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Guarabira, 23 de novembro de 2010
Jesus dizia a todos: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo...” -- Lucas 9:23
Debrucemo-nos sobre a verdadeira idéia do que seja o “negar a si mesmo”, a fim de tentarmos compreender esta solene e profunda constatação do Mestre dos mestres.
A maioria das interpretações que se faz no meio religioso coincide em traduzir essa expressão dita por Cristo como se ela quisesse significar a negação e conseqüente repressão da satisfação de todos os apetites carnais, ou desejos instintivos, que quase sempre são considerados como inclinações para o mal. Tudo isso corrobora com aquilo que estava dentro dos limites da lei de Javé, e que para não ir contra a “lei de do amor de Deus” ou o amor aos homens, deveria ser negado.
“Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por um bosque, encontrou um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual se apaixonou perdidamente. Desejava que o jovem saísse das águas e viesse ao seu encontro, mas como ele parecia recusar-se a sair do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi ás profundezas á procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morrera de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem".
O narcisismo é o encantamento e a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos, porque não conseguimos diferenciar um do outro. Freud criticava a humanidade em geral, pois nela, ele vislumbrava o narcisismo, essa bela imagem que os homens possuem de si mesmos, como seres ilusoriamente racionais e com a qual estiveram encantados durante séculos.
Nietzsche defendia que havia duas negações, quando assim escreveu: “existe a negação que encerra em si mesma a minha imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir a certa preponderância, chamada mais claramente de a moral decadente, a moral cristã”.
O psicanalista Jurandir Freire via a presença do narcisismo no cristianismo, quando assim falou em uma entrevista concedida em 2003: “o pedido do tipo “seja tão perfeito quanto um dia você foi antes da queda” explica bem o funcionamento narcísico, o nosso velho e bom funcionamento narcísico. Eu diria quem dera que a gente continuasse nele em certos aspectos. Então eu sofria porque eu tentava decifrar o outro, e sofria ou então queria me transformar, e não sabia que eu chegava a um estado de perfeição que só podia imaginar como sendo da plenitude narcísica, que um dia eu havia tido”.
Ser um Narciso é ser alguém que está sempre se olhando concentrado em um espelho, e sua vida parece consistir em procurar unicamente seu reflexo no olhar dos outros. O outro não existe como indivíduo, mas apenas enquanto espelho. É bem verdade que muito do que passamos em nossas crises existenciais tem ligação com o narcisismo.
O embevecimento com a própria imagem levou Narciso a morrer afogado em “si mesmo”. Quando o desejo egóico de afirmar-se como o centro do universo, de ser reconhecido e admirado por todos, de ser o primeiro e o único, é sempre levado à frente em detrimento do outro, esse ser humano se isola, definha e morre em sua própria solidão.
P.S.: Diante do que foi exposto, ficam aqui, três questionamentos dirigidos aos leitores que se interessarem em fazer uma profunda reflexão sobre o que seria que Cristo queria dizer com essa emblemática expressão: “NEGAR A SI MESMO”.
OU
2. Esse “Negar a si mesmo” significa simplesmente dizer NÃO ou um BASTA a esse encantamento narcísico, a essa bela imagem que fazemos de nós?
OU
3. Esse “Negar a si mesmo” diz respeito ao reconhecimento do nosso lado SOMBRA que, inconscientemente, projetamos no outro? Nesse caso, o “não negar a si mesmo”, seria o mesmo que não admitir o fato de que o comportamento “estranho” do outro, reflete o nosso eu interior coberto pela máscara social?
OBS: Para melhor entendimento, essa terceira opção poderia ser resumida da seguinte forma:
3. Será que esse “negar a si mesmo” não seria o reconhecer que o nosso eu interior está coberto pela máscara social?
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 19 de Novembro de 2010
Aprendi desde os tempos das primeiras letras:
“Negar para não sofrer”.
Na volta da escola por meu pai sabatinado:
Brigou com alguém?! — Olhe isso no seu rosto!
— Escorreguei, bati com a cabeça na parede.
Mostre-me o boletim, quero ver suas notas?!
—A professora nesse bimestre não entregou.
Transformei-me em um artista
Na arte de evitar o padecimento pelas cobranças paternas.
Aprendi que a negação sempre adia o sofrimento.
Pra que mentir?!
Meus pais já se foram – sou um adulto
Agora não preciso mais negar o que sinto em oculto.
Eis que num belo dia não pude revelar um DESEJO.
