12 maio 2009

NASCIDO E CRIADO NO"EVANGELHO"

Foto do editor do Ensaios & Prosas entre os seis e sete anos de idade. As "asas" simbolizam a "santidade" projetada sobre ele.



Nunca ninguém havia encontrado algo que desabonasse a sua conduta de “menino crente”. Desde os primeiros anos de “banco” em sua igreja, era um exemplo de criança dedicada e obediente. Do jeito que a sua mãe o colocava no assento, ele permanecia sem se mexer durante todo o culto. Ficava tão impassível em seu lugar, que a um primeiro olhar, mais parecia uma estátua. A mãe se orgulhava quando todos sem exceção diziam: “esse menino é um santo, faz gosto mesmo de ver”.

Chegara à adolescência, sem ter recebido uma só repreensão de seus mestres da escola dominical. Era tido como um verdadeiro gênio das hostes divinas. Todos ficavam abismados com a sua capacidade de decorar textos. As pessoas ao seu redor extasiavam-se ao vê-lo recitar os comentários das lições bíblicas da escola dominical, decoradas em seus mínimos detalhes.

O Pastor eufórico dizia para a mãe do menino-prodígio: “Como é bom ter um filho nascido no evangelho, que nunca provou das coisas do mundo”. “Esse, minha irmã ─ vai longe” ─ dizia com muito orgulho. “Fique certa: Se a irmã o criar assim, separado do mundo, sem deixar ele se misturar com essa molecada imunda das ruas, a senhora vai ver Deus fazer maravilhas extraordinárias através dele. Disto eu tenho absoluta certeza” ─, concluía o entusiasmado ministro eclesiástico, mergulhado em seu paraíso utópico.

A casa do “menino que nascera crente” era todo o dia, visitada por parentes e outros que não faziam parte de sua grande família. A sua parentela era imensa, correspondendo, mais ou menos, a sessenta por cento de toda a igreja.

Certa vez, o Pastor em visita a sua casa, disse para sua mãe: “Olhe minha irmã, toda vez que eu prego sobre a parábola do filho pródigo, eu me lembro do seu filho. Vejo Deus mesmo, apontando para o seu filho, como se estivesse a dizer: Esse nunca procederá como o filho pródigo, pois foi criado dentro da doutrina santa e imaculada”.

Às vezes, o menino ouvia alguns admiradores dizerem: “Este foi escolhido desde o ventre da mãe para a obra do Senhor”.

Nunca passara por sua cabeça contestar algo, ou ir de encontro ao que se pregava como recado divino. Era enfim um robô passivo à serviço do Rei.


Foi por volta dos seus 9 anos de idade que um acontecimento surpreendente fizera desmoronar o seu mundo ilusório de santificação. Os “filhos pródigos da vida” ou moleques de rua como eram considerados por sua grande família “cristã”, desmascararam a esquisita história da cegonha contada desajeitadamente em seu meio. Foi um choque, ficar sabendo através do linguajar rude dos meninos de rua (os perdidos), a verdade escondida pelos seus, sobre como tinha sido gerado e vindo ao mundo.


Não era mais um anjo, pois perdera as suas asas. Agora, se sentia “um igual” entre os meninos mal educados de rua. As falsas certezas apreendidas desmancharam-se instantaneamente, dando lugar à desconfiança. Ao perceber que fora enganado, deixou de voar junto aos seus queridos pais, e, o único remédio que encontrou para aliviar as feridas feitas de maneira dolosa, foi sair da inocência do “Jardim do Éden”, caminhando com os seus próprios pés.


Agora, livre das amarras das asas angelicais, ele refletia sobre o avesso da parábola do filho pródigo. Ao ler e reler essa emblemática história bíblica chegou à conclusão de que, por caminhos tortuosos, o seu Pastor tinha alguma razão no que falava. É que, a continuar com o seu virtuosismo, ele estava fadado pela meritocracia eclesiástica, a ser o eterno irmão mais velho da “parábola do filho pródigo” , aquele rapaz exemplar, obediente e cheio de virtudes exteriores, mas que lá no fundo ardeu-se de ressentimento e inveja, ao ver o seu desordenado irmão ser perdoado graciosamente pelo Pai.


Ele, enfim, abriu os olhos para enxergar o óbvio: não queria mais ser a cópia de um anjo, a exalar santidade através da mudez de seu comportamento exemplar. Não mais seria uma criatura arrogante e intolerante com os de fora, nem mais espargiria o veneno do ressentimento contra os desprestigiados, sem méritos e sem virtudes , os quais, pelas suas próprias condições, tinham tudo para serem alcançados pela graça e misericórdia Divinas. Aliás, graça e misericórdia, ele só conhecera de ouvir falar, pois, ao ser forjado e projetado para ser um anjo, jamais poderia entender a história de um Deus deixando o seu trono para provar em sua própria carne, da ambivalente fragilidade humana, e só assim, poder salvar os que tinham se extraviados pelos descaminhos do mundo.


