Armando Pedreira atribuía as lembranças que agora estavam a assomar em sua mente, às últimas e intensas reflexões que realizava, principalmente em suas noites mal dormidas.
Naquele dia voltara a ser criança. As recordações de tão vivas, pareciam deixá-lo gozando de novo as delicias de uma época marcante de sua infância. Perguntava para si mesmo: Por que naquele momento viera à tona aquelas cenas, que ele em toda a sua vida de adulto jamais tinha evocado com tamanha clareza de detalhes?” Poderia agora mesmo citar uma por uma, todas as pessoas que moravam naquela rua. Realmente nunca dissera aos seus pais com medo de uma tremendo carão, mas, lá no fundo de sua alma ele achava aquela festa, a coisa mais bela que acontecia todos os anos em sua vida. Tudo era inusitado desde as primeiras horas da manhã. Os preparativos, como a colagem de bandeirolas de papel celofane nas cores vermelha, verde, azul e branca, em logos fios de linha “urso” para serem pregadas nos pontos mais altos das casas; folhas verdes enormes de palmeiras para serem fixadas nas paredes das residências. Ficava meio encabulado, pois no bangalô em que morava, seu pai avisava de antemão, que não permitia pregar a linha de bandeirolas no frontão de sua casa, pois aquilo era coisa do diabo, dizendo sempre nestas ocasiões: ‘Você meu filho tenha cuidado, não se junte com esta molecada. Nós somos um povo separado e santificado para Deus’. ‘Este povo que está nesta alegria mundana vai tudo para o inferno’. Ao ouvir estas palavras de seu progenitor, aflorava-lhe um sentimento de culpa, por não conseguir tirar da cabeça, ou negar a satisfação que sentia em seu ser, a qual aumentava, à medida que se aproximava a grande noite de São João, quando ao soar da melodia sinfônica da Ave Maria, precisamente às seis horas em ponto, as pessoas acorriam para frente de suas casas a fim de acender as tradicionais fogueiras". "Lembrava-se perfeitamente de que ao anoitecer, saía correndo por toda a extensão da rua de barro batido, numa extensão de mais ou menos uns duzentos metros, a contar as fogueiras de cada lado da rua. Enumerava as maiores e mais altas, que quase sempre ficavam a frente das residências dos mais ricos".
Tinha lá as suas estatísticas, pois concluía assim: “este ano deu seis fogueiras a mais que o ano passado”. Ah! Que inveja sentia por não ter o direito de soltar pelo menos aqueles chuveiros de gotas belas e fosforescentes que exalavam muita fumaça branca. O cheiro da pólvora dos traques, dos beijos de moça, dos mijões, dos ratinhos e das pequenas bombas, inebriava-lhe. Escondido em um dos becos de sua casa, após saborear pamonhas e canjicas com queijo de coalho e café quente, se contentava em soltar algumas estrelinhas miudinhas cujas faíscas não chegavam a mais de um centímetro de comprimento. Dizia para ele mesmo: “Não acredito de maneira nenhuma, que Deus vá se zangar por eu está me divertindo com isto”.
Nas noites de São João que coincidiam com os cultos na igreja, ficava acabrunhado, muito triste por perder a maior parte daquele espetáculo, e saia de casa bem devagarzinho para o templo, a fim ter mais tempo para apreciar a beleza esplendorosa daquelas lanternas pregadas nas paredes de fora das casas, acima de cada janela e portas. Lanternas em forma de pirâmides, de cubos, umas redondas como fole de sanfona, em forma de estrelas de variadas cores escondendo a luz tremulante das velas em seu interior.
Pedreira lembrava-se de uma daquelas noites de S. João, em que a lua cheia dava um toque todo especial, e os balões multicoloridos começavam a ser soltos pela gurizada alegremente alvoroçada. Logo, logo, os balões de variados tamanhos estariam subindo, levados pelos ventos em meio a um céu límpido, transformando-se em pouco tempo em pequeninos pontinhos de luz bruxuleante, em meio às estrelas cintilantes. Naquela noite ele perdera a maior parte da festa, pois o dirigente do culto se estendera demais no seu sermão, fazendo-o perder as maravilhas das girândolas preparadas, num dia em que o céu estava maravilhoso, centrado por uma lua que parecia naquela ocasião espargir um brilho diferente como nunca tinha presenciado.
Numa espécie de mergulho em si mesmo, refletia agora:
“Será que meu pai, quando criança, não teria experimentado aquela mesma sensação que me dominava naqueles momentos idílicos das noites juninas?”
A insensibilidade de seu temivel pai fez evocar nele aquelas impensadas admoestações, que pregava em sua antiga igreja, nos cultos da última sexta-feira que precedia ao dia de S. João, quando pedia insistentemente aos crentes, que não deixassem de maneira nenhuma os seus filhos saírem com os mundanos das ruas a soltar fogos, e a pular diante das fogueiras”. Se a festa junina coincidia com o dia de culto, Pedreira dizia assim: “tragam todas as crianças, sem exceção, para igreja bem cedinho, antes do acender das fogueiras”. Quando a festa mundana não coincidia com o dia de culto, falava desta maneira: “Prendam todas em casa. Os mais rebeldes tranquem em quartos e ponham os mesmos para dormirem cedo”.
