21 junho 2017

O Lado A e o Lado B





Enquanto lia o ensaio de Luiz Felipe Pondé O Lado B da Democracia no caderno “Ilustrada” da Folha de São Paulo de 12 de junho de 2017, veio a mente os discos de vinil que nos anos sessenta comprava na famosa Loja Olacanti em Campina Grande – PB, a 60 km de minha terra natal (Alagoa Grande – PB). Como no local onde morava não havia lojas de produtos musicais, era para a cidade denominada "Rainha da Borborema" que me dirigia a procura dos últimos lançamentos da MPB.

Aprendemos que era no lado A do disco de vinil que, geralmente, se concentravam os melhores ou mais populares sucessos dos artistas/cantores. Para que escolhêssemos o disco dos nossos desejos, o vendedor, de tão acostumado, passava pela agulha da radiola apenas duas ou três faixas musicais do lado A, as quais, ouvíamos com sofreguidão. O lado B, de um modo geral, era relegado a um segundo plano, por conter canções não muitos tocadas no mundo midiático das emissoras de rádio. A mídia muito poderosa punha no lado A do disco as músicas “carros-chefe”, anteriormente propagadas com intensidade, com a finalidade de atrair a nossa percepção psíquico/auditiva. Aqui ou acolá, nos surpreendíamos com uma melodia feia mas com letra fenomenal no lado B do disco. Mas isso era uma exceção.

Para um melhor entendimento da analogia que faço dos fantásticos discos de radiola do tempo de minha mocidade com a democracia atual, uma inversão se faz necessária: o lado B do disco metafórico da democracia analisada por Pondé, corresponderia ao lado A do vinil que tanto esforço demandava para comprá-lo.

O filósofo e ensaísta da Folha, em seu profundo e maravilhoso artigo, vai ao âmago daquilo que provoca nossas escolhas, ao citar uma frase do cineasta Woody Allen, em “Crimes e Pecados”: o que buscamos na maior parte das vezes são racionalizações que justifiquem nossos desejos”.

Nunca se falou tanto em democracia, ética e moral quanto nos tempos sombrios e conflituosos de nossa atual e conturbada república. O ensaísta Pondé, com sobejada razão, mostra que é num lado de nosso frágil e utópico regime, que se concentra um populismo altamente contagioso: “O populismo se alimenta de nossa infantilidade. Queremos soluções claras e distintas para confusa realidade em que vivemos. Alguém que coloque Brasília em ordem, alguém que faça justiça. O trono por excelência do amante do populismo é a cadeira da sua sala de casa, na frente da televisão, xingando todo mundo”.

Como não concordar com a magistral declaração de Luiz Felipe Pondé, desenho de nossa própria cara, acima reproduzida? O autor, em sua narrativa feita na primeira pessoa do plural (especialmente no desfecho do seu frio e cortante texto), nos impele a uma espécie de auto-imolação:

A vocação primeira da democracia é o populismo. Só com muito esforço resistimos a ele porque a política é confusa, ambivalente, sombria, retórica, suja, enfim, humana, demasiadamente humana. […] A sabedoria está nos detalhes e a fúria política popular não tem vocação aos detalhes, mas apenas a shows, fogueiras e linchamentos.”

A democracia tem dois lados porque o homem é ambivalente. O equilíbrio nunca virá se ficarmos só endeusando o nosso lado A e, por ser obscuro, relegando indefinidamente o nosso lado B.

O nosso lado B é a sombra assombrosa que nos acompanha, sombra feia que a luz nos delineia sobre o chão. O poeta e escritor Robert Bly descreve essa sombra, esse sombrio lado B, como um saco invisível que carregamos nas costas. À medida que crescemos colocamos no saco todos os aspectos de nós mesmos que não são aceitáveis para nossos familiares e amigos. Passamos as primeiras décadas da vida enchendo esse saco, depois, passamos o restante tentando tirar tudo que escondemos”.

O temor de que a quebra de padrões culturais culmine em um pandemônio social faz com que não aceitemos o nosso lado B. Nesse sentido todos nós somos reacionários, o seja, estamos sempre nos escorando em atitudes moralistas e neo-religiosas de natureza defensiva. O lado A com suas músicas preferidas, como a foto do disco de vinil no topo desse pequeno ensaio, mostra a nossa face aprazível que aparece visível para a sociedade. É através dela que nos regozijamos e interagimos.

O psicanalista freudiano, Michael kahn, para explicar a sincronia entre o lado A e o lado B de nossa vida mental, construiu uma imagem bem simples e certeira: descreveu o lado B(conteúdo recalcado da psique) como “um amplo hall de entrada cheio de imagens mentais, todas tentando entrar em uma pequena sala de visita (consciência), para a qual o hall de entrada dava acesso. Naquela sala de visitas, habita a consciência, com quem os impulsos esperam conseguir uma audiência. No corredor entre o hall e a sala de visitas, posta-se um vigia, cuja tarefa consiste em examinar cada impulso que busca admissão e decidir se ele é aceitável ou não. Se não for, o vigia(a censura) o expulsa”. [Pensamentos psicanalíticos para o século XXI Michael kahn Editora Civilização Brasileira]

Em suma, Michael kahn quis mostrar que a emoção indesejada ou vergonha surge quando algum impulso ou algum conteúdo do lado B, apesar da barreira imposta pela censura (o vigia), consegue entrar na nossa sala de visitas.

Resumo da ópera: Nem sempre o vigia consegue segurar ou ocultar o que se encontra escondido a sete chaves no nosso lado B.

Em tempos litigiosos e de delações nunca é demais lembrar uma máxima bíblica neo-testamentária que vem atravessando os tempos sem nunca esmorecer: “aquele que não negar, mas antes confessar seu lado B, alcança misericórdia”.


Por Levi B. Santos
Guarabira, 21 de junho de 2017