O fascínio de uma utópica cultura hegemônica, ronda a humanidade desde os tempos mais remotos. Os descendentes de Noé, num primeiro momento, se entendiam através de uma linguagem única, que na tradição judaico-cristã constituiu a primeira forma de pensamento globalizado.
Tomando a construção de uma torre que atingiria os céus, como METÁFORA, iremos entender sobremaneira, as sutilezas que envolvem o dilema do pensamento ocidental frente às outras culturas. Hoje, mais do que nunca, o ocidentalismo tenta ditar regras “universais”, no sentido de impor uma mesma forma de linguagem na convivência entre os povos que têm identidades diversificadas.
Uma pequena reflexão sobre a “Babel” bíblica irá abrir a nossa mente para o óbvio, que é a impossibilidade de sucesso da empreitada daqueles que se arvoram de autores do supostamente “correto e único” em matéria de política e religião.
Para compreendermos melhor o cerne do pensamento global reinante no ocidente, torna-se imperativo reler partes do que está escrito no livro de Gênesis:
“Ora, a terra toda tinha uma só língua, e uma só maneira de falar” ( Gênesis 11:1)
“Disse o Senhor: o povo é um, e todos tem uma só língua. Isto é, o que começam a fazer; agora não haverá restrição para tudo que eles intentarem fazer”. (Gênesis 11:06)
“Por isso chamou o seu nome BABEL, porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os espalhou o Senhor sobre a face de toda a terra”. (Gênesis 11:09)
A onipotência de uma só forma de pensar entre as nações seria ousar contra o próprio Deus. O castigo que sobreveio através da “confusão” das línguas, na verdade dera lugar a uma dádiva, que seria a abertura de cada ser humano para o diálogo com o outro ser agora estranho, dono de uma identidade lingüística diferente.
A emblemática frase dos construtores da “Torre que tocaria os céus”: FAÇAMOS UM NOME (Gênesis 11;04), é a mesma que hoje embasa o pensamento hegemônico ocidental. A história está sendo repetida e fadada ao insucesso. O ocidente quer fazer um “Nome” sobre todos os outros, sem se ater para o que há de mais importante na diversidade da linguagem, que é o respeito aos valores dos povos estrangeiros. O mundo ocidental no seu egocentrismo recusa o intercâmbio de idéias e conhecimentos com as outras culturas que lhes são estranhas, esquecendo o que está escrito em Êxodo 22:21: “O estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás, pois estrangeiros fostes na terra do Egito”. E o pior: lança como entrave ao diálogo com o diferente, um cristianismo fajuto, que nem de longe lembra o pensamento central da mensagem de Cristo.
Ora, o Cristianismo primitivo, através de suas "boas novas" de que fala o Novo Testamento, imprimiu com marca indelével, o compromisso com a não destruição das identidades dos povos de línguas deferenciadas. Tanto é assim, que no emblemático dia de Pentencoste, os discípulos de Cristo ao serem tomados pelo poder do alto, disseram palavras, cujo teor, os povos de diferentes linguagens, ali ao redor, chegaram a comprender. Aquele acontecimento tornou-se um símbolo de que Deus, doravante, se faria entender no contexto de cada povo, de cada cultura, de cada língua, como bem realça o livro de Atos (2, 9 à 11): "Partos, Medos, Elamitas, os da Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frígia, Panfília, Egito, Libia, Cretenses e Àrabes - todos temos ouvidos em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus".
O que Deus outrora queria mostrar com a diversidade das formas de linguagem, e a pluralidade de pensamentos, no episódio da interrupção da construção da Torre de Babel?
Deus, simplesmente queria que nascesse no coração do homem, o despertar de uma nova forma de convivência, baseada na “singularidade” de cada ser, que é única, e que, como uma impressão digital, não se repete em outro ser. Até dentro de uma mesma comunidade ou grupo familiar, onde se tenta falar uma mesma língua, a singularidade de cada indivíduo na sua transcendência com o divino, é particular, e não pode ser exprimida em palavras. Na maioria das vezes, na tentativa de explicar a nossa interioridade para o outro, somos mal entendidos. Esta é uma das nossas grandes aflições de cada dia: fazer-se entender. Quando não reconhecemos a individualidade particular do outro, expressada em sua peculiar linguagem que nos é estranha, podemos até partir para o acirramento de ânimos.
O aprendizado entre os diferentes é assim mesmo. O nosso interlocutor almeja sempre que correspondamos aos seus desejos. Ele fica feliz ao pensar que somos sua cópia fiel. Ao nos tornarmos cópias, perdemos a nossa identidade, e passamos a viver num estado de alienação, que nos sujeita a depender da consciência do outro, como bem demonstra o Judeu hassídico Martin Buber, nesta construção fraseológica: : “Se eu sou eu porque eu sou eu, e tu és tu porque tu és tu, então eu sou eu e tu és tu. Mas, se eu sou eu porque tu és tu, e tu és tu porque eu sou eu, então nem eu sou eu, nem tu és tu”. Em outras palavras: se eu não posso ser eu, serei apenas um objeto, uma coisa, de que tu tomas posse. Se realmente tu não podes ser tu, serás sempre um objeto, de que tomo posse para depósito dos meus anseios.
A aparente superioridade cultural de um povo, é o maior entrave no aprendizado com as culturas minoritárias. Para o religioso ocidental, torna-se muito mais cômodo transformar o diferente em um seu igual, do que tentar aprender com as diferenças do outro que lhe é estranho. E desta forma vão formando homens-robôs, num proselitismo desenfreado e sem sentido, talvez sonhando em um futuro próximo soerguer uma nova e ilusória TORRE em que todos falem uma mesma língua. Sabemos que a palavra “torre” tem por significado simbólico ─ o “PODER” ─, por isso mesmo, as autoridades das grandes metrópoles procuram mostrar o seu poderio, através de construções de arranha-céus cada vez mais altos. Na verdade esses fenomenais e altíssimos edifícios não passam de uma exteriorização do desejo de “todo poder” que está arraigado no mais remoto recanto da alma humana, vindo à tona, numa espécie de repetição do que ocorreu lá no Gênesis Bíblico.
Por falar em “torres”, os E.U.A. como centro exportador do pensamento globalizado tiveram um dos seus maiores símbolos (as torres gêmeas) destruídos. Ao invés de partir para uma reflexão aprofundada através de uma releitura do Gênesis, reconhecendo à luz das Escrituras, o infrutífero esforço da reedição Babélica, eles açodaram ainda mais os povos de culturas e religiões diferentes. Em meio à tragédia do World Trade Center, ficou famosa a afirmação catastrófica do Presidente Bush: “Quem for contra nós está do lado do mal”. De forma impensada, ele fez ali, no calor da emoção, uma contundente analogia ao que escreveu o existencialista Jean Paul Sartre: “o inferno são os outros”.
O interessante é, que para aplacar a sede de vingança da maior nação cristã do globo, um personagem descendente de Nabucodonozor, chamado Saddam Hussein, foi inapelavelmente caçado para pagar o “pato” ─, logo ele, que nascera ali, bem pertinho da terra onde os herdeiros de Noé atentaram contra o próprio Deus, projetando uma equivocada “Torre” sob uma só língua.