04 outubro 2011

O Cristianismo Segundo Nietzsche




Os pais e avós, como Protestantes, semearam no espírito do menino, apelidado de “O pequeno Pastor”, o zelo pela religião Javeliana. Mais tarde, na maturidade, Nietzsche — o brilhante estudioso das escrituras sagradas — passou a reagir àquilo que tinha como essencial e imutável, sob a forma de uma contestação vigorosa ao que tinha apreendido da tradição judaico-cristã.

O filósofo “herege” explorou ao máximo a sua natureza reflexiva, e, como homem reativo assumiu a gravidade de uma crescente interiorização dos seus impulsos inconscientes. Ele percebeu que subjacente à doutrina cristã com seus conceitos morais e regras normativas, existia a “má consciência”, ou RESSENTIMENTO, que esgotava as forças dos fieis ao pretender um aprimoramento moral inalcançável.

Nietzsche notou em suas longas reflexões, uma inversão de valores que implicou uma falsificação de Deus. Dessa forma, Javé, que era reverenciado por grandes festas, como forma de agradecimento pela boa fortuna na colheita, na pecuária, etc., foi transformado em um Javé que castiga e recompensa.

Em, “O Anticristo”, Nietzsche, faz ver que basta o homem sentir o desejo de transgressão para que isso, em si, já seja considerado uma prova suficiente de seu pecado e, como isso representa uma ameaça à salvação da sua alma. A desobediência ao sacerdote ou pastor é tida como desobediência a Deus. Psicologicamente, em toda sociedade organizada em torno do sacerdote, os pecados são imprescindíveis: são autênticas alavancas do poder. O sacerdote vive dos pecados, ele necessita que se peque: Deus perdoa a quem se submete ao sacerdote.

Para Nietzsche o poder da igreja depende que seus seguidores se sintam pecadores. A partir daí, o sacerdote inventa proibições para que, somente assim, haja transgressão e, consequentemente, sentimento de culpa.

Giles Thomas Ranson, sobre Nietzsche e o cristianismo, diz:

O cristianismo ensina que o reino de Deus está nos corações dos homens, mas traiu essa intuição fundamental quando transformou o Reino em outro mundo, um mundo mais além. Quando se desloca o centro de gravidade da vida no 'mais além', o que para Nietzsche é o nada, tira-se à vida o seu centro de gravidade”.

O filósofo barbudo consegue ver na mensagem dos agitadores sacerdotais, um sutil sentimento de vingança: os homens impotentes sob a égide de seu Deus alimentam a esperança do fim do sofrimento em suas ovelhas doentes, que apenas conhecem uma vontade: a de negar a vida.

Para Nietzsche, a moral escrava sempre nasce de uma REAÇÃO, tipo ressentimento, a qual sempre requer, para se fazer nascer, um mundo oposto, em que os fortes abaixam a cabeça para pedir clemência — os seus instintos tornam-se reprimidos, assim como os do rebanho, para poderem participar, enfim, dos benefícios da sociedade eclesiástica reativa.

Segundo o filósofo e escritor Amauri Ferreira, “Nietzsche atribuía a origem do pecado, da culpa e do ressentimento na cultura Judaico-cristã a uma moral que reprime a vontade de potência que quer expandir-se”.

Para o filósofo, o homem cristão torna-se reativo quando vive limitado apenas à conservação da sua existência, o que faz multiplicar o seu sofrimento e necessidade de viver, cada vez mais, submetido às promessas de recompensa oferecidas pelo poder sacerdotal.

Nietzsche, vê no cristão o núcleo do RESSENTIMENTO. Para ele, só resta ao cristão, como fraco, ressentir-se. “O desejo de vingança no crente é recusado ou reprimido. No cristianismo, sacraliza-se a vingança sob o nome de justiça — é a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores positivos. No cristão ressentido, a dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro (Maria Rita Kehl).

Juízo final?”: “É aquilo que serve de consolo para os seus sofrimentos por toda a vida. Mas enquanto não vem, preferem viver na fé, no amor e na esperança”. (Renato Nunes Bittencourt — “Nietzsche e o Problema do Ressentimento na Moral Religiosa”)

Diz a história, que no final da vida, Nietzsche, entrou em paranóia (esquizofrenia). Pouco antes de morrer, numa dissociação psíquica tremenda, identificou-se com Deus, quando em analogia a um conhecido versículo de um dos Salmos de Davi, assim escreveu:

Cantai a mim um cântico novo: o mundo se transfigurou e o céu encheu-se de alegria”.