A mesma sensação dos tempos de escola
Reapareceu. Voltou?!
Lá estava entranhada a velha opção
Lá estava o vigia
Que da sala de minha consciência tomava conta.
E para não incorrer no risco doloroso
De ver o meu desejo ser exposto pelo Rigoroso Guarda
Protegi-me com o manto da ansiedade.
Algo em mim me fez agir como o débil aluno de outrora
Fiquei tenso, de rosto avermelhado
Quando Ele perguntou-me:
“Ainda sonhas acordado?”
Neguei para não sofrer de novo...
Enquanto bradava um “Não” bem forte
Em secreto, lá dentro, eu inquiria:
“Por que não me abandonaste, ó Pai?!
Como gostaria de continuar Te negando
Para continuar LIVRE do sofrer!”
Guarabira, 12 de novembro de 2010
Tomás de Aquino, contorcendo-se para conhecer as suas entranhas, fez uma profunda prece, movido que foi por aquilo que em psicanálise se denomina: desejo de se “re-ligar” à parte “faltante” do ser humano, que ficou escondida ou arquivada em algum lugar secreto de sua mente:
“Concedei-me Senhor meu Deus
Uma inteligência que Vos conheça
Um zelo que Vos procure
Uma Ciência que vos encontre...”
Essa ansiedade por respostas vem de um impulso que brota das profundezas do INCONSCIENTE. E o sujeito na busca do paraíso perdido, do inexplicável, do divino, na verdade, o que está procurando é a si mesmo.
Nos computadores somos livres para deletar de sua memória o que desejamos, mas a experiência emocional da primeira infância é “indeletável”, isto é, nunca poderemos desarquivar essa memória existencial do velho aparelho denominado cérebro.
No sistema junguiano, o inconsciente torna-se uma fonte de revelações, um símbolo, para o que na linguagem religiosa, chamamos Deus. De acordo com Jung, o fato de estarmos sujeitos aos ditames do nosso inconsciente constitui em si mesmo um fenômeno religioso. Já no pensamento freudiano, o inconsciente é o “reprimido”, o que é incompatível com as exigências de nossa cultura e do nosso eu superior.
O fato de “não se estar consciente” dos problemas vivenciados na tenra infância, não significa que as janelas de ontem foram fechadas para os olhos de hoje.
É a memória arquivada dos tempos indeléveis de nossa formação psicossomática que ilumina o nosso “eu”, e, funciona, hoje, como um motor a expandir a nossa arte de pensar. Às vezes, os segmentos das experiências negativas da infância centralizadas pelo medo, agressão e intolerância, embotadas pela nossa resistência psíquica de adulto, não nos permitem perceber que a maneira como nos comportamos e como nos relacionamos recebem influências de forças poderosas que habitam esse porão obscuro, denominados pela religião de regiões “celestiais” e “demoníacas”.
Nesse sentido, somos reféns do passado. Aquele passado que nos subjugava e escravizava é responsável por muitas nuances do nosso comportamento atual. As nossas racionalizações e argumentações, na verdade, são reflexos do que foi construído intuitivamente nos primeiros meses de vida.
Como uma criança asmática que em suas crises não conseguia dormir em seu quarto de penumbra e que hoje, em conseqüência, sofre de claustrofobia, assim viveu o velho ranzinza, Nietzsche, com a sua cefaléia crônica. Enquanto muitos pensavam que esse pensador fosse o mais radical dos ateus, alguns conseguiram ver que a sua busca insaciável e desesperada era uma tentativa de conhecer o verdadeiro RIO que jorrava do manancial de suas dúvidas, além dos limites do tempo e do espaço. Nietzsche se debatia para fugir de Deus, e, nesse embate estava sendo protagonista de uma luta vã contra um sentimento indestrutível do seu passado, ainda em atividade. Mas, parece ter entendido, no final, que negar esse sentimento seria uma espécie de fuga — a fuga de si mesmo; tanto é que deixou escrita uma prece antológica que representa mais a sua aproximação do que o seu distanciamento do inaudível pai simbólico internalizado no inconsciente.
Esta oração foi traduzida pelo ilustre Leonardo Boff diretamente do Alemão (Boff, 2000):
“Oração Ao Deus Desconhecido”
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para a frente, uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: “Ao Deus Desconhecido.”
Teu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.
Teu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.
Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-Te.
Eu quero conhecer-Te, desconhecido!
Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Te conhecer, quero servir-Te só a Ti.
(Friedrich Nietzsche)
Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 05 de novembro de 2010