Panóptico: um presídio moderno
Tinha saído da prisão há três meses, e graças ao seu comportamento exemplar conseguira o presente da liberdade vigiada.
Agora, se via no dever de andar como um homem de bem ─ atribuição esta muito arriscada ─, pois em caso de algum deslize, voltaria para a cadeia, desta feita, recebendo uma pena mais rígida, como alertara enfaticamente o diretor do presídio.
Iria agora experimentar o que era viver em um regime semi aberto. Mas o que seria viver em tal regime? ─ perguntava para si mesmo, com um leve pressentimento de que essa sua nova situação tivesse algo em comum com o “Panóptico de Jeremy Bentham” ─, ensaio esse lido com curiosidade rara nos seus primeiros meses de prisão. O Panóptico tratava-se de um edifício em forma de anel, em cuja circunferência externa se encontravam as celas dos presos, todas com janelas dirigidas para uma torre que ficava no centro do círculo. Era nessa torre, com vistas para todas as celas, que um vigilante, em oculto, observava diuturnamente o comportamento dos detentos. Dentro dessa estrutura carcerária, nenhum detento escapava de ser vigiado em seus mínimos detalhes.
Nos primeiros dias da semi-liberdade procurou redescobrir os encantos da cidade, refazendo amizades com os entes que tinha deixado para trás. No entanto, não conseguia viver sem estar sobressaltado e temeroso. Às vezes, em sua imaginação, sentia como se estivesse sendo observado ou perseguido por olhos estranhos. As pessoas que o olhavam pareciam lhe dizer: "Cuidado! Qualquer falta ou desvio de conduta, você será denunciado e preso novamente!”. A obsessão de estar sendo vigiado era tão intensa que com pouco tempo tinha resolvido não sair mais para caminhar, transformando sua casa numa prisão ou espécie de fortaleza psicológica.
Certa noite, renovado de coragem, saiu perambulando pelas ruas de seu bairro, indo parar em frente a uma igreja, onde estava sendo realizado um culto. Ali, escorado em uma janela, ficou ouvindo o emocionado pregador que discorria sobre a graça libertadora de Deus destinada ao homem, através da pessoa do seu Filho Jesus, o qual foi morto, crucificado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos [...]. Ele tinha gravado bem o tema da pregação: “Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8: 36). Pensou, pensou, e resolveu atender o convite para se congregar ali, e viver uma nova vida, sem medo de errar, pois segundo o que o Pastor dissera, em Cristo, o crente tem um advogado que nunca perde uma causa, e sempre consegue o perdão de Deus, em qualquer situação. Alegrou-se, quando o pastor dissera que a misericórdia de Deus para perdoar, era infinita.
Seis meses se passaram, e foi o bastante para ele se ver tomado de novo pelo desânimo. Sentia o ciclo conclusivo da morte lhe apertando o peito. A esperança que tinha nascido dentro de si, fôra como que enxotada para bem longe. Sentia-se como um guerreiro que perdeu a última batalha. As obrigações, os sacrifícios vazios, a liturgia do culto tinham tomado o lugar da graça tão insistentemente anunciada. Via que os mensageiros de Deus ensinavam muita teoria, tudo aparentemente bonito de se ver, mas que pena: fora do templo exibiam uma vida vaga, difusa e angustiante, como se estivessem sendo corroídos por dentro. Os acasos da vida, as doenças nervosas e físicas ─ eles atribuíam ao demônio ─, e viviam indefinidamente numa eterna punição. Todas as agruras da vida eram atribuídas a pecados que os afastavam cada vez mais de Deus. Não estava mais suportando ver os ministros cristãos converterem-se em administradores ou burocratas de uma máquina insensível, sob o nome de Deus. Pode constatar, também, que a preocupação com as almas caídas não passava de uma abjeta manipulação. Aos poucos, foi entendendo que a santidade ali apregoada era determinada por padrões publicitários de consumo, agradáveis ao paladar, olhos e ouvidos, mas venenosos para o coração. As pessoas de boa fé que alí procuravam refúgio para se verem livres da escravidão do pecado, em pouco tempo, se encontravam em liberdade vigiada, assumindo paulatinamente fardos cada vez mais pesados, como pagamento pelos erros comentidos involuntariamente.
Ele já não aguentava mais aquela situação, pois, quando frequentava os cultos de exortação, se sentia como se estivesse preso num assustador "templo-presídio", idêntico ao Panóptico que conhecera um dia, através de um livro lido na prisão.
