“E
foi me dado um Espinho na Carne”
(Saulo
de Tarso)
É
consoante em psicanálise que a metáfora “Espinho na Carne”,
usada pelo apóstolo Paulo em uma de suas cartas, tem a ver com algo
de natureza inconsciente que amarra o sujeito nos momentos em que o
intrometido “Eu” costuma aparecer como se fosse senhor absoluto
de todo o saber. O espinho, de tão íntimo e arraigado ao indivíduo,
acaba por se tornar irremovível. É uma espécie de vínculo
afetivo incrustado no passado da memória, sede de angústias e
intensas dores morais, quando despertado ou tocado.
Na
busca de um estado utópico de perfeição, dizemos que renunciamos a
algo sombrio e íntimo de nossa personalidade (afetos que no passado
nos garantiam um certo grau de satisfação egocêntrica). Como não
somos senhores de nós mesmos, aquilo que percebíamos como afetos
extirpados (simbolizados pela figura de um incômodo espinho na
carne), independentemente de nossa vontade, retornam a nós, de uma
maneira muito sutil e em momentos jamais imaginados. É em
decorrência do choque entre afetos paradoxais de nossa natureza dual
(Se quer, mas não se pode) que surgem a angústia e o mal estar
psíquico. Usando outros termos, poderíamos asseverar que ninguém
pode se considerar salvo desse tipo de sofrimento existencial.
Devem existir aspectos de nossa vida que até podemos dar um jeito, menos o
ato de tirar o espinho da carne. Toda vez que pensamos ter eliminado
o espinho de nossa carne, lá estamos a projetá-lo no outro. Por
esse mecanismo de defesa, o espinhoso passaria a ser o outro, nosso
“bode expiatório”, a quem julgamos. Ledo engano, o espinho na
carne não se retira. Ele é um elemento necessário para equilíbrio
do sujeito em suas ambivalências existenciais pela vida afora, além
de um formidável antídoto para que ninguém possa se gloriar.
A
compreensão “constrangedora” de que por mais que nos esforcemos,
cativando uma imagem melhor e mais simpática para nós mesmos,
continuará lá nas profundidades psíquicas do nosso ser, resíduos
afetivos que muito almejaríamos jogar no mar do esquecimento, a
saber: impulsos, inclinações, pensamentos e imagens destoantes
daquilo que construímos como máscara virtuosa em nossa vida de
relação.
Zygmunt
Bauman, em “O Retorno do Pêndulo”, demostra que o
armistício, na guerra entre os desejos ambíguos da alma humana, é
sempre temporário, até o próximo confronto. O famoso sociólogo,
assim como Paulo em suas relações com os romanos, faz uso da
metáfora do espinho na carne, como indicativo ou reflexo da dualidade intrínseca da alma e da condição humana:
“...Um
espinho cravado no corpo das relações
entre o indivíduo e a sociedade. [...]significa enfrentar
situações nas quais a balança se inclina contra fazer o que se
quer e a favor de fazer algo que se gostaria de evitar”.
(Zygmunt Bauman)
Foi
em um contexto análogo que, numa espécie de insight,
o apóstolo Paulo diante dos altivos romanos fez desaguar do seu
obscuro oceano interno afetos contraditórios, até então
escondidos: “Pois o que quero isso não faço, mas o que não
quero isso faço” (Romanos 7:15)
Em
“A Gaia Ciência”, vejamos o que Friedrich Nietzsche
escreveu em analogia à metáfora Paulina ―
“espinho na carne”:
“Examinem
a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntem a si
mesmos se uma árvore que deve crescer orgulhosamente no ar poderia
dispensar o mau tempo e os temporais; se o desfavor e a resistência
externa, se alguma espécie de ódio, ciúme, teimosia, suspeita,
dureza, avareza e violência não faz parte das circunstâncias
favoráveis sem as quais não é possível um grande crescimento,
mesmo na virtude? O veneno que faz morrer a natureza frágil é um
fortificante para o forte ―
e ele nem o chama de veneno”.
É
certo que, hoje, não mais existe inconciliabilidade entre a Teologia
e a Psicanálise. O Judeu Sigmund Freud, por exemplo, foi um
incansável leitor e intérprete das inúmeras figuras de linguagem
presentes na Bíblia e bebeu a vida toda dessa insaciável fonte.
