioso: “O populismo se alimenta de nossa
infantilidade. Queremos soluções claras e distintas para confusa
realidade em que vivemos. Alguém que coloque Brasília em ordem,
alguém que faça justiça. O trono por excelência do amante do
populismo é a cadeira da sua sala de casa, na frente da
televisão, xingando todo mundo”.
Como
não concordar com a magistral declaração de Luiz Felipe Pondé,
desenho de nossa própria cara, acima reproduzida? O autor, em sua
narrativa feita na primeira pessoa do plural (especialmente no
desfecho do seu frio e cortante texto), nos impele a uma espécie de
auto-imolação:
“A
vocação primeira da democracia é o populismo. Só com muito
esforço resistimos a ele porque a política é confusa, ambivalente,
sombria, retórica, suja, enfim, humana, demasiadamente humana. […]
A sabedoria está nos detalhes e a fúria política popular não tem
vocação aos detalhes, mas apenas a shows, fogueiras e
linchamentos.”
A
democracia tem dois lados porque o homem é ambivalente. O equilíbrio
nunca virá se ficarmos só endeusando o nosso lado A e, por ser
obscuro, relegando indefinidamente o nosso lado B.
O
nosso lado B é a sombra assombrosa que nos acompanha, sombra feia
que a luz nos delineia sobre o chão. O poeta e escritor Robert
Bly descreve essa sombra, esse sombrio lado B, “como
um saco invisível que carregamos nas costas. À medida que
crescemos colocamos no saco todos os aspectos de nós mesmos que não
são aceitáveis para nossos familiares e amigos. Passamos as
primeiras décadas da vida enchendo esse saco, depois, passamos o
restante tentando tirar tudo que escondemos”.
O
temor de que a quebra de padrões culturais culmine em um pandemônio
social faz com que não aceitemos o nosso lado B. Nesse sentido todos
nós somos reacionários, o seja, estamos sempre nos escorando em
atitudes moralistas e neo-religiosas de natureza defensiva. O lado A
com suas músicas preferidas, como a foto do disco de vinil no topo
desse pequeno ensaio, mostra a nossa face aprazível que aparece
visível para a sociedade. É através dela que nos regozijamos e
interagimos.
O
psicanalista freudiano, Michael kahn, para explicar a
sincronia entre o lado A e o lado B de nossa vida mental, construiu
uma imagem bem simples e certeira: descreveu o lado B(conteúdo
recalcado da psique) como “um
amplo hall de entrada cheio
de imagens mentais, todas tentando entrar em uma pequena sala de
visita (consciência), para a qual o hall de entrada dava acesso.
Naquela sala de visitas, habita a consciência, com quem os impulsos
esperam conseguir uma audiência. No corredor entre
o hall e a sala de visitas, posta-se um vigia, cuja tarefa consiste
em examinar cada impulso que busca admissão e decidir se ele é
aceitável ou não. Se não for, o vigia(a censura) o expulsa”.
[Pensamentos
psicanalíticos para o século XXI ―
Michael kahn ―
Editora Civilização Brasileira]
Em
suma, Michael kahn quis mostrar que a emoção indesejada ou
vergonha surge quando algum impulso ou algum conteúdo do lado B,
apesar da barreira imposta pela censura (o vigia), consegue entrar na
nossa sala de visitas.
Resumo
da ópera: Nem sempre o vigia consegue segurar ou ocultar o que se
encontra escondido a sete chaves no nosso lado B.
Em
tempos litigiosos e de delações nunca é demais lembrar uma
máxima bíblica neo-testamentária que vem atravessando os tempos
sem nunca esmorecer: “aquele que não negar, mas
antes confessar seu lado B, alcançará
misericórdia”.
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
21 de junho de 2017