A fotografia no topo desse ensaio revela claramente o olhar atemorizado do menino que, no dizer dos seus, “nascera no evangelho”. Sobre os seus ombros pesava o fardo da “santidade” regada pelos seus tutores, que ao invés de projetarem sobre ele a graça redentora de Cristo, transformaram-no na figura de um anjo submetido aos caprichos humanos.

A expressão vaga do menino, na foto, é a de quem realmente não pode corresponder ao que o Pastor e seus jovens pais tanto esperavam.


Olhando, agora, para o seu passado longínquo, ele não podia de maneira nenhuma negar que ali estampada na foto, estava a fiel imagem de quem se sentia realmente desamparado, triste, e ameaçado por temores vindos não sei de onde.


Analisando a sua imagem de menino de ontem, o velho de hoje não pode deixar de reconhecer que a fotografia, apesar de estar encardida pelo tempo, revela com cores fortes a contrariedade de quem foi forçado na infância a representar um “eu” irreal.


Ao continuar observando demoradamente o seu retrato de 55 anos atrás, por um instante, sentiu-se como o personagem principal de uma estéril peça teatral eclesiástica.


Estava tão absorto na concentração de sua antinatural imagem infantil, que em sua imaginação, via pender sobre os seus ombros, duas enormes asas angelicais. No entanto, a sua fisionomia triste emoldurada na foto, mais que tudo, revelava um coração bem distante de toda aquela antiga artificialidade religiosa, em que foi criado e exposto, para gáudio de uma platéia ávida de um “sacrossanto” perfeccionismo doentio e inumano.




Ensaio biográfico por Levi B. Santos
Guarabira, 12 de maio de 2009


9 comentários:

Jailson Freire disse...

Caríssimo Levi, profundo este seu ensaio...
O fato é que a grande maioria de nós que passamos dos 40 anos, vivemos esse tipo de situação em nossa infância. Só que em muitos casos, o "tiro" saiu pela culatra. Ou seja, muitos dos "santinhos infantis" daquela época, são verdadeiros emissários do mal nos dias de hoje. Dizem por aqui, que uma parte siginificativa de traficantes nas comunidades aqui do Rio de Janeiro, foram criados no "evangelho"... Ou seja, são filhos de crentes. Lamentável, mas é fato.
Por outro lado, muitos outros tantos que eram criados como anjinhos, hoje são homens do qual o mundo não é digno.
Isso aponta para a teoria da eleição. E eu afirmo que nem pai nem mãe podem eleger ninguém para a ssntidade, mas Deus é soberano.
Um enorme abraço


Jailson Freire
CRÔNICAS DE UM OBSERVADOR
http://www.cronicasdeumobservador.blogspot.com/

Leonardo disse...

Meu irmão Levi,

"Não quero ser um anjo!, prefiro ser um homem totalmente dependente da graça divina". Quanto aos olhos do menino da foto, não há o que acrescentar. No olhar ensaísta, 55 anos depois, a alegria de quem foi achado pela graça. Recordo agora das palavras do reformador: "Peca fortemente, mas crê mais fortemente!". Nunca entendi o que esse louco quis dizer, até ter minha vrdadeira natureza desvelada, e pela primeira vez sentir-me totalmente nu aos olhos de Deus.

Quinhentos anos depois da reforma, a velha graça, a graça barata, a "graça de graça", ainda é uma estranha nos círculos protestantes.

***

Adicionei seu nome ao do Danilo Fernandes, em "Colaboradores" - no Púlpito Cristão. Espero com isso enviar algumas visitas ao seu blog.

Abraço fraterno,

Leonardo.

Luis Paulo Silva disse...

Irmão e amigo Levi.

Há uma diferença entre nós no que se refere ao tempo, pois tenho hoje apenas 21 anos de idade, e não faz muito tempo que passei pela infância.
Há uma grande semelhança entre nós, pois eu sempre fui também tido como o rapazinho exemplar da igreja.
Controverso para mim pareceu discordar cada vez mais de minha instituição à medida que lia a palavra de Deus.
Lembro-me que cada vez que eu discordava de meu pai em algum assunto religioso, era fortemente repreendido, e todos olhavam para mim, e se referiam à minha pessoa com o nome diminuto do meu pai "Francisquinho" eu não tinha identidade, era apenas o filho do pastor que deveria viver o que ele pregava.
Esta falta de identidade sempre me incomodou, ao ponto de eu dizer abertamente o que considerava certo e o que considerava errado, sem me importar com a conseqüência de minhas afirmações.
Os pais precisam saber que seus filhos não podem ser isolados das experiências que eles mesmos tiveram. Precisam compreender que Deus trabalha com cada indivíduo individualmente, e não coletivamente, não baseando-se no chamado de seus pais. Assim como a responsabilidade pela salvação é individual, a certeza da mesma deve ser, pois não vale à pena viver seguro na certeza alheia, antes, devemos buscar a nossa própria experiência com Deus.