Ela muito o auxiliou na construção dos conceitos linguísticos e
científicos que serviram de base para a nascente Psicanálise, no
final do século XIX. Tanto é assim, que o influente teólogo alemão
Paul Tillich, no capítulo 8 (Significado Teológico do
Existencialismo e da Psicanálise) de sua fenomenal obra ―
“Teologia da Cultura”―
assim se definiu, a respeito: “Certamente, o
desenvolvimento da psicanálise tem sido de infinito valor para a
Teologia. [...]As duas disciplinas não andam em caminhos separados,
mas se interpenetram”
Voltando
à metáfora ― “Espinho na Carne”
― criada pelo apóstolo Paulo: Freud,
através de suas esmiuçadas observações, incansáveis análises e
longos estudos da psique humana, chegou à conclusão de que não há
indivíduos “sem espinhos”. Disse o fundador da Psicanálise:
“Existe em todo ser humano uma instância especial na
psique onde é mantida imagens, desejos e sentimentos
considerados inaceitáveis, adquiridos em nosso
desenvolvimento biossocial e psicológico ―
afetos que gostaríamos de nos ver livres
deles para sempre”.
A
esse lado espinhoso da personalidade, que percebemos como
indesejável, Carl G. Jung denominou ―
“Sombra”. Torcemos o nariz para esse nosso lado
sombrio, e isso não passa de uma atitude defensiva ou reativa,
pois, indubitavelmente, não temos o poder de anulá-lo ou destruí-lo
através de nossa frágil vontade.
Foi
em um conflito com esse lado medonho e obscuro, latente em si mesmo,
que o próprio Paulo foi incitado a fazer essa crucial exclamação:
“Miserável homem que sou. Quem me livrará do corpo dessa
morte!”(Romanos 7: 24)
“Para
que eu não ficasse orgulhoso, recebi o dom de um obstáculo(espinho),
que me mantém em contato com minhas limitações. Sem
chance que eu ande de nariz empinado e orgulhoso! No princípio, eu
não pensava
nele(no espinho) como um dom. […]Agora
enfrento com alegria essas limitações, como tudo o que me torna
pequeno – abusos, acidentes, oposição, problemas.”
(Palavras
de Paulo
―
Versão
contemporânea
da II Epístola aos Coríntios
12: 7-12).
Não
poderia deixar de trazer a metáfora do espinho na carne para os
tempos atuais, empregando-a no contexto do frenético mundo
cibernético que, progressivamente, vem tomando conta de nossas
vidas. O Facebook e o WhatsApp são exemplos de nossos novos objetos
de desejo. O arguto espinho digital, apesar de está bem encravado em
nosso ser, nunca esteve tão visível. O renomado sociólogo
brasileiro, Jessé Sousa, em seu livro recentemente lançado pela
Editora Estação Brasil ― “A Classe Média no Espelho ―
Sua História, Seus Sonhos e Ilusões, Sua
Realidade”(página 262), diz algo emblemático sobre esse novo
espinho irremovível, a cujos efeitos sedutores
cedemos, por não termos mais o livre-arbítrio em empreender sua extirpação:
“Todo
o mecanismo precisamente concebido para atender aos desejos e
necessidades de cada um, é produzido por nós mesmos. E tudo sob
a aparência ingênua e confiável da troca de informações com
amigos e familiares. Ninguém
mais precisa invadir de modo ilegal nossa privacidade: agora nós a
disponibilizamos, de graça (e não pela Graça
– grifo meu), para que as empresas lucrem.
(Jessé
Sousa – Sobre nossa
relação com as
redes sociais)
Chegamos
ao ponto de nos afligirmos em meio ao trabalho, lazer ou até em
momentos devocionais, quando damos pela falta do smartphone. Na
realidade, não podemos negar que as curtidas nos provocam uma
ligeira anestesia ou sensação de bem-estar. Enquanto isso, o espinho na carne, responsável pela dor
existencial, sob a forma de um vazio impreenchível, continua inapelavelmente a
reverberar as angústias de uma alma profundamente ferida em seu
narcisismo.
“Partes
de mim se rebelam em segredo, e, quando menos espero, elas assumem o
controle” (Epístola
de Paulo aos Romanos 7: 23 —
Traduzida em Linguagem Contemporânea por Eugene H. Peterson)
Por
Levi B. Santos
Guarabira,
12 de janeiro de 2019
Site da Imagem: desistirnunca.com.br/nao-somos-apenas-o-que-pensamos-ser-freud/
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