04 outubro 2007

MISTÉRIOS NA NOITE




Eram duas horas e vinte e cinco minutos, quando rompendo o silêncio daquela abafada noite, toca o celular em cima do criado-mudo, onde antes de deitar, ele também punha os óculos e um remédio em gotas para desobstrução nasal.

Despertando do sono, numa súbita reação levantou-se do leito, agarrou o aparelho digital, olhou detidamente o visor: a ligação tinha vindo de sua própria casa, de um telefone fixo que ficava no final do corredor que tinha como início a porta de seu aposento. Notando a ausência da esposa, ao seu lado, ele imediatamente racionalizou: “só pode ter sido ela que discou para o meu aparelho celular”.

Em poucos segundos, já sem um pingo de sono, ele abriu a porta do seu quarto e se surpreendeu ao acender a lâmpada do corredor: lá estava o telefone fixo em seu devido lugar, ninguém o estava usando. Conferiu novamente a chamada no seu aparelho digital, lá estava bem claro: ligação recebida de “casa” às 2:25 de uma sexta-feira que se iniciava. Não demorara nem vinte segundos para realizar todo o movimento de identificação.

Ao invés de atribuir o chamado telefônico ao terreno do sobrenatural, no seu ceticismo, preferiu atribuir tudo a interferências eletromagnéticas de um outro mundo, o mundo digital, e saiu à procura de sua mulher. O silêncio, só cortado de vez em quando pelo cantar dos galos, e latidos dos cães ao longe, era propício ao exercício racional, que faria, na tentativa de arrumar convenientemente as pedras deste quebra-cabeça. Foi neste momento que veio a sua lembrança uma passagem da mitologia grega ─, o famoso “Enigma da Esfinge”, em que o Rei Édipo recebe um ultimato: “Decifra-me ou te devoro!”.

Na caminhada à procura de sua esposa, o que o teria levado, entre outras portas, a abrir justamente àquela do quarto que era reservado aos filhos? “Os meninos", como ele chamava os seus três rapazes, estavam ausentes, residindo na Capital do Estado, distante cerca de cento e quarenta quilômetros. Freud estivesse vivo, daria uma explicação mais ou menos assim para este fenômeno: “o que o levara a girar a maçaneta daquele aposento, teria sido a pulsão instintiva do inconsciente, induzindo-o à realização de um desejo reprimido, que era justamente o anseio de encontrar todos os filhos bem protegidos e dormindo naquele quarto, como em tempos idos acontecia”.

No entanto, em sua mente um pensamento assomava: qualquer pessoa inculta, na sua linguagem simples, diria o mesmo que Freud deduzira cientificamente. Diria mais ou menos assim, com o seu modesto linguajar: “foi o apego aos bichinhos, que fez com que você abrisse a porta do quarto deles”.

Ele agora estava juntando as peças para poder entender o “porquê” de um outro mistério. Ao abrir lentamente a porta do quarto, que era agora dos filhos só nos fins de semana, encontrara sua esposa coberta da cabeça aos pés, ajoelhada junto à cama que era do primogênito. Parecia uma daquelas mulheres árabes, que se vestem com panos longos da cabeça ao chão. Respirando a atmosfera daquele quarto, ele perguntava para si mesmo: estaria ela em genuflexão, a reviver pedaços ou restos da infância perdida dos filhos que saíram de si?

Entendia que era em momentos de transcendência como aqueles, que todos os entes queridos, mesmo os que moram distante, parecem ficar muito próximos em pensamentos. Sendo assim, deduzia que a sua esposa ali naquele quarto, numa devoção solene, poderia estar se sentindo bem pertinho dos filhos, que por muitas noites dormiram e sonharam embalados nos seus cânticos e histórias.

Não sabia porquanto tempo tinha ficado ali, estático, ante a porta entreaberta, observando a sua silhueta na penumbra do quarto vazio, mas ao mesmo tempo cheio de um significante silêncio. Talvez, pensou, ela estivesse sentindo o mesmo que ele. É que tinha vindo naquele instante à memória, os momentos que por tantas vezes partilharam juntos noutras noites insones, em que ora curtiam a algazarra e risos dos filhos, ora preocupavam-se com os choros e gemidos deles, quando estavam enfermos.

Com pés de lã, fechou a porta do quarto e se retirou com o máximo cuidado para não fazer barulho, e não interromper a ligação íntima, que por certo, ela estava experimentando naquele ambiente, exteriormente deserto de sons e de pessoas, porém interiormente rico de sentimentos. Ele não demorou muito para chegar a seguinte conclusão: ali, ajoelhada, estava uma mãe intercedendo pelos filhos, que sabe Deus, estariam nestas horas necessitando de um providencial consolo seu.

Ele já tinha ouvido em várias ocasiões ela falar em “oração de intercessão”. Já tinha presenciado em outras ocasiões, ela levantar do leito nas caladas da noite para fazer este tipo de prece. Ele, às vezes, estranhava aquele ritual, mas ela respondia: “você não sabe o valor que tem a oração de intercessão, ela é poderosa para interferir e evitar que coisas ruins venham acontecer aos nossos”. Falava isso com um tom de voz seguro, que pela janela da alma, que são os olhos, não deixava transparecer sinais de dúvidas.

O sono não chegava. Ele viu em meio à penumbra, ela aparecer sorrateira, e se recolher ao seu cantinho no leito. Depois, observou ao seu lado, ela respirar aliviada, com um ar de satisfação, de quem tinha conseguido algo inefável, e, sem dizer nenhuma palavra, em pouco tempo, estava a dormir profundamente. Numa coisa ela estava em uníssono com ele: era no respeito à grandiosidade significante de um silêncio, que naquele instante não deveria ser quebrado por palavras.

Ele e ela, com certeza pressentiram que em momentos sublimes como aqueles, não havia o que se perguntar, como, também, nada se tinha a responder, até porque a experiência transcendental de cada um, é por si, inexprimível ou indescritível. O silêncio falou mais alto naquela noite, para que a singularidade que varia de ser para ser, fosse preservada.

Depois de algum tempo ele conseguiu por fim apaziguar o sono, certo de que os mistérios da noite são para se curtir no silêncio.

O misterioso toque do seu celular, altas horas da noite, servira de inspiração para uma crônica que escreveria no dia seguinte.

Conto por: Levi B. Santos

Guarabira, 02 de Outubro de 2007

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