Ass: “O Crucificado”

P.S.: “Nem os loucos erram” — é bíblico. É no estado de “loucura” que aquilo que se encontra reprimido nos porões abissais do inconsciente, aflora com toda exuberância.


Por Levi B. Santos

Guarabira, 04 de outubro de 2011


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FONTES:

1. Maria Rita Kehl – Ressentimento – Editora Casa do Psicólogo

2. Amauri Ferreira – Culpa e Ressentimento em Nietzsche – Ciência e Vida “Filosofia” – N° 36 – Editora Escala.

3. Giles Thomas Ranson – História do Existencialismo e da Fenomenologia – Editora EPU

4. Renato Nunes Bittencourt – Nietzsche e o Problema do Ressentimento na Moral Religiosa - http://www.revistaitaca.org

9 comentários:

Eduardo Medeiros disse...

levi,

parabéns por saber sintetizar tanta coisa em poucos parágrafos, uma habilidade que estou buscando obter. rsss

a crítica ferrenha de nietzsche tinha todo sentido. mas as práticas e a moral do cristianismo do seu tempo era de fato, cristianismo?

"Para Nietzsche o poder da igreja depende que seus seguidores se sintam pecadores.

essa frase está cheia de verdades. mas paulo não escreveu exatamente o contrário em suas formulações teológicas? ele não disse para os cristãos se considerarem "mortos para o pecado" e se sentissem justificados em cristo, ainda que permanecessem pecadores?

o que tens a dizer sobre isso, ó sábio oráculo do inconsciente?

Levi B. Santos disse...

Confrontar Nietzsche e Paulo é tarefa árdua demais, meu caro EDU

Entendo que eles divergiam no que tinham como “pecado”. A “vontade de potência” de que fala o bigodudo é inerente ao ser humano. O cristianismo paulino na visão nietzscheana nega que essa realidade profana seja um componente natural da psique.

A luta do “espírito” contra a “carne”, para Nietzsche era uma luta inglória. Para ele, a “moral” paulina era uma moral reativa, uma vez que o velho “Adão” não morre.

O desejo de ser recompensado como uma “coroa” ou galardão na outra vida, para Nietzsche, não passa de uma projeção do desejo de poder (instintivo) para uma vida no além.

Freud, pegando uma carona em Nietzsche, vê no sonho de Paulo em se livrar do “espinho” do profano, uma mecanismo de negação do ego contra as forças do inconsciente, que ele tinha como exterior a mente.

O desejo de reinar (metáfora), expressa bem como o apóstolo em sua imaginação se via como Rei. Ora, um reino só tem sentido de houver um REI para dominar os seus súditos e ser servido por eles.

Para Nietzsche, Paulo renovou o decálogo mosaico através da moral cristã, que para o bigodudo, era a coisa mais perversa, porque internalizada, cria e reaviva o sentimento de culpa.

Mas na época, Nietzsche não entendia nada de inconsciente. Não entendia que ele mesmo era também um REATIVO, Isto é, era um Saulo que no seu zelo, perseguia o próprio Deus.

Contudo, existem algumas semelhanças entre esses dois homens: Paulo, em sua imaginação foi ate o terceiro céu, e Nietzsche terminou por se fundir com a imago paterna internalizada no porão profundo de sua mente, no fim da vida. (rsrs)

O Provocador disse...

Não gosto desse filósofo, aliás, acho que não gosto de ninguém, mas uma frase deve ser sempre repetida até que se torne aceitável, e esta é uma delas:

"Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milénio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra."

O Provocador

Donizete disse...

Caro Levi,
Toda vez que vejo o rosto do bigodudo, me lembro de um aforismo seu no Gaia ciência. Segue na íntegra:
“ A crença é sempre desejada com a máxima avidez, é mais urgentemente necessária onde falta vontade: pois é a vontade como emoção de mando, o sinal distintivo de auto domínio e força. Isto é, quanto menos alguém sabe mandar, mais avidamente deseja alguém que mande, que mande com rigor, um Deus, um Príncipe, uma classe, um médico, um confessor,um dógma, uma consciência partidária. De onde talvez se pudesse concluir que as duas religiões universais, o budismo e o cristianismo, poderiam ter tido a razão de seu surgimento, sobretudo de sua súbita propagação, em um DESCOMUNAL ADOECIMENTO DA VONTADE. E assim ambas as religiões encontraram um desejo que, pelo adoecimento da vontade, se acumulara até a insensatez a chegava até o desespero, o desejo de um "TU DEVES".Quando um homem chega à convicção fundamental de que é preciso que mandem nele, ele se torna "CRENTE"”.