Depois de sua polêmica renúncia, isto é, da compreensão profunda sobre as raízes de suas velhas e absurdas atitudes, o pastor Pedreira num exercício de memória, entendia agora tudo perfeitamente. Ora, ele em sua outrora admoestação doutrinária, queria proibir os filhos dos fiéis de sua antiga igreja, de provarem aquela sensação prazerosa que ele mesmo sentira, quando criança, nas famosas noites de S. João, em que escondido de seu pai natural se deliciava com os folguedos juninos. Compreendia agora, que ao presidir aquela instituição, estava ali, sem saber, investido da autoridade de seu antigo pai. Era como se o fantasma do seu ex-pai estivesse a reprovar a sua atitude de ter praticado na meninice algo grave e pecaminoso e não ter tido a coragem de lhe confessar.
Como expiação por tudo que cometera em oculto de seu pai, pelos prazeres não revelados daquelas memoráveis noites de muitos anos atrás, Pedreira procurava se redimir em suas exortações costumeiras de final de semana, perante um Pai espiritual (simbólico), dizendo a frente dos seus fiéis: “Pelo amor de Deus, não deixem as suas criancinhas participar desta festa pagã, que só tem coisas diabólicas a oferecer”.
Com a memória já mais ativada pelas intensas reflexões diuturnas, fizera uma interessante volta no tempo, indo buscar um fato inusitado do inicio de seu mandato em sua antiga igreja: Um dia, quando saía do templo, após o culto, em direção a sua residência, para não pecar, ele procurava em vão, não olhar para aquelas tentadoras lanternas luminosas de formatos variados pregadas nas paredes, que tantas alegrias lhe dera nos tempos de criança; algumas já estavam apagadas, pois as velas já tinham se derretidas todas, não fornecendo mais o alimento para a luminosidade. Sem querer, mais adiante pára, a fim ver uma lanterna junina enorme instalada em um casarão suntuoso de dois andares. Ao sentir que tinha caído em tentação, imediatamente reage tapando os olhos com as mãos, dizendo baixinho: “Está repreendido em nome de Jesus”.
Agora, com mais maturidade, ele tinha consciência de que, o que lhe ocorrera naquela ocasião, quando fora traído pelo próprio subconsciente, se originara dos desejos reprimidos daquela fase tão bela e significativa da sua infância, quando estático diante das casas dos mais ricos ficava por longos minutos se deliciando com a beleza das luminosidades fortemente coloridas das lanternas multiformes. O que acontecera ali em sua caminhada para casa, após o culto, reacendeu nele o sentimento de culpa, fazendo-o repreender o seu próprio inconsciente, como se aquilo que lhe chamara a atenção, fosse uma coisa satânica.
Já adulto, casado e com filhos, parecia ainda ver o seu sisudo pai, em sua velha cadeira de balanço, na sala de estar, o admoestando desta forma: ‘Você Pedreira, como um menino crente, tem que ser diferente dos demais’! Seu pai nunca viera saber que no coração do filho, tudo era diferente do que ele pensava. O menino Pedreira queria, era ser igual aos outros, na espontaneidade lúdica daquela noite. Ainda era muito pequeno, para poder sentir ódio daqueles seus amiguinhos cujos pais tinham religião diferente da sua. Após os festejos da noite, ele entrava cabisbaixo em casa. Seu pai e sua mãe juntamente com suas tias, ainda estavam na sala conversando sobre fatos corriqueiros do dia-a-dia. Nessas ocasiões não faltavam as tradicionais fofocas. Passando sorrateiramente entre eles, após pedir licença, escondendo as mãos com as unhas cheias de pólvora, ouvia a ladainha de sempre: ‘Isto lá é hora, de um menino filho de pais crentes chegar em casa! Vou marcar uma hora no meu relógio, para durante este tempo você ficar ajoelhado pedindo perdão a Deus, pela petulância de ter se misturado com esta cambada de moleques, filhos de pais desordenados’. Então, ele, com os seus desejos já plenamente satisfeitos, ajoelhava-se ao lado da sua cama. Não ligava muito para os puxavantes de orelha, que o faziam despertar do inevitável cochilo, e ouvir logo em seguida os gritos do seu enfezado pai: ‘Seu safado, tá me enganando! Ore aí! Ore, para seu pai ver. E ele dizia da boca para fora, pois não podia mentir para Deus: “Senhor me perdoe pelo pecado que cometi em desobedecer a meu pai”. No fundo, ele achava o seu pai um chato, orgulhoso e inconveniente por menosprezar seus amigos das noitadas juninas. Às vezes, pensava que a oração de uma criança incompreendida poderia se reverter contra quem a estava castigando injustamente.
“Dou graças a Deus, porque, mesmo numa idade já avançada, ele me fez conhecer um pouco de mim, o bastante, para entender que julgava nos outros, aquilo que eu mesmo possuía em secreto” ─ dizia agora, um velho e nostálgico Armando Pedreira. Os evangelhos dizem: “que ao julgarmos os outros, estamos julgando a nós mesmos”. Tinha lido tantas vezes aquela passagem bíblica, e só agora despertara para uma compreensão mais profunda das verdades ali contidas.
Armando Pedreira hoje, no dia de São João, gosta de ficar sentado em uma espreguiçadeira, lambendo os dedos melados de canjica, relembrando sem nenhum sentimento de culpa, os seus tempos de menino. Participando alegremente da algazarra das crianças libertas do fardo do medo, sem necessidade de se esconderem dos pais. Rindo de alegria ao ver aquela meninada soltando chuveiros iguais aos de outrora, ao redor de uma fogueira, cantarolando hinos no ritmo esfuziante de “forró”, ao som da sanfona, de um zabumba e de um pandeiro.
Numa granja toda iluminada por lanternas coloridas, semelhantes àquelas de antigamente, ele agora, se esbalda de contentamento, com o coração livre das velhas e amargas ameaças de castigo.