Certo dia, envolto pelas trevas da noite ─ enquanto pela sua mente passavam doces hinos que aprendera a cantar ─, tímido e fraco, dormiu. Sonhou com um templo parecido em tudo com o Panóptico de suas leituras.
No sonho, ele e os demais crentes estavam presos em celas no grande anel externo do círculo. Na torre central estava o dirigente da congregação de arma em punho apontando para cada um dos presos. Acima do pregador pairava um grande olho estagnado. O olhar não era de aprovação e sim de censura e desdém.
Pela janela do seu quarto, ele deu uma breve olhada para última porção de estrelas que desaparecia no céu, com o clarear do dia e, em seguida, foi analisar as duas opções que assomaram a sua mente, após o emblemático sonho.
Viveria como um zangão solitário, a vagar como um estrangeiro sem pátria, pela aridez espiritual dos desertos?
Ou se massificaria para poder ─ mesmo representando um papel ─ conviver na igreja-presídio que o sonho queria mostrar?
No fundo, ele sabia muito bem que, ao se decidir pela segunda opção, iria vegetar pelo resto de sua vida. E se era para viver em semi-escravidão (liberdade vigiada), não fazia diferença nenhuma se estivesse no presídio, na cidade, em casa ou na igreja.
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 08 de julho de 2009
4 comentários:
Oi Levi,
Recebi um selo e estou compartilhando com vc.
Passa lá no eclesia.
Abrçs.
Marcelo.
Prezado Marcelo Batista
Muito embora me considere longe dessa nota (10), quero agradecer aqui a sua gentileza, por lembrar do "Ensaios & Prosas".
Mesmo com todo o esforço, acredito que jamais poderei fazer jus a tamanha honraria.
Um grande abraço fraternal,
Levi B. Santos
Caro Levi:
Conheço um homem que, depois de 18 anos de ministério (portanto, não um neófito, como o personagem de seu ensaio);depois de muita luta e angústia interior, foi até a autoridad máxima de sua denominação e pediu exoneração de seu cargo.
Isso por não suportar mais a aridez espiritual nos "bastidores da igreja".
Sentiu muito pelo rebanho, que sempre o amou e pelo qual sempre se empenhou.
Mas nunca se arrependeu por deixar de fazer parte daquela "cúpula sufocante".
Nem por isso tal homem perdeu a fé ou o seu amor a Jesus.
Mas experimentou liberdade genuína, por soltar-se das amarras que estavam o adoecendo.
Seu ensaio reflete uma realidade, pois, de fato, muitos perdem o primeiro amor depressa demais, em razão de uma igreja que não vive mais o evangelho que prega.
Que o Senhor continue a lhe iluminar em seus escritos!
Seu irmão em Cristo,
Tony Ayres
Prezado amigo Tony
O seu comentário foi de uma importância fundamental, pois mostrou um olhar válido e interessante que eu não tinha pensado. A dialética é importante por esse motivo, pois, de um mesmo texto, tiramos muitas lições.
Na realidade, as igrejas, com algumas exceções, é claro, oferecem um banquete gratuito para pescar o pecador. Uma vez lá no meio da igreja, ele vai adoecendo e se cansando de tantas formalidades e deformações moralistas, que tornam seu estado, até pior do que no início, quando não era um crente.
Creio que é esta rigidez moral de “princípios” e “deveres” do nosso meio religioso, que os psicanalistas denunciam como perigoso.
O personagem fictício (do ensaio) parece ter saído de uma prisão para outra, pois mesmo dentro da igreja continuou vivendo atemorizado, receando cair em algum deslize e ser castigado pelo vigilante que tudo ver, do “panóptico”. Mesmo no seio da igreja ele continuou carregado de grandes dificuldades psicológicas, de complexos emotivos e de angústia mórbida.
Não sei se fui bastante claro no meu desiderato, em mostrar uma igreja que proclama a graça de Deus, mas que no final envereda por um moralismo hipócrita ─ que é apropria negação da graça.
Esse ensaio, me fez lembrar do que Cristo falou, tomado de muita indignação, diante dos fariseus e escribas de sua época: “Ai de vós hipócritas que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, e depois de o terdes feito, o tornai filho do inferno duas vezes mais do que vós”( Mateus 23 : 15)
O meu intento foi o de fazer uma analogia do ex-presidiário do ensaio postado, com a situação em que se encontrava o prosélito do versículo acima citado.
Que Deus nos faça continuar nessa sadia e frutífera comunhão.
Em Cristo,
Levi B. Santos
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