Brilhante Niestzche!

Levi B. Santos disse...

Caro Provocador

No fundo no fundo, cada um de nós tem o seu Nietzsche interior.

Quando dizemos que não gostamos dele, estamos inconscientemente reagindo ou exercendo a rejeição de nossa própria sombra.

O certo é que trabalhamos duro para compensar o lado que julgamos inaceitáveis em nós.


Abçs,

Levi B. Santos disse...

Donizete

Muito boa a sua colocação.

As instituições religiosas se constituem em um grande perigo, quando ensinam as pessoas a serem passivas. Quando elas condenam o pensamento crítico concorrem de forma fatal para estagnação do intelecto.

Ora, o verdadeiro sentido do desenvolvimento humano consiste exatamente em sobrepujar a fixação infantil que não sobrevive sem um guia, guru ou pastor que lhe dê as ordens, que lhe diga: “TU DEVES” ser assim, fazer assim ou assado para herdares a “vida eterna” (rsrs)

Em Nietzsche (numa leitura com espirito desarmado) nós vemos um humano que sente a presença de um “Deus institucional” como algo intolerável. Quando o “herege” filósofo rejeita as divindades fabricadas, ele o faz pelo bem do desenvolvimento da própria humanidade.

Eduardo Medeiros disse...

levi,

"Para Nietzsche, Paulo renovou o decálogo mosaico através da moral cristã, que para o bigodudo, era a coisa mais perversa, porque internalizada, cria e reaviva o sentimento de culpa."

creio que isso é verdadeiro em parte. mas o que pensamos quando falamos de uma "moral cristã"?

o bigodudo quis detonar toda e qualquer moral e valores, mas ao fazer isso, fez da própria vontade de potência um valor e uma moral em si(se é que interpreto corretamente o seu pensamento)

sabemos que o judaísmo é baseado em uma ética e em valores. creio ser impossível viver sem ética e valores. (de fato nietzsche quis viver sem moral/ética/valores algum?)

creio que o problema não é a moral é sim, o moralismo escravizante; tomar a lei judaica como um valor mais importante que a própria vida foi denunciado por jesus como equívoco.

porém, não se pode negar que as análises do bigodudo foram certeiras em muitos aspectos.

mas paulo não era moralmente apegado à lei, pelo contrário, ele diz que a legalismo só faz aumentar o desejo pela proibição da lei(antecipando freud?)

a justiça dos judeus vinha pela observância estrita da lei, a justiça que paulo pregou viria da fé numa pessoa(cristo), sem as obras da lei.

isso também não seria uma transvalorização do moralismo judaico?

Eduardo Medeiros disse...

provocador,

quanto à sua frase, o que ocorre é exatamente o contrário, deus nunca esteve tão vivo como está agora. o que dá sinais de fraqueza é a institucionalização dogmática da espiritualidade inerente à essência humana.

lembra daquela histórinha:

num muro de uma rua num bairro alemão alguém escreveu:

"deus está morto": nietzsche

e alguém veio e escreveu em baixo:

"nietzsche está morto": deus

acontece que nem deus nem nietzsche estão mortos, ambos estão de mãos dadas passeando no paraíso...

Levi B. Santos disse...

EDU


O grande problema é que o crente serve a instituição religiosa, ao invés de ser servido e entendido por ela.
Tenho a impressão de que Saulo trocou o zelo radical pela lei, pelo zelo radical pela instituição eclesiástica.

Isso era bem mais forte no tempo de Nietzsche, em que o sacerdote, ao interpretar de forma literal uma metáfora dita por Cristo, assumia o poder de “desligar e ligar o crente com Deus” ou aquele que se atrevesse a exercitar ou demonstrar a sua “vontade de potência”. (rsrs)

Sobre o radicalismo de Paulo, a psicanálise explica bem essa história de uma vez Flamengo, sempre Flamengo (rsrs)
Por isso mesmo, vou exercer minha vontade de potência e torcer hoje pelo meu Flu, para me vingar desse bordão.

Mas, enfim, reconheço que Paulo deu uma valiosa contribuição à psicanálise, principalmente no que está escrito em Romanos 7: 15 à 25. — que ainda hoje é motivo de muitos trabalhos psicanalíticos.