Que Deus o abençoe!

Com relação ao texto ocupar um espaço mais amplo no lay-out do seu blog, eu consegui fazer isto "escolhendo um novo modelo"
O sr. pode ir em "lay-out" e "escolher novo modelo".

Luis Paulo Silva.

Levi B. Santos disse...

Prezado Jailson Freire.

Você escreveu: “...muitos dos santinhos infantis daquela época, hoje são emissários do mal – para realçar citou os casos dos traficantes do Rio de Janeiro (ex-crentes?)”.

Justamente, aí é onde reside a essência do que eu quis mostrar no ensaio postado.
O perigo de se criar artificialmente “santinhos” na igreja, é o futuro descrédito deles no evangelho, quando já adultos, verem suas asas postiças caírem, até por não fazerem parte do seu próprio corpo.
A semente do engodo plantada e regada na infância é, a meu ver, a grande causa da marginalidade em nosso meio Cristão.

Aqui em minha cidade a tônica é a mesma daí: “cerca de 60% dos detentos são “ex-crentes”(ou ex-santinhos?).

Que a dialética a respeito desse ensaio crie raízes, para que possamos refletir com profundidade esse tão delicado tema.

Sou grato pela sua valiosa colaboração.

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Levi B. Santos disse...

Prezado amigo Leonardo


A lei disse para mim: “Tu és culpado” Mas como você tão bem frisou, "a graça de graça, a velha graça, a graça barata" acabou com aquela idéia remota de perfeição e “santidade”, que exigia de mim sacrifício em troca de alívio.

Que me desculpe aquele maioral da seita da prosperidade: nada mais agora é pago.

O grande privilégio que temos é saber que somos perdoados a través de Cristo, até setenta vezes sete. É mole?

Quem não se desnuda e esconde as suas faltas com medo de confessá-las, nunca compreenderá o que é a “graça”.

Graça e Paz,

Levi B. Santos

Levi B. Santos disse...

Caro Luis Paulo

Penso como você. Temos a nossa individualidade própria, com características únicas, que só Deus entende.

Não podemos, de maneira nenhuma, nos tornamos um papel em branco, para o outro escrever a nossa história, mesmo sendo esse outro, nosso pai, pastor ou amigo.

Agradeço o seu comentário. É muito difícil a dialética através da escrita. Contudo, tenho certeza de que você entendeu a razão maior do pequeno fragmento de minhas reminiscêcias pueris postadas aqui.


Um grande abraço,

Levi B. Santos

Danilo disse...

Levi! Amigo de amigo meu é meu amigo. Ainda mais quando manda muito bem no teclado! Parabens pelos textos!
To colocando seu blog no blog roll do Genizah.
Se ainda não conheceu... passa por lá!
Danilo
http://genizah-virtual.blogspot.com/

Antônio Ayres disse...

Querido irmão e colega Levi:

A história do "Menino-Anjo" tão bem retratada pelo ensaísta que o sucedeu na vida, parece-me ter irrompido, quando veio abaixo um mito de um personagem também alado: a cegonha - uma mentira, aparentemente "inocente", mas, na realidade, devastadora, porque torna tabu para uma criança crédula, um dos dois fatos mais absolutamente naturais da vida: o nascer e o morrer.

Não é à toa (assim entendo eu), meu amigo, que você, dentre todas as especialidades médicas, escolheu a de trazer crianças ao mundo.

Sua escolha é o grito de vitória de um ser humano emancipado, que procurou a forma mais incontestavelmente probatória para mostrar que "cegonhas com bebês no bico" não existem, da mesma forma que um menino de seis anos não pode ser enganado.

E mais, o "menino enganado" não precisa tornar-se um revoltado e, adulto, tornar-se um número a mais no presídio de Bangu 1.

Concordo com o irmão Jailson, apenas fazendo uma ressalva (de algo, que acredito, foi dito por ele sem intencionalidade).

Para mim, a sua história retrata muito bem, não a teoria, mas a doutrina da predestinação, ou da graça, como preferir.

Como você deixa transparecer nas entrelinhas, não precisamos ser "bonecos teleguiados".

A despeito das intempéries da vida, Deus nos concede o privilégio de fazermos as nossas próprias escolhas e trilharmos os nossos próprios caminhos na vida.

Um abraço cordial.

Em Cristo.